07/01/12

Acordo ortográfico: quase sempre mais emoção do que observação

Encontrei no blogue Linguagista, de Helder Guégués, um excerto de um texto de José Soares sobre a nova ortografia*:
Neste Acordo Ortográfico, dito de 1990, aparecem normas e directivas que, por uma certa racionalidade conservadora, contesto. A razia que faz às letras que se não dizem ou lêem e o concomitante apagamento de alguns diacríticos produzem em mim um certo desconforto. É o caso de vocábulos até aqui terminados em -ecto, como directo, recto, tecto, etc., que agora se escrevem direto, reto, teto, etc. Ora, não conhecendo eu as novas regras ortográficas (e mesmo conhecendo-as), posso muito bem (ou muito mal) ler e dizer dirêto, rêto, têto, etc., que é assim que, predominantemente, se lêem ou dizem as palavras em -eto, como folheto, amuleto, esqueleto, etc. É que não foi revogado, nem por fundamentação pertinente da Academia nem muito menos pelo costume, a regra implícita tradicional e etimologicamente correcta do valor fonético daquela consoante c, que faz(ia) abrir a vogal precedente. Mas penso que são incontáveis as razões de reparo que o Acordo oferece. Ou será que passa a ser indiferente qualquer modo de acentuar a tónica como muito bem nos apetecer?
Surpreende-me que, havendo outras críticas que se podem fazer ao acordo, se critique sempre e apenas o desaparecimento das chamadas consoantes mudas e dos sinais que marcam aberturas de vogais. Surpreende-me ainda mais que se argumente sempre que o acordo torna mais ilógica a relação entre a escrita e a fonética, como se existisse uma relação lógica desse tipo na ortografia anterior. E surpreende-me que se argumente com base em impressões apenas. A verdade é que este tipo de argumentos é, quase sempre, tão pouco assente em reflexão cuidada e em observáveis que uma pessoa que, como eu, preze o rigor na discussão das coisas da língua tem de reagir. Senão, vejamos:

Diz José Soares que “é [com ê] que, predominantemente, se lêem ou dizem as palavras em eto, como folheto, amuleto, esqueleto, etc.”. Bom, é verdade que talvez haja uma ínfima predominância, mas tão ínfima que é falacioso apresentá-la como ele a apresenta. É que, dito assim, quem não tenha o cuidado de verificar a afirmação de José Soares (como ele próprio, pelos vistos, não teve) ainda acredita que é significativa essa predominância. E não é: fiz uma lista (forçosamente incompleta) de 133 palavras em -eto, e 65 têm o som [é] – o [ê] ganha por 3**!…

É impossível fazer uma lista definitiva de vocábulos em -eto, e, conforme a lista que se faça, a percentagem de palavras com [é] variará ligeiramente. Por outro lado, muitos falantes do português hesitam na pronúncia de algumas palavras em -eto, sobretudo as muito raras, e há, como sempre, variações socioletais e dialetais nas pronúncia desta palavras. O que é prudente afirmar, porém, não é o que José Soares afirma, mas sim que há sensivelmente o mesmo número de palavras terminadas em -eto com [ê] e com [é]. Além disso, alguns dicionários consideram [é] a pronúncia não marcada, porque assinalam as formas com [ê] e eu acho estranho que isto, por muito que nos pareça decisão discutível (a mim, parece-me), não mereça reparo de quem escreve sobre o tema…

Mas voltemos à suposta predominância de -[êto] relativamente a -[éto]. Na lista que fiz, o que faz pender ligeiramente a balança para o lado do [ê] são os nomes com o sufixo eto (28 na minha lista): brometo, cloreto, dueto, terceto, etc. Se analisarmos por categoria, vemos que os adjetivos têm maioritariamente [é] (as exceções são obsoleto, palheto e preto, e os raríssimos peto e careto) e, nas formas verbais, há também uma claríssima maioria de [é]. Não fossem os verbos da família de meter (prometer, submeter, remeter, etc.) e seriam uma esmagadora maioria.

Quanto a teto, é curioso, existem já duas formas, teto, a língua, e teto, forma rara, variante de teta, com pronúncias diferentes do e, pelo que tecto sem c apenas se torna igual a uma delas…

O que é estranho neste tipo de críticas*** é que há nelas implícita uma proposta de outro acordo ortográfico e surpreende-me que ninguém proponha explicitamente o que se deduz forçosamente do texto de José Soares: se a forma natural de ler a sequência -eto em final de palavra é [êto], e se directo não deve passar a ser direto, porque assim se passa a ler [dirêto], então completo, concreto, quieto, decreto e neto (e mais 60 palavras, na minha lista forçosamente incompleta) devem passar a escrever-se complecto, concrecto, quiecto, decrecto e necto, para se lerem como já se leem. Ou complepto, concrepto, quiepto, decrepto e nepto, não sei… E, de facto, uma destas forma justifica-se etimologicamente: nepto. É assim que, muito provavelmente, alguns acham que se deveria escrever, mesmo que nunca o digam – pelo menos, aqueles que acham que óptimo não deve perder o p etimológico…
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*Situações incómodas em português”, in Público, 6.01.2012). Muito haveria a dizer sobre outras partes do texto de José Soares, mas limito-me aqui a comentar esta passagem.

