02/09/14

Latas de coisa nenhuma e outras novidades

Enfim uma boa notícia: água em pó! As embalagens, com cerca de 1.000 gramas, têm apenas a seguinte instrução de utilização: “basta juntar água”. 
É uma piada que por aí circula, com várias redações. Mandou-ma um amigo, com a seguinte introdução: “Olha a tanga deste…”

Este amigo fez comigo um programa de rádio nos anos oitenta. Num sketch humorístico desse programa, entrevistava ele um tal Professor Agadois do Ó (eu), que tinha inventado a água liofilizada. O sketch foi improvisado, como muitas vezes eram os nossos sketchs no programa. Eu tinha alinhavado a história da água liofilizada, expliquei-lhe qual era a ideia e improvisámos.

“Ora bem”, explicava eu, “a liofilização é um processo que permite tirar a água a qualquer substância para assim a conservar, podendo depois reconstituir-se essa mesma substância acrescentando-lhe a água que lhe foi retirada. Agora, bem vê, se tirarmos a água à água, não fica grande coisa… A bem dizer, não fica nada… De maneira que é muito leve, muito fácil de transportar, por exemplo, nos sítios onde não há água, como os desertos. Depois, em a gente tendo sede, é só juntar água e pronto, temos outra vez água!”

O que o meu amigo queria dizer quando me escreveu “Olha a tanga deste…” era, pois, que o outro chegava tarde – aquela história era uma criação nossa, há quase 30 anos. Mas parece-me improvável. Não que eu tenha ido buscar a ideia a algum lado, que não fui – inventei-a eu; mas é provável que alguém tivesse já tido a mesma ideia antes de de mim, de óbvia que é a brincadeira.


Neste momento, a ideia até já está registada. Descobri o ano passado que, a 18 de junho de 2010, foi registada nos EUA a patente de “latas vazias” de “água desidratada” como “artigo humorístico” (aceito proposta de melhor tradução para novelty item). “Verta o conteúdo da lata num galão de água, mexa até estar dissolvido, ponha no frigorífico e sirva”, diz a lata.

Na realidade, a ideia de vender latas vazias também não é original. Conheço há muito tempo as latas de ar de Paris das lojas de souvenirs de Beaubourg e descobri agora que também se vende ar do mar-alto bretão. Não sei quando começaram a produzir-se as latas de ar de Paris, mas também não são uma ideia original: numa viagem que fez aos Estado Unidos em 1919, Marcel Duchamp ofereceu ao seu amigo Walter Arensberg uma ampola de ar de Paris, que é considerada um dos seus readymades e está hoje exposta no Museu de Arte de Filadélfia.

Também não é forçoso que quem inventou as latas de ar de Paris conhecesse a ampola de Duchamp – pode ter tido a mesma ideia, como o senhor Bernard teve a ideia da água desidratada mesmo sem ter ouvido a entrevista com o Professor Agadois do Ó no nosso programa radiofónico. “O segredo da criatividade”, disse Cyril Edwin Mitchinson Joad (e de muitas maneira diferentes!), “é saber esconder as suas fontes”. Mas não é bem assim, pois não*?


P.S. 1: Um dia destes, veio-me à cabeça uma maneira de aferir a genialidade de uma criação (o grau de criatividade, se se preferir): Quanto menos vezes ela tiver ocorrido autonomamente, mais genial ela é. Dito de outra maneira: se uma criação resultar de um cruzamento de capacidades, vivências e conhecimentos tão únicos que é improvável voltarem a acontecer, estamos perante uma verdadeira originalidade, um golpe de génio, um alto grau de criatividade. Foi essa ideia que motivou este texto. Mal comecei a escrevê-lo, porém, dei-me conta de que a ideia, que, à primeira vista, parece elegante, não tem, na prática, aplicação nenhuma… Teoricamente, é possível contar as ocorrências de uma determinada criação múltipla, mas na prática isso é, em muitos casos, completamente impossível…

Além disso, há imediatas objeções à justeza da proposta. Uma é que juntar sob a designação genérica de ideia ou criação descobertas, invenções e trabalho estético é um artifício que apaga especificidades de cada um dos tipos de criação, incluindo a maior ou menor possibilidade de ocorrência múltipla independente: descobrem-se coisas que existem no mundo real, sejam elas materiais ou conceptuais, pelo que é, nesse caso, mais provável que várias pessoas venham a descobrir o mesmo. O mesmo se pode dizer de muitas invenções, que também decorrem naturalmente do contacto com o meio, como a domesticação de animais, a agricultura ou a fotografia, e são, por assim dizer, um tipo de descoberta. A criação estética é diferente e é também mais difícil definir o que é criação neste caso: cada um dos elementos da obra ou a obra no seu todo? Se é verdade que uma determinada imagem literária pode ser criada autonomamente por muitas pessoas, é impossível duas pessoas escreverem o mesmo texto.

Além disso, o conhecimento bloqueia a segunda criação: se eu sei que uma coisa foi criada, já não a posso criar. (Posso apresentá-la como minha, mas deixemos agora de lado a questão do plágio, que é outra questão.) A diferente velocidade de divulgação de várias criações impede uma comparação justa da sua originalidade.

P.S. 2: Também se tenta às vezes comparar a importância de diversas criações, sejam elas descobertas, invenções ou outras. É uma empresa sem grande sentido, convenhamos, por muito que, por vezes, dê azo a conversas interessantes. Uma coisa me parece certa, porém: a importância que possa ter uma criação não tem nenhuma relação com a sua improbabilidade. Por exemplo: a descoberta da maneira de desenhar um círculo, que é altamente provável e que, por isso, foi com certeza feita independentemente por muita gente, é, ainda assim, mais importante que a descoberta da maneira de desenhar outras formas geométricas mais complexas e mais incomuns.
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 * Já uma vez aqui tinha falado de invenções múltiplas autónomas: “Tenho muitas vezes a sensação”, escrevi eu, “de que somos sobretudo lugares onde acontecem coisas. Podemos ser um lugar onde acontece uma invenção ou uma descoberta, por exemplo – que, se não acontecer em nós, acontece noutra pessoa qualquer.”

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