Viveu na Boémia, entre o Império Austro-Húngaro onde nasceu e a República
Checa onde morreu em princípios de 1995, um homem chamado Jan Neumann, de que
duvido que alguma vez tenham ouvido falar.
Jan Neumann foi um homem pacato e solitário, sempre indiferente a todos os
acontecimentos importantes que se iam dando no seu país e no resto do mundo.
Nunca quis saber de política, como nunca quis saber de desporto, nem de música,
nem de ciência. Nunca casou, nem lhe é conhecida nenhuma relação amorosa, por
fugaz que fosse. Jan Neumann viveu toda a vida para uma coisa apenas, que, desde a juventude, lhe
ocupou todo o tempo que não passou no trabalho (foi,
durante 45 anos, empregado de escritório no centro de Praga), a tratar das
tarefas caseiras, a comer ou a dormir: a literatura. E foi, nesta área, um dos
maiores eruditos de todos os tempos e de todos os lugares.
É incalculável o número de obras que leu: não havia nenhum clássico, fosse
de que período fosse, que não tivesse lido e relido; das obras de culto a que
se chama muitas vezes malditas ou incompreendidas, não havia nenhuma que não
conhecesse a fundo; conhecia todas as corrente e autores importantes que foram
surgindo ao longo da sua vida, até porque se mantinha sempre a par de tudo o
que se ia escrevendo, através de revistas especializadas, e mandava vir do
estrangeiro as últimas novidades editoriais (lia muito bem em várias línguas);
e tinha ainda lido muita literatura considerada secundária ou até de cordel,
classificações de que a sua vasta erudição o obrigava, por vezes, a discordar –
literatura de viagens, literatura antiga e tradicional de todo o mundo, ficção
científica ou romance policial, nada havia que Jan Neumann não conhecesse a
fundo.
Mais: A paixão de Jan Neumann pela literatura não o levava apenas a ler
obras literárias. Lia também muitas biografias de escritores e muitas obras
críticas de todas as épocas e de todas as correntes, além de obras de análise e
de reflexão sobre a escrita literária. Também neste campo a sua erudição era
enorme; e tinha formado as suas próprias teorias sobre a essência da coisa
literária e sobre a sua função, e também sobre o papel da crítica e sobre a
metodologia que esta deveria adotar.
Além de ler muito, Jen Neumman escreveu também muito, e desde muito novo.
As primeiras coisas que escreveu, ainda no princípio da adolescência, foram
poemas e contos. Entre familiares e professores, toda a gente que lia o que ele
escrevia lhe augurava um futuro brilhante. De facto, era óbvio para toda a
gente com um mínimo de conhecimentos de literatura que o jovem Neumann tinha
aquela coisa que distingue os grandes escritores das outras pessoas todas e que
se pode definir, de uma forma muito simplificada, como a capacidade de escrever
muito melhor que elas.
O jovem Neumann aceitou que o seu destino era tornar-se escritor, e,
provavelmente, um grande escritor. E, a partir do momento em que o aceitou, foi
invadido por uma estranha sensação de desconforto: haviam de vir os críticos e
interpretar a sua obra segundo a disposição do momento ou os ditames dos
modelos teóricos a que se submetiam... Não, isso não o podia permitir! E tomou
uma decisão que iria marcar profundamente a sua vida: havia de ser o seu
próprio crítico! Havia de fechar o espaço à facilidade e ao devaneio,
analisando a sua própria obra de várias perspetivas críticas, mas sempre com um
rigor tal que tirasse a vontade ao mais afoito de trilhar depois dele esse
caminho. E dedicou, daí para a frente, uma grande parte da sua energia a essa
tarefa: a crítica das suas obras por escrever.
É claro, não lhe sobrou grande tempo para escrever as obras que criticava.
Para além dos referidos poemas e contos do princípio da adolescência (que
deitou fora, porque os considerava menores, ou, como ele dizia, imaturos),
escreveu apenas seis obras em toda a sua vida, cinco contos curtos e uma
pequena novela. Dessas obras, apenas as duas primeiras foram publicadas, no jornal
da Universidade Carlos IV, pouco depois da sua reabertura após a Libertação.
Nenhuma delas se inseria bem nas correntes que nessa época dominavam os gostos
e as ideologias, mas a sua qualidade literária impunha-se de tal forma que os
responsáveis pelo jornal universitário não tiveram dúvidas em publicá-las. O
primeiro desses contos, num exercício de profecia de que há quem diga que só os
grandes escritores são capazes, conta a história de um homem de tal maneira
obcecado com a perfeição e o enquadramento teórico da sua própria escrita que
se vê impossibilitado de escrever seja lá o que for. Quanto aos outros três
contos e à novela, se nunca chegaram a ser publicados, não foi por não haver
quem os quisesse publicar, que haveria com certeza, mas antes porque o autor
nunca chegou a dar-lhes forma definitiva – à sua morte, estavam ainda a
repousar, como ele dizia, à espera de algumas pequenas modificações que
haveriam, sem dúvida, de os melhorar bastante.
A imensa obra crítica de Jan Neumann é, então, sem valor algum, porque se
refere a obras inexistentes. Não se encontra, em nenhuma das dezenas de
milhares de páginas datilografadas que deixou, crítica alguma aos seis textos
que dele se conhecem. E é curioso: ao contrário do que ele previa, a sua obra
não foi até hoje objeto de nenhuma crítica – muito provavelmente, porque é
praticamente desconhecida…
Camargo, 3 de abril
de 2000
Brilhante historia, como sempre! E que angustia, esse homem...
ResponderEliminar(um) beijo de mulata
Muito obrigado! Um beijinho para ti e outro para baby-de-mulata!
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