07/11/11

Livros em segunda mão #1: Os dois lados de tudo

I – Comprei em Maputo, a um rapaz que estava a vender livros na rua, a obra Expansão da Língua Portuguesa no Oriente nos Séculos XVI, XVII e XVIII (Lisboa: Portucalense Editora, 1969 (1ª ed. 1935)), de David de Melo Lopes. É um livro com informação interessante sobre muitas palavras, de que talvez fale aqui noutra ocasião; e é também um livro que se inscreve no quadro ideológico do louvor da “expansão portuguesa”. O autor, aliás, deixa claro isso bem claro logo de início: 
Descoberto o caminho marítimo da Índia, abriu-se à expansão portuguesa um campo ilimitado de atividade em todo o Oriente: sem falar da costa oriental de África (…), desde os portos da Abissínia e da Arábia até os da China e do Japão (…), as caravelas e naus de Portugal, ou vitoriosas na guerra ou abarrotadas de especiarias, dominaram, certamente, os mares de todo o século XVI. Os escritores estrangeiros que trataram dessa história fazem justiça ao esforço maravilhoso dos Portugueses e não lhes regateiam a sua admiração. «A audácia impetuosa da heroica pequena nação, diz um grande escritor inglês nosso contemporâneo, é pura epopeia, comparado com o qual o nosso primeiro esforço na Índia é prosa chã [Hunter, A History of British India, 1, página 3]». «O Oriente, cheio de mistérios e de riquezas, o Oriente donde vinham as sedas, as pérolas, os perfumes, as especiarias, a Índia e a China, principalmente, exerceram sobre as imaginações vivas e curiosas dos nossos antepassados uma verdadeira fascinação. Encontrar um caminho mais curto ou mais seguro para chegar a essas regiões privilegiadas, fazer concorrência aos Venezianos… era então o alvo dum grande número de espíritos ousados e aventureiros. Daí as tentativas insistentes que os marinheiros portugueses prosseguiram durante quase um século, para eterna honra sua, com uma heroica perseverança. (…) Disse-se com verdade que nenhuma nação fez tão grandes coisas como Portugal, em comparação com a sua superfície e população [Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez les peuples modernes, I, páginas 2 e 41]».
Não há nisto nada de muito original: há muito quem tenha tido este tipo de discurso e, por muito que tivéssemos, muitos de nós, chegado a acreditar que ele não sobreviveria a um regime que já passou, ou pelo menos a uma época de nacional-ensimesmamento que, em princípio, também já acabou, há também muito quem continue a tê-lo. Mas eis que, como para deixar claro que há outros mistérios tão misteriosos como os do Oriente, David Lopes continua assim:
Todavia, em França ainda há quem escreva a história assim: «Depois da tomada de Malaca pelo grande Albuquerque, os Portugueses… espalharam-se pelos países da Indochina. Não se pode dizer que os seus atores foram nobres, nem que a sua influência foi feliz: eles comportaram-se em quase toda a parte como verdadeiros piratas… [Lavisse e Rambaud, Histoire Générale, V, pág, 924]».
Porque será que David Lopes, a encerrar a secção dos elogios dos historiadores estrangeiros à épica coragem dos portugueses, referiu uma opinião tão contrária à sua, quando não tinha, aparentemente, nenhuma boa razão para o fazer? Nem sequer, pelos vistos, a ideia de a combater, pois que limita a sua crítica a Lavisse e Rambaud a uma vaga nota de rodapé: “O autor vê o argueiro luso e não vê o cavaleiro cristianíssimo”.
É claro, podia argumentar-se com a mesma ligeireza em sentido contrário: Todos os que insistem no louvor enviesado da épica expansão lusitana veem os detalhes que querem ver, mas não veem o óbvio quadro geral.

