29/10/12

Música deste mundo e do outro



1. O que está ele a dizer?
 Provavelmente, acontece-vos o mesmo: quando apresento a alguém uma cantora ou um cantor que cante em dinamarquês ou sueco, por exemplo, fazem-me frequentemente um comentário do tipo: «É bonito, sim senhor, apesar de não perceber nada do que está a cantar…»
Acho isso muito curioso. As mesmas pessoas nunca fazem esse comentário, se a canção for em inglês, francês, italiano ou espanhol, por muito que (eu sei) na maior parte dos casos também não façam a menor ideia do que é cantado nessas línguas. Seria interessante estudar que estranha programação mental nos leva a organizar a alteridade de tal maneira que aceitamos não compreender as letras das canções nas línguas que ouvimos com mais frequência e estranhamos a incompreensão se as canções forem cantadas numa língua menos habitual – desde que não seja exótica, isto é, radicalmente outra. É que (provavelmente, acontece-vos o mesmo), se a canção for em chona, tagalo ou aimara, ninguém faz o mesmo comentário!

2. Música de que mundo?
Outra questão que merece escrutínio moral é a da chamada música do mundo – ou world music, se preferirem (estou convencido de que se usa mais, no discurso em português, a expressão original inglesa que a sua tradução em português, mas não tenho a certeza…).
Não tenho nada contra chamar-se música do mundo a projetos expressos de fusão de música de todos os lugares do mundo. É, muitas vezes, música que não me agrada por aí além, mas, enfim, não vejo que chamar-se assim tenha implicações morais. O que tem implicações morais e me desagrada profundamente é a instituição da categoria música do mundo para referir, pura e simplesmente, toda a música que não venha de países anglo-saxónicos ou não seja pop rock cantado em inglês. E é assim que se usa hoje a expressão: um grupo alemão que cante em inglês não é world music, como não é world music a música country americana – mas um cantautor alemão é quase sempre categorizado como world music e a pop andina de grande público também. Por um lado, a classificação estabelece um padrão discriminatório de “normalidade”, amalgamando tudo o que sai fora dessa “normalidade”, quase sempre sem nenhum critério que não seja a sua origem geográfica; por outro lado, para sofisticar a discriminação, reserva uma classificação rica, com uma quantidade enorme de subgéneros, para a música que não é world music: a soul music divide-se em Motown soul, Southern soul, Northern soul, Memphis soul, New Orleans soul, Chicago soul, Philadelphia soul, psychedelic soul, blue-eyed soul e nu soul (pelo menos), mas um an dro bretão ou uma polca da Carélia são ambos… world music.

[Evidentemente, há mais quem ache que a expressão world music é ofensiva.]

3 comentários:

  1. World music é claramente um termo xenó-discriminatório, será excessivo classificá-lo como xenófobo pois não representa uma fobia, apenas uma classificação nacional-estrangeiro. Já é mais estranho que os não anglo-saxões usem a classificação mas é mais uma manifestação do domínio cultural da super-potência. Situação análoga se passa com a classificação das "etnias" que habitam os Estados Unidos da América (do Norte), existem os afro-americanos cujos antepassados vieram de África, os Latinos cujos antepassados vieram ou da Ibéria ou da América central ou do Sul, os Native-Americans que descendem de quem já lá estava quando chegaram os europeus e oa Americanos propriamente ditos que, por questões de simetria se deveriam chamar Euro-americans. Por vezes chamam-lhes Caucasianos que é um eufemismo para WASP (White Anglo-Saxon Protestant).

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  2. Na França chamam-lhe "musique du monde" - o que é engraçado, porque a própria música francesa é musique du monde.

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  3. Obrigado pelos vossos comentários, j.j.amarante e Helena. Concordo com o comentário de j.j.amarante: há uma estranha falta de simetria no surpreendente cosmos estado-unidense... Helena, creio que não é só em França que isso acontece, que nas lojas de discos de muitos países se encontra a música tradicional, digamos assim, desse país numa secção designada com a tradução da expressão música do mundo. Não Alemanha não, já percebi.

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