18/10/10

O ataque à Mîrî: uma história de outro tempo, o tempo da História e os nacionalismos

Nas últimas férias, li um livro interessante: Corsário e Piratas Portugueses, Aventureiros nos Mares da Ásia, de Alexandra Pelúcia (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010). Transcrevo a seguir uma história que aí se conta entre as páginas 30 e 32*:
Foi no dia 29 de Setembro [de 1502] que as acções de patrulha marítima [dos portugueses no Norte da costa do Malabar] produziram resultados de monta ao detectar-se a circulação de uma importante e rica presa, a nau Mîrî. Nela se faziam transportar umas poucas centenas de muçulmanos, entre homens, mulheres e crianças, que vinham de cumprir […] o haji, ou seja, a peregrinação à cidade santa de Meca […]. Entre os passageiros da Mîrî achavam-se […] abastados membros da comunidade de mercadores islamitas de Calecut, incluindo um que ali serviria de feitor ao próprio sultão mameluco do Cairo. Houve, pois, interesses de monta a sopesarem na decisão de declarar a rendição logo que os canhões portugueses efectuaram alguns disparos, tanto mais perceptíveis quanto Tomé Lopes [testemunha ocular que registou por escrito o acontecimento] afiança que a vela tacada estava municiada com artilharia.

A esperança que animava os muçulmanos acossados era a abertura de um processo de diálogo. Se tudo corresse bem garantiriam a sua integridade física em troca do pagamento de um elevado resgate. A abertura verificada por parte do almirante [português] foi, no entanto, nula: declinou todas as ofertas e que lhe foram apresentadas e exigiu, sem quaisquer contemplações, a entrega dos valores transportados. Consumado o acto e porque do seu lado tinha tanto o argumento da superioridade da força como o móbil de ripostar à violência de que os compatriotas tinham sido alvo em Calecut, quase dois anos antes [ataque de 16 de Dezembro de 1500 em que morreu Pêro Vaz de Caminha, quando na região se encontrava a armada de Pedro Álvares Cabral], o capitão-mor determinou que algumas chalupas arrastassem a Mîrî para longe da esquadra portuguesa, retirassem as armas existentes a bordo e lhe deitassem fogo, sem permitir a retirada da esmagadora maioria das pessoas que lá estavam dentro.

Os acontecimentos subsequentes fugiram, em boa parte, ao controlo, e, inclusive, à compreensão dos portugueses envolvidos. Em desespero de causa, os muçulmanos esforçaram-se por apagar os focos de incêndio e investiram contra as chalupas com todas as armas de arremesso que encontraram à mão, obrigando-as mesmo a afastarem-se. A bordo, havia quem continuasse a tentar persuadir os cristãos a serem misericordiosos, sobretudo as mulheres, que gesticulavam fazendo oferta das suas jóias e carregando os filhos para que deles houvesse dó, mas também homens que insistiam nas propostas de resgate. [O comandante português] assistiu a tudo de semblantes imperturbável, ao contrário do que aconteceu a Tomé Lopes, a quem ocorreu a ideia que por aquele meio se poderia ter ganho o suficiente para “remir todos os cristãos que estavam prisioneiros no reino de Fez, e que depois ainda restariam grandes riquezas ao rei nosso senhor”.

Chegara-se, entretanto, ao dia 3 de Outubro, que o mencionado [Tomé Lopes] apontou como “uma data da qual me recordarei todos os dias da minha vida”. Tendo a nau em que ele se encontrava que partir em socorro das chalupas atacadas a partir da Mîrî, os muçulmanos redobraram o ímpeto ofensivo com o alento próprio de quem não tem nada a perder, excepção feita à honra. O objectivo que tinham em mente era conseguir a aproximação ao vaso luso, mais baixo, a fim de cometer uma abordagem, a qual acabou por ser concretizada.

