25/11/12

Calão, dinheiro e comida

O linguista francês Louis-Jean Calvet escreveu uma vez um artigo[1] em que explicava que muitas expressões para designar o dinheiro vêm do campo semântico da comida. Calvet regista sobretudo expressões da sua língua: artiche, uma abreviatura de artichaut, “alcachofra”; avoine, “aveia”; blé, “trigo”; braise, “brasa”; carme, um tipo de pão branco, termo que viria de carmelitas[2]fric, abreviatura de fricot ou fricassée, preparados culinários; gallette, “bolacha, bolo”; grisbi, tipo de pão escuro; oseille, “azeda”, planta comestível; pèse, de pèzète, palavra occitana para dizer “ervilha” (e não da moeda peso, como eu sempre pensei); e pognon, um biscoito da região de Lyon. E referia também grano e grana, em italiano, e dough, “massa” e bread, “pão” em inglês.
Nada disto parece muito extraordinário, se tivermos em conta que é sobretudo para comer que o dinheiro serve. Não só, é claro, e sobretudo nas sociedades de abundância, mas foi sobretudo para a bucha que ele sempre mais fez falta, e é assim que continua a ser na maior parte dos sítios do mundo. É certo que nem só de pão vivem mulheres e homens, mas primeiro a paparoca, ou não?
Ora, há uns meses, surgiu espontaneamente, no meu mural de Facebook, uma coleção de sinónimos de dinheiro. Reduzindo-a às expressões familiares (ou de gíria ou calão, enfim, as que não se usam normalmente em situações formais) e deixando de lado expressões que só se usam em construções específicas[3] ou em expressões fixas[4], fico com duas dúzias de expressões[5]: aquilo com que se compram os melões, arame, bago, bagaço, cacau, carcanhol/carcanhóis, caroço, chelpa, gimbo, graveto, guita, guito, maçaroca, massa, milho, narta, nota, papel, pasta, pastel, perné, pilim, pingo e taco. Destas 24, só 6 tem uma relação óbvia com comida. Talvez se possa ver também comida em bagaço e cacau – e, com boa vontade, em pingo…–, se incluirmos a bebida na comida, mas é duvidoso… (E também não faço ideia de onde venham gimbo e chelpa, quem sabe se não se comerão… )
Enfim, parece que a comida não é um campo tão produtivo para a criação de palavras para dizer dinheiro em português como é em francês. Calvet diz, no artigo citado, que “a língua tem as raízes na sociedade, fala-nos dela e testemunha a sua evolução”. Se calhar – pode talvez pensar-se, partindo dessa ideia – os portugueses têm menos palavras de comida para dizer dinheiro porque gastam menos dinheiro na alimentação que os franceses, por exemplo – quer dizer, porque o dinheiro é menos comida, para eles, e mais outras coisas não comestíveis… Bom, o que as estatísticas dizem é precisamente o contrário [6]. A razão há de ser outra… Ou então, bem pode ser que não haja nenhuma razão especial…
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[1] “T’as pas cent balles…”, in Le Français dans le monde, n°210, julho de 1987. Tenho o artigo em fotocópias desde essa altura e fui redescobri-lo há pouco tempo. Além de mostrar que a cópia ilegal (ai, ai, ai…) já é uma coisa muito antiga, isto mostra também que há fotocópias que resistem a 7 mudanças de casa – incluindo 5 mudanças de continente – e a um incêndio…
[2] Devo confessar que, por muito que me julgue bastante conhecedor de calão francês, não conhecia carme, que deve ter desaparecido da língua corrente antes de eu ter começado a ter contacto com ela. Mas não há dúvida de que faz parte do calão clássico, como se pode constatar em Argoji, Dictionnaire d’Argot Classique, que compila vocabulário de 13 dicionários de calão de 1827 a 1907.
[3] Cheta é sinónimo de dinheiro, mas só em frases negativas e com uma elevada negatividade, se se pode dizer assim: “tenho cheta” ou “esse gajo está cheio de cheta” são frases impossíveis, e “não tenho cheta” não significa exatamente “não tenho dinheiro”, mas antes “não tenho dinheiro nenhum”. Casos curiosos são também o das palavras tostão, tusto e pataco. Usadas com um determinante indefinido, podem também significar “dinheiro” – no singular, são sempre usadas na negativa; no plural, na afirmativa: “Não tenho um tostão”/“Tenho uns tostões guardados”
[4] O termo patacas só significa “dinheiro” na expressão árvore das patacas, a metafórica árvore do dinheiro (por muito que não se possa dizer: “Mas tu pensas que as patacas crescem em árvores ou quê?”). Fora disso, pataca é o nome de várias moedas de vários sítios, mas não significa “dinheiro” como tal.
[5] Como não me sinto competente para mais, limito a lista ao português europeu. Excluo larjã, porque não é senão l’argent; móni/mâni, porque é apenas money, e grana, por ser calão próprio do português americano. Quer dizer, não excluo completamente, relego os termos, coitados!, para uma nota de rodapé… Também só aqui refiro o angolano cumbu e o moçambicano tacos no plural, embora estas palavras tenham tido, pelos menos em certa época e em certos círculos, alguma fortuna em Portugal. Cumbu está dicionarizado e o Porto Editora em linha diz que vem do quimbundo ukumbu, “vaidade”, «por relação efeito-causa». Talvez venha, talvez não, porque as etimologia da Porto Editora não são sempre de fiar… Excluí também da lista expressões que conheço e uso, como bagoré, ferro, música, roda e outras, porque não posso provar (a mim mesmo, antes de mais), que não são exclusivo de círculos muito restritos. Mas é bem possível que sejam mais que isso…  
Tirando isso, 24 expressões familiares para dizer dinheiro parecem muito, mas não são. Uma vez, para um programa de rádio que tive, incluindo regionalismos e com pesquisas em dicionários de calão, fiz uma recolha de cerca de 80 palavras para dizer dinheiro – das quais me lembro que conhecia umas 3 dezenas, se tanto (continuo com a sensação que me estou aqui a esquecer de palavras que conheço…). Que pena tenho de não ter guardado essa lista.
Nos poucos dicionários a que tenho acesso online, só não encontro duas destas 24 expressões: perné e narta. Perné, até percebo que não esteja dicionarizado, é calão cigano, que não se ouve com frequência. Agora, narta não vejo bem porque não há de estar em todos os dicionários, palavra comum que é.
O português partilha com o castelhano os termos guita e pasta.
[6] Ver, por exemplo, dados dos relatórios Consumers in Europe, do Eurostat, 2009, e ERS/USDA, EUROMONITOR, 2010 (dados de 2005 e 2009, respetivamente). Evidentemente, nada disto é para levar muito a sério – não faz muito sentido, para mim, postular este tipo de relações entre os factos da língua e os factos sociais, é mais porque me apetecer mostrar-vos estas estatísticas, que acho interessantes.

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