20/12/12

A Missão de Coisa Nenhuma

[Uma história em poucas palavras ou ... Eu tenho para aqui estes textos e não sei o que hei de fazer deles]



Uma das seitas mais curiosas que conheço é a Missão de Coisa Nenhuma, de que não sei se já terão ouvido falar. É uma seita relativamente antiga e está bastante espalhada pelo mundo inteiro, mas não há, ainda assim, muita gente que a conheça. Não é seita nem religiosa nem política. O melhor, para compreender de que tipo de seita se trata, é tomar literalmente o seu nome – uma missão, no sentido de “corpo de pessoas enviadas para propagar uma fé”, mas cujos missionários divulgam, em vez da palavra de um deus ou dos seus profetas e santos, apenas... coisa nenhuma!
Sabe-se que o grupo foi fundado nos fins do séc. XVIII – imediatamente antes do Tratado de Paris em que a Grã-Bretanha reconhecia a independência dos Estados Unidos da América – por Ulrich B. Zilch, um advogado americano de origem suíça, de cuja vida se sabe muito pouco. O que se conhece dele são apenas alguns textos panfletários, de tom radical, em que critica duramente tanto o colonialismo inglês como o movimento independentista, e um minúsculo texto que condensa toda a filosofia da Missão de Coisa Nenhuma e cujo conhecimento é a única coisa exigida aos seus missionários.
Afirma-se muitas vezes que “quanto menos se disser, mais depressa se pode corrigir o que se disse”. A mesma ideia é também veiculada por um outro e não menos famoso provérbio, que diz que “quanto mais se fala, mais se erra”. Ora, este postulado – que implica, em última análise, que o melhor é não dizer nada para não errar – peca por uma inadmissível falta de lógica. É verdade que, se eu não disser absolutamente nada, não tenho nenhuma possibilidade de errar, mas não é menos verdade que a minha possibilidade de acertar é também nula. Pelo contrário, se disser muito, tenho, ao mesmo tempo que mais possibilidades de estar errado, também mais possibilidades de estar certo. Poder errar é a contrapartida inevitável de tentar acertar, admitamo-lo. Mas o nosso objetivo é apenas não errar ou é, pela positiva, acertar o mais que se possa? Se aplicarmos a lógica destes provérbios a outras ações que não apenas a de falar, teremos de concluir que o ser humano deve fazer o menos possível, para não correr o risco de fazer coisas más ou mal feitas, posição essa que, creio, nenhuma pessoa com o mínimo de bom senso poderá defender. Segundo a lógica dos provérbios que citei, poderia defender-se, em última análise, que o melhor seria, por exemplo, não comer, apenas porque se sabe que é a alimentação a fonte de muitas das nossas doenças...
Diz-se que errar é humano, mas, contra essa asserção, pode argumentar-se com facilidade que acertar não o é menos – e o progresso é bem a prova de que se acerta mais do que se erra. Aquilo de que ninguém pode duvidar é que falar é humano – o ser humano é o único animal que fala e é essa a principal fonte da sua superioridade relativamente aos outros animais. Falemos, então!
É difícil saber qual a prática de U. B. Zilch e dos primeiros missionários de Coisa Nenhuma, porque não há dela nenhum registo. A prática que os atuais dirigentes da Missão esperam dos seus missionários, porém, resume-se bem na frase com que termina a cerimónia da sua iniciação: “Ide pelo mundo e falai!”
A primeira vez que tive contacto com a Missão de Coisa Nenhuma foi em Guadalupe, uma vez que lá estava a passar férias. Bateu-me à porta da casa que tinha alugado por uma semana um homem de meia-idade, do tipo crioulo local, sorridente e acho que já um bocadinho tocado.
