10/11/12

Uma osteria romana



Carl Bloch, Fra et Romersk Osteria (“De uma Osteria Romana”), 1866. Óleo sobre tela, Museu Nacional de Arte da Dinamarca, Copenhaga
Já ouvi dizer ou já li alguma coisa sobre o erotismo do quadro, a sua riqueza de pormenores, a seu dramatismo, o seu caráter popular, o seu cunho misterioso, os estereótipos que encerra, e mais… Mas nunca li nem ouvi o que me veio à cabeça quando o conheci e apeteceu-me, por isso, escrever um textinho sobre ele para esta Travessa que nunca teve textos sobre pintura[1].
O que salta à vista são os olhares das figuras fixos no olhar do espetador. Bom, não é nada de novo, é uma caraterística de muitos retratos, e não só, e cria, muitas vezes, um efeito especial. E o especial aqui, creio eu, é que esse truque cria uma história, ou uma reserva de histórias, à disposição do espetador. A ideia que tenho é que, em vez de descritivo, como os quadros figurativos quase sempre são, este quadro é essencialmente narrativo. Há quadros que evocam uma história, mostrando um episódio dessa história, mas este não evoca nenhuma história conhecida – ele conta uma história que não existe em mais lado nenhum. Quem vê o quadro pode ser apenas espetador em segunda mão de algo vivido ou imaginado pelo autor do quadro. Nesse caso, é como ler um conto contado na primeira pessoa. Agora, quando se lê um conto contado na primeira pessoa, o leitor não pode usurpar o lugar do narrador, porque não sabe o que vem a seguir – precisa do narrador, sem ele não há história. Aqui, como é uma narrativa sem fio narrativo, digamos assim, uma narrativa que é toda contada como um instante apenas, o espetador pode decidir ser ele a personagem da história, pode deitar fora o narrador e ocupar o seu lugar. De qualquer forma, precisamente porque só lhe é dado um momento preciso dessa história, é o espetador que tem de a rematar, de construir os seus pormenores, e, para isso, tanto faz imaginá-los vividos ou inventados por Carl Bloch como imaginá-los vividos por ele próprio, espetador.
É preciso dizer que o truque não foi inventado por Carl Bloch. Bloch limitou-se a dar nova vida a uma ideia que o seu compatriota e professor Wilhelm Marstrand tinha tido 18 anos antes.
Wilhelm Marstrand, Pige, der byder den indtrædende velkommen (“Rapariga dando as boas vindas a uma pessoa que entra”), 1848. Óleo sobre tela, Nova Gliptoteca Carlsberg, Copenhaga
No site da Galeria Nacional da Dinamarca, diz-se que o quadro de Bloch é “uma versão intensificada” da pintura de Marstrand. É uma boa maneira de o dizer, acho eu. Também me parece que o quadro de Marstrand, bonito e interessante que é, não tem a mesma intensidade. Nem a mesma capacidade de produzir histórias. É certo que o facto de ter um título também não ajuda nada – é uma “rapariga dando as boas vindas a uma pessoa que entra”[2] e parece que não pode ser muito mais… Bloch introduz o elemento masculino e introduz, sobretudo, o que me parece o fundamental do quadro: a indefinição das expressões, incluindo a indefinição da gestualidade. Não que os rostos e as posturas não sejam bem expressivos, que o são, mas que expressões têm? São inúmeras as interpretações possíveis. Creio, aliás, que, quando se diz que o quadro é misterioso, é esse um dos principais elementos constituintes do seu mistério, talvez o principal. Surpresa, desafio, sensualidade, reconhecimento, sedução, temor, tudo é possível ali ver. Não importa a idade, o género, a origem ou o estado de espírito da pessoa que olha para o quadro; se decidir que é ela e não Bloch que entra na sala – ou seja, se decidir entrar no quadro, fazer parte dele –, a reação das três personagens faz sempre sentido. Há muitas histórias disponíveis, passa-se sempre ali qualquer coisa. 
Mas, claro, nada disto é para ser levado muito a sério, isto sou só eu a delirar: é o que me veio à cabeça quando conheci o quadro de Bloch.
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[2] De facto, o título é ambíguo, porque não se sabe se “a pessoa que entra” é uma pessoa concreta (ela deu as boas vindas a esta pessoa que entrou) ou virtual (ela dá sempre as boas-vindas a seja lá quem for que entre e esta é apenas uma das ocorrências dessa saudação), mas o que digo continua a fazer sentido mesmo com a segunda leitura.

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