19/10/10

Eu acredito nas bruxas, mas que não existem, não existem

Nas notas finais a Land of mist, de 1926, escreve Arthur Conan Doyle o seguinte:
A história do Pithecanthropus [uma fantástica e aterrorizadora criatura ectoplásmica que aparece na história] é tirada do Bulletin de l'Institut Métapsychique. Uma senhora conhecida descreveu-me como se sentia a pressão da criatura entre ela e a pessoa que estava ao lado dela e como pôs a mão na pele peluda do ser. Pode encontrar-se um relato desta sessão em L'Ectoplasmie et la Clairvoyance de Geley (Felix Alcau), p.345. Na página 296, há uma fotografia de uma estranha ave de rapina sobre a cabeça do médium. Seria necessária a credulidade de um MacCabe para imaginar que tudo isto é impostura. Estes vários tipos de animais podem assumir formas muito estranhas. Num manuscrito por publicar do Coronel Ochorowitz, que tive o privilégio de ver, descrevem-se algumas evoluções que não só são formidáveis como também diferentes de qualquer criatura que conheçamos. Dado que formas animais desta natureza se materializaram na presença dos médiuns Kluski e Guzik, a sua formação parece antes depender de um dos presentes na sessão do que dos médiuns, a menos que os possamos desligar completamente do círculo. Costuma ser axioma entre espiritualistas que os espíritos que visitam um círculo representam de alguma forma a tendência mental e espiritual do círculo. Assim, em quase quarenta anos de experiência, nunca ouvi uma palavra obscena ou blasfema numa sessão, porque essas sessões têm sido realizadas de uma forma reverente e religiosa. Pode então surgir a questão: as sessões que sejam realizadas para fins puramente científicos e experimentais, sem o menor reconhecimento da extrema religiosidade do seu significado, não podem evocar manifestações menos desejáveis de força psíquica?
Quem não conheça esta faceta de Arthur Conan Doyle ficará com certeza espantado – então ele acreditava em espiritismo? Creio que há que compreender o espírito da época e a crença difundida entre vários intelectuais desse tempo que os fenómenos paranormais, nomeadamente a existência de entidades espirituais sob a forma de ectoplasmas eram, afinal, fenómenos naturais e a que a ciência podia vir a dar uma explicação razoável. Mas interessa-me notar, no discurso de Conan Doyle, esta interessante observação: Não será que, se quisermos só estudar racionalmente o além, sem a reverência religiosa que se deve aos espíritos, o além nos tentará dissuadir de tal atitude blasfema mandando-nos o que de mais perigoso e assustador lá tem? Há alguma originalidade neste raciocínio. A asserção mais comum entre cultores do paranormal quanto à dificuldade do seu estudo científico é, estou eu em crer, que os espíritos não se manifestam a quem não creia neles – a eventuais cientistas presentes para medir energia psíquica ou para os filmar, por exemplo.

A crença na possibilidade de estudo científico do paranormal nasceu em meados do séc. XIX com as teorias espíritas de Kardec e conseguiu atrair gente ilustre e intelectual e até alguns cientistas, como Charles Robert Richet, Nobel de Medicina. Creio não me enganar muito se disser que veio depois a popularizar-se mais no âmbito da chamada contracultura dos anos 60, através de vários best-sellers que difundiam ideias sobre a possível origem extraterrestre de formas “alternativas” de conhecimento e de energia, e teorias afins. O mercado de livros foi inundado por obras que punham outra vez a tónica no paranormal (só a expressão paranormal merece uma análise filosófica cuidada, mas deixo-a às minhas leitoras e aos meus leitores, que a farão sem dúvida tão bem como eu…) como área de investigação científica. E porque não havia de o ser? Bem vistas as coisas, tudo é passível de estudo científico. As conclusões dos estudos rigorosos é que podem ser decepcionantes para muita gente... Pode chegar-se à conclusão, por exemplo, de que não há ali nada a estudar que não sejam crenças e superstição e que deve ser, portanto, a antropologia ou a sociologia a fazer o seu trabalho e não a física nem a biologia…

Uma história exemplar, que acho que toda a gente devia conhecer e que por isso, aqui divulgo, é a de Susan Blackmore, a psicóloga que escreveu Consciousness: An Introduction. Digo divulgo, porque não sou eu que a conto, limito-me a dar a palavra à própria Susan Blackmore. O texto que se segue é uma tradução do texto originalmente publicado como resposta à pergunta anual do World Question Center de Edge.org para 2008 "What have you changed your mind about?", “Sobre que mudou de opinião?”.
Ora imaginem-me lá no Oxford de 1970; acabada de entrar para a faculdade, vibrando com o ambiente intelectual, a roupa freak, quartos a cheirar a incenso, noitadas, aulas de manhãzinha, e a abertura de espírito que a cannabis me dava.

Entrei para a Sociedade de Pesquisa Psíquica e fiquei fascinada como ocultismo, os médiuns e o paranormal – ideias que chocavam perturbadoramente com a fisiologia e a psicologia que eu andava a estudar. Uma noite, aconteceu então uma coisa muito estranha. Estava sentada com amigos, a fumar, a ouvir música e a curtir a vívida imagem de descer muito depressa por um túnel escuro em direcção a uma luz brilhante, quando um amigo meu falou comigo. Não consegui responder.

"Onde estás tu, Sue?", perguntou ele, e, de repente, parecia que eu estava no tecto a olhar cá para baixo.

"Projecção astral!", pensei e foi então que eu (ou algum eu voador imaginado) parti em viagem sobre Oxford, sobre o país e bem mais além. Durante mais de duas horas, mergulhei por estranhas cenas e estados místicos, livre do tempo e do espaço e acabando por me perder a mim própria. Foi uma experiência extraordinária, dessas que mudam a vida de uma pessoa. Tudo aquilo parecia mais luminoso, mais real e com mais sentido do que as coisas da vida normal e eu queria compreendê-lo.