II – Como as coisas são: eu que, aspirante a místico, passei anos da minha vida a querer descobrir uma unidade essencial por baixo da corriqueira ilusão do dualismo, digo agora que, tirando as fitas de Möbius, as coisas do mundo têm sempre dois lados e que ilusão, ilusão a sério, é querer ver só um deles. Quando o imperador do Japão expulsou os portugueses em 1587, fê-lo por os considerar propagadores de uma imoralidade fundamental: na boca deles, Deus deixava de ser Tudo para passar a ser apenas o lado bom das coisas, Deus era reduzido a metade[1]. Pois, bem, do mesmo crime contra a sua nação-divindade se pode acusar quem, na tentativa de louvar a expansão lusa, vê só bem nos feitos dos portugueses, fechando os olhos ao mal. Não acho disparate ver-se na expansão portuguesa – ou noutra expansão qualquer – uma epopeia. O que acho disparatado é querer retirar-se a essa epopeia piratarias, crimes hediondos e, no geral, todos os atos menos louváveis. Então as epopeias não são – por natureza, diria eu – relatos de todo o rol de heroicas imoralidades? Não é isso mesmo a Odisseia e a Eneida, em que a valorização positiva dos heróis a priori é que define o valor das suas ações e não uma qualquer perspetiva moral? Quem quiser louvar a pura epopeia e a heroica perseverança dos navegadores portugueses não deite fora, por favor, bocados importantes desses feitos épicos só porque eles são moralmente criticáveis (às vezes até muito).

III – Um problema das identidades é serem alógicas e amorais, como tudo o que é apenas gosto, sentimento fundo. Para se ultrapassar isto, é preciso disciplina. Podemos habituar-nos a ver com olhos outros que não os nossos, um grande exercício de realismo; e podemos forçar-nos para ver daquilo que gostamos também os aspetos negativos. Insisto que as coisas do mundo têm sempre dois lados – e que não há bela sem senão, como se costuma dizer. Estou a falar não só de nacionalismos, regionalismos e bairrismos, mas também de todas as outras paixões, definam elas ou não uma identidade.
Encontrei há dias um blogue duplo[2] interessante: de um lado, as coisas bonitas do Porto; do outro, as feias. Agora, é por apresentar o lado feio do Porto que o seu autor é menos portista? Claro que não. Até, porque, se as coisas bonitas do Porto servem para justificar o amor (não para o causar, note-se, que ele é, em boa regra, anterior a elas e delas independente; apenas para o justificar), as coisas feias podem servir para dar a esse amor uma ética, um sentido de futuro: “Isto está mal, não é assim que o Porto deve ser”. E eu não consigo ver, nem nunca ninguém me apresentou, nenhuma razão para que o amor se limite à aceitação de que o que se ama é como é, como está agora na moda propor, sem passar pelo desejo de melhorar o que se reconhece como negativo naquilo que se ama.

Que já estou longe de onde comecei? De certa maneira, sim… Conversa de blogue é como cesta de cerejas…
Moral
Frederik van Valckenborch, Paisagem com naufrágio,1603, óleo sobre tela, 100 × 199,5 cm, Museu Boijmans Van Beuningen, Roterdão (Wikimedia Commons)
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 [1] Excerto de carta do imperador Toyotomi Hideyoshi ao vice‑rei português das Índias de 1591: «A nossa terra é a terra de Deus, e Deus é espírito. Tudo na natureza existe pelo espírito. Sem Deus, não há espiritualidade. Sem Deus, não há caminho. Deus reina em tempos de prosperidade como em tempos de declínio. Deus é positivo e negativo e incompreensível. Por isso, Deus é a origem de toda a existência.» Traduzi eu de Sources of Japanese Tradition, vol. I. New York: Columbia University Press, 1958. O texto inglês diz “Ours is the land of the Gods”, mas eu, como as frases seguintes do texto inglês têm God no singular, traduzo também no singular esta ocorrência da palavra no plural.
[2] Em inglês, surge-me logo a palavra doublog, mas em português é mais difícil – nem dublogue nem duplogue resultam bem…

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