O tinir das armas arrastou-se durante horas a fio, até ao cair da noite. Os adversário causaram fortíssima impressão pela tenacidade e pelo ardor que demonstraram na luta, ignorando até ao limiar do suportável as feridas que lhes iam enchendo os corpos ou indo de encontro à morte com absoluto desdém, único caso em que os gritos emudeciam nas respectivas gargantas. Em face de tamanha ferocidade, os cerca de quinze portugueses que defendiam o castelo da proa, na zona dianteira da nau, viram-se forçados a bater em retirada, todos eles feridos e derramando sangue. A situação estava longe de ser mais brilhante do lado oposto, no castelo de popa, onde havia homens a terem de se lançar à água e a serem recolhidos pelas chalupas, enquanto outros eram golpeados ou mesmo abatidos.

As coisas estavam neste estado periclitante quando interveio a nau Jóia, através de movimentações navais e de tiros de artilharia, que surtiram o efeito de obrigar os muçulmanos sobreviventes a retroceder para dentro da Mîrî. [O comandante português], cuja irritação devia estar ao rubro, resolveu então afectar cerca de um terço da armada à perseguição daquela nau. Ao fim de quatro dias inteiros consumou-se, finalmente, a respectiva destruição. Com bastante ironia à mistura, as labaredas que a devoraram foram ateadas por um desertor muçulmano, que antes nadara até à nau Leonarda de modo a chegar à fala e a acordo com [o capitão-mor da armada portuguesa], o que lhe permitiu salvar a vida. Deveras perturbado, Tomé Lopes registou: “e foi assim, após tantos combates, que com muita crueldade e sem nenhum piedade o Almirante fez queimar esta nau com toda a gente que aí se encontrava”.

Como a Mîrî não era um vaso de guerra e, de qualquer modo, não havia guerra declarada entre Portugal e a nação a que a Mîri pertencia, o ataque é um acto de pirataria e não de corso, por muito que tenha sido perpetrado por uma armada portuguesa e não por um capitão privado. O comandante da armada portuguesa, cujo nome fui omitindo até agora, num artifício retórico primitivo de criação de suspense, era Vasco da Gama, agora na sua segunda viagem à Índia na nova qualidade de Almirante e Dom, que recebera como recompensa da primeira e que viria a ser vice-rei do estado da índia em 1524. Um herói nacional, portanto, um pilar dos mitos nacionalistas portugueses. Mas duvido que haja muitos portugueses actuais, por mais nacionalistas que sejam, que não fiquem surpreendidos com a acção de Gama, e menos ainda que encontrem maneira de a aprovar.

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Num conto de ficção científica de cordel que escrevi há alguns anos, a narradora e personagem principal, uma dinamarquesa chamada Rikke, recebe, no dia do seu 29º aniversário, em 1985, uma carta que o seu ex-namorado Ib, agora exilado no passado, lhe escreveu em 1806. O penúltimo parágrafo da carta diz o seguinte:
Finalmente, quero dizer-te que o tempo é uma dimensão tão duramente material como o espaço. Viver noutro tempo é como viver noutro lugar. Não há nada tão estúpido no nacionalismo como procurar no passado uma identidade, porque os nossos ancestrais eram tão diferentes de nós como as gentes de longe. Uma das coisas que me faz querer sair daqui e ir à aventura para as Américas é sentir-me tão pouco à vontade neste país. Nota que nem sequer é por causa das condições de vida concretas, que também são às vezes chocantes para um dinamarquês do futuro – doença, uma falta de higiene enorme, repressão, censura. Isso é o menos. É mesmo a maneira de ser da gente que é estranha. Pensam e agem de uma maneira que eu não compreendo, riem-se de coisas que não percebo – sem exagero absolutamente nenhum, não me sinto em nada mais próximo desta gente do que me sentia da gente local, quando vivi na Índia, ou dos peruanos ou bolivianos, quando andei a dar aquela grande volta pelos Andes.
É uma história de ficção científica de cordel, mas o que neste parágrafo se afirma não é ficção nenhuma. Ficção é o contrário, pretender-se que existe alguma coisa suficientemente estável através da história dos povos de um determinado lugar para justificar uma identidade. É essa a ficção básica em que assenta o mais das vezes o conceito de pátria, ou nação: a ideia de uma história que é nossa, como se a cultura portuguesa, por exemplo (seja lá o que for que isso queira dizer…) e os protagonistas dessa “nossa” História estivessem, afinal, fora da História, e um português do século XV fosse, com a sua cultura portuguesa do séc. XV, um ser mais próximo de um português do séc. XX, do que este é de um indiano ou de um canadiano actuais. Mesmo a língua, que serve muitas vezes de espinha dorsal a essa ficção, era tão diferente da que a agora se fala que muitos portugueses de hoje não a reconheceriam, se a ouvissem falada, como sendo português…