Mas tirei de repente todas as conclusões erradas. Duma forma talvez compreensível, parti do princípio que o meu espírito tinha saído do corpo e que isso provava tudo e mais alguma coisa – a vida depois da morte, a telepatia, a clarividência e muito, muito mais. Decidi, com aquele esplêndido excesso de confiança típico da juventude, tornar-me parapsicóloga e provar que todos os meus tacanhos professores de ciências estavam enganados. Arranjei um lugar para doutoramento, comecei a ganhar dinheiro para o pagar dando aulas e comecei a testar a minha teoria da memória de Percepção Extra-Sensorial. E foi aí que mudei de ideias – e de sentimentos e de tudo o mais.

Fiz as experiências. Testei telepatia, precognição e clarividência; só obtive resultados aleatórios. Formei outros estudantes em técnicas de visualização mental e testei-os de novo; resultados aleatórios. Testei gémeos aos pares; resultados aleatórios. Trabalhei em infantários com crianças muito jovens (as mentes naturalmente telepáticas das crianças ainda não foram deformados pela educação, estão a ver?); resultados aleatórios. Aprendi a ler o tarot e testei as leituras; resultados aleatórios.

De vez em quando, tinha algum resultado significativo. Oh que excitação! Reagia, como penso que qualquer cientista reage, verificando possíveis erros, voltando a calcular as estatísticas e repetindo as experiências. Mas acabava sempre por encontrar o erro responsável ou não conseguia reproduzir os resultados. Quando o meu entusiasmo esvanecia ou começava a duvidar das crenças de que partira, havia sempre mais qualquer coisa a tentar – sempre alguém me dizia "Mas deves tentar xxx". Demorei provavelmente três ou quatro anos a gastar todos os xxx.

Lembro-me do momento exacto em que tive esse clique (ou devo antes dizer "Parece que me lembro…", não vá tratar-se se uma falsa recordação de uma revelação). Estava deitada na banheira a tentar fazer encaixar os meus últimos resultados nulos na teoria do paranormal, quando me ocorreu pela primeira vez que podia estar completamente enganada e terem razão os meus professores. Talvez não houvesse nenhuns fenómenos paranormais.

Ao que me lembro, demorei algum tempo a aceitar este assustador pensamento. Fiz mais experiências e obtive mais resultados aleatórios. Os parapsicólogos chamavam-me uma experimentadora psi-inibitória, querendo com isso dizer que não obtinha resultados paranormais porque não acreditava o suficiente.
Aqui temos, mais uma vez, a estranha ideia que referi atrás de que, embora os fenómenos paranormais sejam reais e observáveis, só o são de facto se acreditarmos neles, ou seja, são só observáveis por aqueles a quem eles não precisam de ser provados, porque crêem neles à partida. A fé é mais bela do que Deus, como dizia Claude Nougaro (e Lutero era capaz de quase concordar…). Mas voltemos à história de Susan Blackmore, para a concluir:
Estudei os resultados de outras pessoas e encontrei mais erros, e fraude pura e simples. Quando acabei o meu doutoramento, já me tinha tornado céptica.

Até àquela altura, toda a minha identidade estava ligada ao paranormal. Tinha posto de lado um bom doutoramento e tinha dado cabo da possibilidade de fazer carreira na Academia (como o meu orientador em Oxford gostava de dizer). Tinha andado à caça de fantasmas e poltergeists, tinha estudado para bruxa, tinha frequentado igrejas espiritualistas e tinha ficado a cismar diante de bolas de cristal. Agora, isso era tudo para deitar fora.

Depois de tomada a decisão, até foi de facto bastante fácil. Como muitas grandes mudanças na nossa vida, esta era assustadora antes de realizada mas revelou-se simples. Rapidamente me tornei "céptica de aluguer" e comecei a aparecer na televisão a explicar como funcionam as ilusões, porque é que não existe telepatia e como explicar experiência de quase-morte através do que se passa no cérebro.

O que mantenho até hoje é um tipo de abertura às provas. Por muito que acredite firmemente numa teoria (sobre a consciência, os memes ou seja lá o que for); por muito que me identifiquem com uma determinada posição ou determinado postulado, sei que o mundo não se desmorona se tiver de mudar de ideias.
Num estudo realizado há relativamente pouco tempo, demonstrava-se que, nos Estados Unidos, os ateus sabem mais sobre religião dos que os crentes. A explicação dada ao New York Times por Dave Silverman, presidente da associação American Atheists, é que é porque sabem de religião que as pessoas se tornam ateias: "Dei uma Bíblia à minha filha e agora ela há-de tornar-se ateia", diz ele. É capaz de haver um fundo de verdade na brincadeira. E o raciocínio parece aplicar-se bem ao domínio do paranormal: a melhor maneira de deixar de acreditar nele é começar a estudá-lo. Ou, dito de outra maneira: basta observar um pouco à nossa volta e é claro que as pessoas que ainda acreditam nas várias paranormalidades que por aí adejam nunca fizeram tentativas de demonstrar a sua existência de forma organizada e convincente.

Além disso, se se pode mesmo provar a existência do paranormal, quem é capaz de o fazer é muito desligado dos bens materiais. Há prémios no valor total de mais de 2,6 milhões de dólares, oferecidos por associações de cépticos e racionalistas a quem apresente estas provas, mas estão todos por receber. É claro, pode-se sempre argumentar que os ectoplasmas não se rebaixam ao ponto de se deixar fotografar para fins tão vilmente materiais…

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