A mãe de Corto Maltese, a célebre cigana Niña de Gibraltar, disse um dia ao
filho que devia ter cuidado, porque não lhe via na mão a linha da sorte. Corto
Maltese riu-se, foi buscar uma navalha e talhou uma longa e profunda linha da
sorte na mão esquerda: “Não te preocupes, Nina”, disse ele à mãe, “a minha
sorte sou eu que a faço”!
A história é justamente famosa[1], na minha opinião – o gesto de Corto
Maltese é uma metáfora bem achada da vontade de tomar em mãos a sua vida.
Agora, mesmo com muita garra e navalhas afiadas, nunca é muito, quanto mais
total, o controlo que se tem da própria vida… De facto, parece-me tão insensato
acreditar num destino inalterável como acreditar que a vida de cada pessoa será
aquilo que ela dela quiser fazer. E, se da passividade que resulta do fatalismo
não vem nenhum bem ao mundo, também a crença oposta pode ser perigosa, porque
pode facilmente levar a considerar a vontade e as ambições dos outros um
obstáculo apenas que há que vencer para concretizar a sua própria vontade e as suas
próprias ambições. Apesar disso, este voluntarismo extremo, como lhe chamo, é uma
atitude que muitas vezes me fascina…
Quando era rapaz jovem, li, como toda a gente, alguns livros da coleção
Enigmas de todos os tempos, da editora Bertrand, uma série de livros sobre
ciências e teorias alternativas, ocultismo, parapsicologia e afins, a que
muitas vezes se chamava “livros de capa preta”. A popularidade do calendário
maia fez-me agora recordar um deles, Descobertas na terra dos maias, de Pierre
Ivanoff[2], e a sua tese sobre o fim da civilização maia:
O etnólogo Pierre Ivanoff estudou o povo Lacandon e que foi um dos
primeiros forasteiros a chegar ao que é hoje o sítio arqueológico Dos Pilas, na
Guatemala. A explicação de Ivanoff para o mistério do chamado colapso do
período clássico maia[3] não é política, nem ecológica nem demográfica –
segundo ele, os sacerdotes teriam anunciado, com base na estrutura cíclica do
seu calendário, o fim próximo da civilização dos hach winik, “os verdadeiros homens” (os maias, leia-se).
Abandonando as cidades, as populações das cidades maias confirmam a verdade das
profecias – ou, se se preferir, tornam-nas realidade!
Pode não ter grande interesse como teoria histórica, mas é uma ideia
fascinante. Uma grande ideia para um romance ou um filme, por exemplo. No
fundo, nem sequer é uma ideia fantástica, quando a transpomos do plano de um
povo inteiro para o plano de uma seita religiosa ou de um indivíduo: de forma
ainda mais dramática, mais violenta, é o que aconteceu a todos os fanáticos
crentes de teorias milenaristas que, chegados ao dia em que o mundo devia
acabar, se suicidaram, confirmando assim a profecia – é que o mundo acaba, para
cada um de nós, no momento em que nós acabamos, não é verdade?
O suicídio não é sempre, é claro, uma tentativa radical de controlo do
destino. (É muitas vezes, sei lá, um acidente provocado por um gesto impulsivo;
uma elementar desistência; um apelo, um grito, uma maneira bruta de se fazer
ouvir; ou uma forma desajeitada de resolver um problema qualquer.) Mas pode às
vezes sê-lo, não é? Lembro-me de que foi assim que interpretei, quando li há
muitos anos L'Œuvre au noir, de
Marguerite Yourcenar[4], o suicídio de Zénon Ligre, a personagem principal do
romance: Para um prisioneiro condenado à morte por se recusar a renegar aquilo
em que crê, a morte talvez seja, como vi alguns defenderem, a libertação
possível e o recuperar da dignidade. Mas que esse prisioneiro decida a sua própria morte no dia anterior àquele em que vai ser executado é mais que isso, é assumir de repente controlo
de tudo, é deixar claro, mesmo antes de o mundo acabar (que o mundo acaba,
para cada um de nós, no momento em que nós acabamos, não é verdade?), que é ele
que vence, que o mundo acaba porque ele quer, quando ele quer.
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[1] Agradeço esclarecimentos sobre a autoria da cena: não consigo descobrir
se é do criador de Corto Maltese, Hugo Pratt, ou se foi criada por Alberto
Ongaro, num prefácio a uma das aventuras do célebre marinheiro.
[2] Amadora: Bertrand, 1968, tradução de Découvertes chez les Mayas, Paris:
Robert Laffont,1968
[3] O colapso das cidades do segundo período maia dá-se num período curto
na segunda metade do século VIII. Nem toda a gente, porém, concorda com esta
ideia de colapso da civilização maia, porque, ao mesmo tempo, surgem novos
centros de cultura urbana maia noutros lugares.
[4] Paris: Gallimard, 1968
Se calhar devia ficar calada, para não te estragar o ar sadio deste blogue, mas de repente lembrei-me de outro que fez o mesmo que Zenão: Göring.
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