Pelo que observo à minha volta, custa muito à maior parte das pessoas aceitar o que eu acabo de dizer. Das mais variadíssimas formas, a questão da identidade histórica parece inquestionável. Às vezes com um sinal claramente positivo (o orgulho nacional dos “nossos” feitos grandiosos), às vezes com um sinal claramente negativo (o denunciar dos “nossos” crimes históricos), assume-se quase sempre, explícita ou implicitamente, a existência de um nós trans-histórico. Que insisto eu, é ficcional…

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Há outro conto meu que acaba assim:
Enquanto não vinha o autocarro, que só devia chegar lá para a meia noite, Niklas foi beber umas cervejas num bar que havia mesmo ao lado da paragem.
O bar estava quase vazio. Havia um tipo sentado ao balcão, que mirou Niklas de alto a baixo quando ele entrou, e um casal numa mesa ao fundo, a namorar. Niklas sentou se a uma mesa em frente ao balcão e pediu uma cerveja.
O homem que estava sentado ao balcão levantou-se e veio sentar-se à mesa dele.
“Posso?”, perguntou ele, já depois de se ter sentado.
“Esteja à sua vontade”, respondeu Niklas, um bocado contrariado, porque não estava com muita disposição para conversas.
“Você não é daqui, pois não?”
“Não, sou de muito longe. Estou aqui só de passagem. Aliás, estou só à espera do autocarro?”
“Donde é que você é?”
“Da Suécia. Sabe onde é que isso fica?”
“Na Europa. Você é europeu...”
“Exactamente....”
“E o que é que veio fazer aqui?”
“Ora, passear, dar uma volta...”
“Eu estive na Europa, sabe... Estive em Espanha e em França. Trataram-me como se eu fosse merda, só por eu ser assim como sou... Eu sou índio, não vê?”
“Há muita estupidez dessa na Europa. É triste.”
“É triste? Então você é europeu e está-me a dizer que é triste?”
Havia agora uma nítida agressividade na fala e na postura do homem, que se tinha chegado à frente, antebraços e peito apoiados na mesa.
“É o que eu acho...”, respondeu Niklas, que tentava acalmar-se.
“Os europeus vieram aqui e tiraram-nos tudo. Tudo! E agora dizem que querem ajudar-nos... Vêm com programas de auxílio, que vontade de rir...”
“Mas não foram os europeus todos que colonizaram a América...”, contestou Niklas, não sem algum orgulho nacionalista.
“Não foram todos? Foram todos, meu amigo, todos – espanhóis, portugueses, franceses, holandeses, alemães, diga lá quem é que não foi?”
“A Suécia nunca teve colónias na América.”
“Ora, vá contar isso a outro! Levaram-nos tudo e agora tratam-nos como merda nos países deles. Vocês, europeus, enquanto houver um índio vivo, não descansam enquanto não lhe tirarem tudo. Tudo!”
Niklas não se conteve mais. Chegou-se ele também à frente e começou a falar mais baixinho, mais pausadamente, num tom ameaçador.
“Oiça uma coisa, meu amigo. Eu estava aqui muito sossegadinho a beber a minha cerveja, não me meti consigo nem com ninguém. Eu não sou os europeus, ‘tá a ouvir? Eu sou uma pessoa que é diferente de todas as outras pessoas e eu, eu, nunca lhe fiz mal nenhum a si nem a ninguém nesta terra, e não lhe admito, ‘tá a perceber?, não lhe admito que me venha agora acusar do que fizeram outras pessoas que eu não conheço e não sei quem são! Por isso, conversa acabada! A mim, você só me pode acusar do que eu tiver feito, eu, mais nada!”
Parou um momento, e continuou, já mais calmo:
“Diga lá, se o seu avô tiver cometido algum crime, você acha que pode pagar por isso?”
O outro levantou-se.
“Pois está claro que posso! Porque é que não hei-de poder?”
“Ora, você está mas é com os copos, deixe-me lá sossegado! Além disso, se lhe interessa saber, também nenhum avô meu veio para a América do Sul...”
“Os europeus são todos ladrões...”, murmurou o outro enquanto se sentava outra vez ao balcão, ainda virado para o Niklas, “roubaram-nos o ouro, a prata, tudo...”
Niklas pagou e saiu. E teve de ficar muito tempo cá fora à espera: o autocarro, nessa noite, chegou atrasado quase duas horas.
A questão da responsabilidade histórica é complexa e não a vou discutir agora. Em princípio, porém, creio que cada um é culpado dos seus actos apenas, mesmo que admitamos que existem responsabilidades colectivas; porque essas responsabilidades colectivas, a existirem, só podem ser assumidas pelo colectivo, o que é muito diferente de uma assunção individual multiplicada pelos indivíduos que formam esse colectivo. A conversa do parágrafo anterior baseia-se em acontecimentos reais e, das várias vezes que fui acusado de “colonizador” nunca consegui descobrir em mim nem o mais pequeno sentimento de culpa – pela simples razão de que eu não tenho, de facto, culpa nenhuma de nenhuma colonização.

