07/03/11

3 mininotas sobre o Estado Social de um imigrante num país de tradição social-democrata

1. “É muito caro este sistema de educação que vocês aqui têm na Dinamarca, sobretudo se o compararmos com outros normalmente considerados mais eficientes”, comento eu, em conversa com uma dinamarquesa minha amiga. “Principalmente, porque as pessoas mudam muitas vezes de curso a meio dos estudos, quando se apercebem de que não é aquilo que querem estudar, e andam muito tempo na escola, de maneira que só começam a trabalhar já muito tarde, com 30 anos ou mais…”
“Deixa estar,” responde-me ela com calma, sem se ofender com o que poderia ser percebido como uma crítica ao seu país vinda de um estrangeiro (uma coisa que, diz-me a experiência, é muito mal aceite, mesmo por quem passa a vida a criticar o seu próprio país…), “nós gostamos assim, estamos satisfeitos com o nosso sistema, com possibilidade de repensar as coisas e de andar muito tempo na escola. E estamos dispostos a pagar o preço que ele custa…”
É claro, não deve ser a opinião de toda a gente e não tenho maneira nenhum de saber qual a percentagem de dinamarqueses que assim pensa. Mas é significativo que tenha ouvido a mesma ideia a várias pessoas muito diferentes. E é uma boa lição de política: ao contrário do que se costuma afirmar, o Estado Social forte não é demasiado caro, quando custa o preço que os cidadãos querem pagar.

2. Desde os meus primeiros contactos com escandinavos que os oiço queixarem-se da desumanização causada pelo Estado Social forte, pelo desaparecimento da solidariedade directa, da entreajuda na família ou nos círculos de amigos. Lembro-me também de que muitos dos meus colegas no curso de dinamarquês que fiz em Copenhaga, imigrantes chegados há pouco tempo como eu, se queixavam da pretensa desumanização causada pelo Estado Social: “No outro dia, estava uma homem ali caído no chão, ao pé de Dronning Louises Bro e ninguém foi capaz de o ir socorrer. Tanta gente a passar e só eu é que fui lá”, diz-me um colega espanhol. “São assim os dinamarqueses e a eficácia do seu sistema: alguém telefonou logo para o serviço médico de urgência, mas ninguém foi lá para o pé do homem”.
Não quero recusar radicalmente a necessidade de repensar moral e estrategicamente (isto é, politicamente) os alicerces da ideia de Estado Social, mas estou convencido de que a crítica de rosto “humanista” que lhe é feita resulta em parte duma reacção romântica de tipo primitivista, digamos assim (primitivista no sentido que recusa a “robótica desumanidade” da utopia), do mesmo tipo do louvor da vida no campo ou da idealização das sociedades tribais, etc. O facto é que, para o homem caído ao pé de Dronning Louises Bro, o importante é que chegue depressa a ambulância, não que haja dezenas de pessoas solidárias ajoelhadas à sua volta. E a verdade é que, nas sociedades modernas, com grande espaço para a decisão individual em vez da clássica sujeição a tradições indiscutíveis, as antigas formas de solidariedade directa funcionam muito mal para gerar apoio a quem dele necessita; e a única maneira de se obter maior justiça social é, precisamente, tornar mais abstractos os mecanismos de apoio social. Tão abstractos quanto possível, proponho eu. Defendo até, aliás, como princípio ético geral, que a justiça é tanto maior quanto mais ela for o reflexo de princípios abstractos e menos da vontade de pessoas concretas – ou, antes, quanto menos ela depender de decisões de pessoas concretas sobre situações concretas de outras pessoas concretas. [Isto para não falar do lado prático da questão: por muito que tenham muitas vezes relutância em afirmá-lo publicamente, geralmente as pessoas preferem pagar para um sistema de apoio domiciliário e lares para idosos, por exemplo, do que tratar pessoalmente dos seus idosos...]

3. No artigo “Haverá futuro para a social-democracia?”, no Jornal de Negócios de 23 Fevereiro de 2011, João Pinto e Castro refere a ideia de Tony Judt (no seu livro Ill Fares the Land) de que, para que o Estado Social se não desmantele, é necessário que as pessoas saibam «como eram cruéis as nossas sociedades antes da emergência da social-democracia». Se, para mim, a ideia de Tony Judt faz sentido, também me parece razoável a objecção que João Pinto e Castro lhe faz: «é provável que uma atitude nostálgica, não enraizada no presente, faça [a social-democracia] parecer ainda mais obsoleta». 
A alternativa que eu proponho para a consciencialização para as óbvias vantagens do Estado Social é a informação sobre as sociedades contemporâneas sem Estado Social (há, infelizmente, muitas sobre as quais se pode dar informação) e, sempre que possível, o incentivar, sobretudo os jovens, à experiência directa dessas sociedades. Se uma jovem dinamarquesa passar uns meses num país como Moçambique (que é onde estou a escrever isto), é extremamente provável que, por mais liberal que seja à partida, fique bastante convencida da necessidade de preservar o Estado Social na Dinamarca… Aliás, nem tem de ser Moçambique: uns meses em Portugal (que é de onde sou cidadão) persuadirão, com certeza, a nossa virtual dinamarquesa do valor do Estado Social que ela, sinal dos tempos..., talvez questione…
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Foto: “Siddende unge mennesker” (“Jovens sentados”), de Johannes Hansen, 1942 (daqui)

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