“Chamo-me Balthazar”, disse ele, “e sou missionário de Coisa Nenhuma. Venho anunciar-lhe uma boa nova!”
Fiquei a olhar para ele com cara de parvo, um bocado aturdido por tão invulgar apresentação. Lembro-me de que me chamou a atenção ele ter dito “uma boa nova” e não “a boa nova”. Mas, está claro, o que me veio primeiro à cabeça é que ia ter de aturar mais uma tentativa de me converterem a alguma nova e estapafúrdia religião, se eu não fosse suficientemente enérgico para pôr fim à evangelização antes de ela começar. A curiosidade foi, no entanto, mais forte que o sentido de preservação da minha tranquilidade e acabei por lhe perguntar:
“Que boa nova?”
“Não sei... O que é que se tem passado de bom ultimamente?”
“O que é que se tem passado de bom ultimamente?”
“Sim!, o que é que se tem passado de bom ultimamente?”, insistiu ele. “Falemos um pouco disso!”
Evidentemente, eu fiquei, como acho que qualquer pessoa ficaria, bastante desconfiado relativamente às intenções de tão estranha personagem, mas, não sei por quê, talvez só porque a curiosidade ia também aumentando à medida que aumentava a desconfiança, não o impedi de entrar.
“Com a sua licença!”, disse ele, embora eu não lhe tivesse dado explicitamente licença nenhuma.
“Posso sentar-me?”
E sentou-se sem esperar a minha resposta.
“Bem vê, não há nada melhor que um ti-ponch para molhar a palavra. Eu não queria abusar da sua hospitalidade, de maneira que o rum já eu trouxe.”
Sempre sorridente, tirou de um saco de plástico que trazia na mão uma garrafa cheia, que me estendeu. E continuou:
“A única contribuição que peço é um bocadinho de limão e um xaropezito, se tiver. Ou, se não, só açúcar, também dá...”
Mais uma vez – e mais uma vez sem saber bem por quê... – não lhe disse que não. Acho que agora, para além de ser pela curiosidade, era também pelo ponche. Fui buscar copos, xarope de groselha, limão e gelo, e ele preparou a bebida. Enquanto fazia o cocktail, insistia na conversa que tinha proposto:
“Mas então, não me diga que não lhe aconteceu nada de bom nos últimos tempos... Ou talvez queira falar de outra coisa!”
“Não há dúvida, é uma abordagem original da evangelização”, disse eu por fim. “Normalmente, o único tema de discussão proposto é a Bíblia e pouco mais...”
“Evangelização?”, riu-se ele, “Mas você pensa que eu sou algum mórmon ou alguma testemunha de Jeová? Qual evangelização, caro amigo, eu estou aqui só para conversar!”
“O quê?, não me diga que quando se sente sozinho agarra numa garrafa de rum e vai bater à porta da primeira casa que encontra e começa a conversar com quem lhe abrir a porta...”
“Não se trata de solidão, meu amigo, mas antes de uma missão – a nossa missão, minha e dos outros missionários de Coisa Nenhuma, é conversar. Diga lá, de que é que gosta de falar? De futebol? Tenho-me apercebido, no meu trabalho, que o futebol é um dos temas favoritos de conversa das pessoas... Quer dizer, mais dos homens, isso é verdade... Mas olhe que também de algumas mulheres, o que é que pensa? De que clube é que você é? Do Nantes? Do Marselha? Do Paris Saint-Germain? Seja lá qual for, algum deles lhe deve ter dado alguma alegria ultimamente...”
“A primeira coisa é que eu não sou francês, sou português, por isso não sou de nenhum desses clubes...”
“Português? Bèneficá? Spòrtinhe de Lissebone? Pôrtô?”
“Ouça”, cortei-o eu, “eu sou de um clube de que você nunca ouviu falar, de maneira que já pode daí concluir que é um clube que não dá grandes alegrias a ninguém... E mesmo pequenas alegrias, também dá muito poucas... Mas deixe lá isso! Que história é essa dos missionários de Coisa Nenhuma? Confesso que tenho uma certa curiosidade relativamente a essa vossa Missão. Explique-me lá então quais é que são as vossas crenças, a vossa filosofia...”