Além disso, se todas as colonizações que conheço são altamente condenáveis, é porque são sistemas ditatoriais e normalmente racistas de imposição do domínio de uma minoria. Toda a tentativa de fazer assentar a recusa do colonialismo e a defesa do direito à autodeterminação em conceitos de tipo nacionalista (a partir de critérios de identidade histórica, étnicos ou de anterioridade na ocupação de um território) em vez de a fazer depender de conceitos morais está, a meu ver, sujeito às contradições de todo o nacionalismo. Ora de facto, o direito à autodeterminação não precisa de nenhuma justificação daquele tipo – é apenas uma extensão natural do direito básico de cada pessoa a decidir sobre a sua vida, já que é apenas o direito de uma comunidade a decidir sobre a sua vida.

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Quanto mais penso no assunto, mais chego à conclusão de que a única solução para as contradições dos conceitos de identidade nacional, étnica e afins é uma versão radical (radical significa que vai à raiz da questão!) do conceito republicano de cidadania: o nós da cidadania é “as pessoas que vivem no mesmo espaço que eu”.

Pode haver, naturalmente, haver diferentes círculos de identidade, concêntricos ou não, e é claro, que pode haver outros tipos de identidade. As ideológicas, por exemplo: posso, a esse nível, identificar-me com todos os materialistas, cépticos e ateus em todos os períodos da História e todos os lugares da Terra. Mas dessa conversa não fazem parte essencial topónimos e gentílicos…

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* Sobre as fontes, diz a obra referida: «Os eventos […] foram registados a posteriori pela pena de cronistas de referência [V. Ásia, I, vi, 4; História, I, I, xlv, e Damião de Góis, Crónica d’El-Rei D. Manuel, vol. I, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1949, I, lxviii], mas a narrativa que se destaca pelos pormenores discriminados e pela eloquência das palavras foi assinada por uma testemunha ocular, Tomé Lopes, escrivão da nau capitaneada pelo florentino Giovanni Buonagrazia [Perdeu-se o rasto ao texto original redigido em língua portuguesa. O conhecimento do respectivo teor ficou assegurado para a posterioridade através de uma tradução italiana, dada pela primeira vez à estampa, em Veneza, no ano de 1550, a qual integrava a famosa colectânea das Navigagazioni e Viaggi, organizada por Giambattista Ramusio. Reporto-me, todavia, à edição francesa contemporânea, subordinada ao título “Le récit de Tomé Lopes” e publicada no livro Voyages de Vasco da Gama: Relation des Expéditions de 1497-1499 et 1502-1503, eds. Paul Teyssier e Paul Valentin, com prefácios de Jean Aubin, Paris, Éditions Chandeigne, 1995, em particular aos capítulos vii a ix, pp. 222-231.].»

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