07/03/11

Escreve-se como se diz ou diz-se como se escreve?

Disse-me uma vez um aluno finlandês: “Uma diferença entre o finlandês e o português é que o finlandês se escreve como se diz, ao passo que o português se diz como se escreve”.
A surpreendente afirmação, à primeira vista disparatada, não deixa de fazer sentido quando comparamos uma escrita fonética, com correspondência biunívoca entre letras e sons, como a do finlandês, com uma escrita como a do português. O que o meu aluno queria dizer era que alguém que saiba finlandês e o saiba ler e escrever pode sempre escrever bem qualquer palavra que oiça, mesmo que a não conheça; ao passo que alguém que saiba português e o saiba ler e escrever pode quase sempre ler bem o que vê escrito, mas nem sempre saberá escrever uma palavra que ouça sem nunca a ter visto escrita.
De facto, isto é que aconteceria idealmente*, mas nem sempre é assim, devido à ausência de marcas do timbre da vogal. Por exemplo, há contextos em que a letra o e a letra e se podem pronunciar tanto [ô] como [ó] e tanto [ê] como [é]. Uma pessoa que não conheça a palavra meda ou medo, por exemplo (noutro sentido que não o de temor, porque não há quem não a conheça nesse sentido) não sabe se as deve pronunciar com [é] aberto ou [ê] fechado. Outro exemplo: Descobri há pouco tempo a palavra oomancia, que vi escrita, mas que nunca ouvi dizer. Em princípio, o o átono pronuncia-se [ó] quando é uma sílaba sozinho, como em o-riente, o-brigado, etc., pelo que deveria ser [ò-ò-mancia], mas a sequência [ò-ò] é estranha em português, de maneira que poderia bem pronunciar-se [u-ò-mancia]… O dicionário Porto Editora em linha dá conta desta mesma hesitação, registando as duas pronúncias.
Mas enfim, não podemos queixar-nos muito. Na grafia de outras línguas, pode haver um número razoável de casos em que não se saiba imediatamente como se pronuncia o que se vê escrito. É o caso do inglês, por exemplo. Aliás, chegam as pessoas que falam inglês a fazer concursos de adivinhar como se pronunciam palavras inglesas desconhecidas… Já o francês, por muito que a sua grafia seja surpreendente, é como o português: quando se ouve uma palavra desconhecida, não se sabe como se a há-de escrever; mas, quando se a vê escrita, sabe-se normalmente (excepto em casos raríssimos, sobretudo de nomes de lugares e pessoas) como a pronunciar. Há é muitas maneiras de escrever o mesmo som… Lanço aqui um concurso, o primeiro da Travessa do Fala-Só:
Quantas maneiras há de escrever em francês o som [o] (como o do o tónico de todo em português)?
Notem que não falo apenas do som [o] em palavras realmente existentes, mas de todas as letras ou sequências de letras possíveis que qualquer pessoa que fale francês leia imediatamente [o]. Para dar uma pista, posso dizer que são mais de 10… mais de 20… mais de 50…
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* Não seria preciso mudar muito a grafia do português para ela ser como a do finlandês – e de modo a aplicar-se a todas as pronúncias das variantes africana, americana e europeia:
– Teria de se reduzir a uma única forma, sempre ç ou sempre ss, a escrita do som [s] em início de sílaba e entre vogais.
– Teria de se reduzir a uma única letra, s ou z, a escrita do som [z] entre vogais.
– Teria de se usar um u para escrever certos sons [u] átonos pretónicos, em palavras cuja flexão não nos permite verificar que existe ali um fonema /O/. Por exemplo, em comemos, o primeiro o, embora se pronuncie [u], corresponde a um som abstracto que, noutras formas do paradigma verbal, é [ô] (eu como) ou [ó] (tu comes), estando portanto justificado que se escreva com a letra o; mas o o de colher nunca se transforma em [ô] nem em [ô] em nenhuma das formas flexionadas ou derivadas de colher, pelo que não há razão lógica para o escrever com o. Mais lógico seria, de facto, escrever *culher, i) marcando com a grafia da vogal átona a abertura da vogal tónica para a distinguir do verbo colher (seguindo a lógica de puder e poder, por exemplo); e ii) dando ainda conta, de bónus, do étimo imediato, que é o francês cuillère.
– Teria de se abolir o h inicial.
– E também teria de haver marcas para assinalar a pronúncia das vogais átonas que, no português africano ou europeu standard, não seguem a regra geral, como em esquecer ou certamente.

[Revisto e aumentado a 30 de junho de 2023, sem alteração da grafia.]

4 comentários:

  1. Olá Vítor,
    Deparei-me hoje com o seu blog e já virei leitora. É uma delícia ver como a nossa própria língua pode ser sempre uma surpresa.
    Fiquei curiosa com a oomancia e descobri que, pelo menos aqui no Brasil, a pronúncia equivale à de voo. É isso o que consta desse dicionário on line: http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=Oomancia&x=0&y=0.
    Até a próxima,
    Cláudia

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  2. Muito obrigado, Cláudia, pelo seu interesse no blogue e pela sua colaboração.
    Sobre a pronúncia de oomancia: pronunciando-se como voo, seria então [ôumancia], não é verdade? Na entrada do Aulete, não sei por quê, não consigo encontrar nenhuma indicação da pronúncia, apenas uma indicação da etimologia [do grego oon, que significa ovo].
    Até à próxima,
    Vítor

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  3. Esse [ó] me deixou confuso mas depois percebi que estava falando sobre o [ô]. Sou brasileiro, perdoa-me.
    Enfim, estava procurando mais sobre a palavra oomancia e acabei parando aqui e como você possuia dúvidas sobre a pronúncia correta dessa palavra pesquisei sobre a etimologia e percebi que ela é de origem grega, assim como outras palavras que achei aqui na internet mesmo, eis algumas: oobasto, oócito, oogénese, oogónio, oólito, oologia, ooscopia, oosfera, ooteca, oótipo, etc.
    Bem, penso eu que não há grandes diferenças entre as pronúncias dessas palavras exemplificadas acima, mas vou pesquisar a respeito.
    Acredito que a palavra oomancia deva ser pronunciada perfeitamente cada [ô] separadamente, e.g., o-o-mancia.
    Não tenho certeza, mas como disse, irei pesquisar.
    Abraços, Felipe Espinola.

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  4. Oi, como se diz: em Italia ou na Italia

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