“Quer dizer, crenças, cada um tem as suas... Eu cá, por exemplo, acredito no vudu. E digo-lhe: acredito, porque já vi muita coisa que me obriga a acreditar! Mas tenho muitos colegas, mesmo antilhenses, que não acreditam... E quanto a filosofia, é igual: cada um tem a sua... Ou então não tem nenhuma, é conforme. Eu cá, de filosofia não sei nada... E também não é muito importante para o meu trabalho, quase nunca se encontra ninguém que queira discutir filosofia. Diga lá, e você?, acredita no vudu?”
“Muito sinceramente, não sei se acredito ou não, porque não sei nada sobre o vudu, mas você ainda não respondeu à minha pergunta. Quer dizer, vocês têm de ter uma ideia qualquer que queiram divulgar, senão não andavam assim de porta em porta a falar com as pessoas...”
Ele fez uma pequena pausa, com uma expressão estranha, cobrindo quase completamente o lábio superior com o inferior.
“Não, acho que não... Pelo menos, nunca ninguém me disse que eu tinha de divulgar uma ideia. O que a gente tem é de conversar.”
“Só conversar, seja lá do que for?”
“Só conversar.”
“Mas é porque vocês acham que as pessoas não conversam o suficiente e deviam conversar mais?”
O Balthazar ficou um bocado calado, de sobrolho franzido e olhar de esguelha, a refletir.
“Já estou a perceber onde é que você quer chegar... Quer dizer, isto não é nenhum SOS Solidão! Eu não ando à procura de quem precise de desabafar, ‘tá a perceber? Aliás, isso até já seria... como é que se diz.?... “discrimação” [ele dizia discrimation em vez de discrimination] e a gente não faz “discrimações” – toda a gente tem de conversar!”
Fez outra pequena pausa, e continuou, já num tom completamente diferente:
“Oiça lá, e de guisado de lambi, você gosta ou não?”
Lambi é um tipo de búzio grande das Antilhas, que se come sobretudo guisado com batatas. A pergunta era completamente a despropósito, mas a verdade é que eu gosto muito de lambi, e foi isso que lhe respondi:
“Ena, se gosto! Mas você está com fome ou quê?”
“Não, porque comi agora mesmo um guisadinho de lambi. Por isso é que eu me lembrei...”
A conversa continuou sempre nesta alegre falta de disciplina. Não a vou agora reproduzir toda, porque prezo o suficiente os meus leitores para não lhes impor uma seca dessas. Mas vocês sabem como é: palavra puxa palavra, cigarro puxa cigarro, copo de ponche puxa copo de ponche. Acabámos por ficar ali na conversa um bom bocado. Falámos de Clichy, nos arredores de Paris, porque ele esteve lá uma temporada em casa de um irmão que é peixeiro e eu tenho um grande amigo que vive lá; falámos dos sobrinhos dele e dos meus, do tress das grandes cidades [ele dizia tress em vez de stress], de engarrafamentos, de segurança social, de coisas assim. O Balthazar era cheio de bom senso e de bom humor, e eu comecei a simpatizar com ele.
“Sabe o que é que eu lhe digo, Balthazar?”, disse eu depois de dar o último gole no último copo de ponche. “O ponchezito não está nada mau! Ou seja, estava, que a garrafa já lá vai, sem a gente dar por isso... E eu já ‘tou a ficar um bocadinho alegre, sabe?... Diga lá, e se a gente fosse dar uma volta e beber mais qualquer coisinha? Uma cervejinha fresca, por exemplo, até que nem caía nada mal com este calor... Pago eu, ‘tá a ouvir? Você comprou o rum, agora eu pago as cervejas!”
“Ora aí está! Por exemplo! Assim, já tenho uma boa nova para lhe anunciar!”
“Uma boa nova?”, surpreendi-me eu.
“Você não diz que já está alegre? Então pronto, na falta de outra, pode ser essa a boa nova que lhe vinha anunciar!”


 

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