** Eis a lista de palavras, feita a partir de uma lista obtida no site Poeta Vadio, Dicionário de Rimas: abeto, aboleto, acarreto, acolcheto, acometo, adieto, afreto, alfabeto, alfineto, amuleto, analfabeto, aquieto, arboreto, arremeto, arreto (n.), arreto (v.), asseto, atapeto, avioleto, beto, bisneto, breveto, brometo, calafeto, calceto, carapeto, carboneto, carbureto, careto (v.), careto (n.), carreto, cateto, cianeto, cloreto, cometo, completo (a.), completo (v.), comprometo, concreto, coreto, correto, decreto (n.), decreto (v.), derreto, descloreto, descomprometo, desinquieto, desinquieto, despoleto, discreto, dueto, embarreto, enceto, engaveto, espeto (v.), espeto (n.), espoleto, esqueleto, etiqueto, excreto (a.), excreto (v.), excreto (n.), faceto (n.), faceto (v.), feto, fileto, fluoreto, folheto, fosforeto, freto, garaveto, gaveto, gineto, graveto, greto, gueto, halogeneto, hidrocarboneto, incompleto, indiscreto, inquieto (a.), inquieto (v.), interpreto, intrometo, iodeto, irrequieto, jogueto, lanceto, largueto, libreto, maceto (v.), maceto (n.), magneto, marreto, meto, neto, neutreto, obsoleto, octeto, palheto (n.), palheto (a.), panfleto, paracleto, peto (n.), peto (a.), pirueto, poemeto, preto, prometo, quarteto, quieto, quinteto, reenceto, reinterpreto, remeto, repleto, retroceto, secreto, semianalfabeto, septeto, sexteto, soneto, submeto, sulfureto, telureto, terceto, teto (n. 1), teto (n. 2), tetraneto, vegeto, veto (v.), veto (n.), xereto.

*** Neste tipo de críticas, sublinho, isto é, nas críticas que assentam no pretenso desaparecimento de uma lógica fonética da ortografia pré-acordo. O que digo aqui não se aplica a uma crítica ao desaparecimento das consoantes mudas que se baseie na ideia de que só se deve legislar se houver necessidade de legislação e que, portanto, este acordo não deve existir, visto que não há necessidade de alterar a ortografia.

4 comentários:

  1. Foi-me providencial este seu comentário, pelo que tomei a liberdade de o citar numa discussão num grupo de tradutores (Portugueses Translators) do LinkedIn. Pensar incomoda como andar à chuva, já dizia o poeta! Não é verdade?

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  2. Por azelhice apareci como anónima, mas chamo-me Joana Caspurro

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  3. Já agora, que explicação há para se escrever Egito (era Egipto) e manter egipcio? E o reto serve para recto e repto? E o pato serve para pato (animal) e pato (pacto)?... Etc, etc, etc....

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  4. Caro Elias, a questão de Egito/egípcio é efetivamente linguística e não ortográfica. Independentemente de como se escreva, o nome do país é [iˈʒitu] e o gentílico ou adjetivo que corresponde a esse nome é [iˈʒipsju]. Acontece muitas vezes que duas formas com origem num mesmo radical chegam à fase atual da língua com diferenças nesse radical: uma forma mantém-se próxima do radical etimológico e outra evolui. Veja peito e expectoração, por exemplo. Mas não se costuma propor nenhuma «unificação» gráfica das formas (peito escrito com pecto, só para corresponder a expectoração?) Isto é muito comum nos topónimos e gentílicos, em que o gentílico é muitas vezes conservador: Braga, mas bracarense, Évora, mas eborense, etc., etc. O caso de Egito e egípcio é igual: o /p/ manteve-se no gentílico, mas desapareceu no topónimo. Mais uma vez, nunca ouvi ninguém propor que se escreva Brácara ou Ébora, para não haver discrepância entre os radicais de topónimo e gentílico, mas muita gente parece preocupada com a mesma discrepância em Egito e egípcio. Voltamos ao mesmo: mais emoção que observação.

    Quanto a repto e pacto, o AO90 não introduz qualquer alteração na grafia dessas palavras (ver aqui, por favor). Nem podia haver a alteração que diz existir – em nenhuma proposta ortográfica, seja lá ela qual for. De facto, há casos em que a pouca transparência da grafia leve a que se escrevam certos sons com letras que não os representam diretamente, mas não conheço nenhum caso em que haja sons não escritos que tenham de ser reconstituídos na leitura. A sua afirmação é, assim, duplamente grave, porque significa que não conhece o AO90 e o critica sem o conhecer, mas também que não tem uma ideia clara do que é um sistema ortográfico. Voltamos sempre ao mesmo: mais emoção…

    Com os meus melhores cumprimentos,

    Vítor

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