Vejam a questão do agá inicial, por exemplo. Para mim, é óbvio que o agá é um resquício de uma lógica ortográfica anterior à perspetiva fonológica que foi introduzida pela reforma republicana de 1911. Eliminaram-se muitas letras sem outra função que não fosse dar conta da «etimologia», mas, por alguma razão, considerou-se mais importante conservar o agá que outras letras apenas etimológicas. A verdade, ao que vou constatando, é que toda a gente acha impensável escrever «oje às duas oras», mas ninguém se importa de escrever espanhol, erva, arpão e agora, que, para seguirem a mesma lógica etimológica também deviam ter agá. É assim a vida e para mim está muito bem, paciência, não chateio ninguém com o agá inicial…
Pois, escrevo mais uma vez sobre ortografia – maldita mania –, mas, vá lá, não quero falar de nenhuma dessas grandes questões ortográficas que empolgam os ânimos, como os agás iniciais. Hoje falo só de picuinhices, coisas sem importância absolutamente nenhuma…
1. Considerem, a seguinte série:
Para que fim contribui isso?
Para que contribui isso?
Com que ferramenta cortaste isso?
Com que cortaste isso?
De que material é isso feito?
De que é feito isso?
Por que razão chegaste atrasado.Porque, pronome interrogativo? Hmmm, não há *paraque, nem *deque, nem *conque… Devia ser por que, claro, como em castelhano ou na tradição brasileira. Pobre palavra pronome, que é quase como advérbio, pau para toda a colher…
Porque chegaste atrasado?
2. Uma coisa simples era também distinguir o verdadeiro advérbio afinal (=finalmente) de um sintagma preposicional a final de (=no fim de). Afinal de contas não está bem, por muito que seja grafia consagrada: é finalmente de contas ou no fim de contas que se quer dizer?
3. Surgiu-me no outro dia um exemplo de uma ambiguidade possível em português, que, de tão rara, nunca encontrei nada do tipo. Consideram a frase:
A proposta foi ética e eficazmente elaborada.Já não vou ao ponto de sugerir que se grafe mente separado, o que a etimologia e a sintaxe até podiam justificar (é como tirar os agás iniciais, não vale a pena pensar nisso), mas, se se considera o advérbio uma unidade, bem que podia marcar-se a falta do elemento -mente nos casos em que ele é obrigatoriamente omisso. Uma sugestão óbvia é o uso de um hífen:
A proposta foi ética- e eficazmente elaborada.Ficamos assim a dizer o que queremos. Este uso não é nenhuma invenção minha, quando muito uma importação: na escrita do inglês, isto é standard em palavras compostas com hífen (self- and peer-evaluation, pre- and post-war, etc.) e debatido, mas muitas vezes usado, em compostas sem hífen com uma parte naturalmente omissa na oralidade (up- and downwards para up[wards] and downwards ou super- and paranormal para super[normal] e paranormal). Na escrita de outras línguas, como as línguas escandinavas e o alemão, pelo menos, o procedimento é standard para todas as palavras com elementos omissos na(s) primeira(s) palavras de uma enumeração de compostas com o mesmo segundo elemento: okse- og lammekød («carne de vaca e borrego», DK), laut- und spurlos («sem [deixar] som nem rasto», DE]. Pode até acontecer que se omita mais que um elemento comum no início e no fim das palavras como no alemão Sonnenauf- und -untergang, («nascer e pôr do sol»), em que, na primeira palavra, o hífen marca a omissão de Gang e, na segunda, de Sonnen.
É certo que só por causa das ambiguidades entre adjetivos e advérbios em -mente, de tão insólitas que são, não valeria muito a pena pensar nisto, mas a verdade é que a mesma questão se põe muitas vezes com outros compostos: às vezes, sem o hífen, não ficamos com ambiguidade, mas ficamos com uma palavra inexistente, porque é um elemento sem autonomia que ali surge. Era melhor escrever «macro- e microeconomia», por exemplo – porque não falamos de nada chamado *macro, mas sim de uma coisa chamada macroeconomia –, como era melhor escrever-se «separadores pré- e pós-processamento», em vez de «separadores pré e pós-processamento», como agora se escreve – pelo menos se não quisermos recorrer a «separadores pré-processamento e pós processamento», que até não me soa mal, mas me parece escusado…
A erva e o arpão nunca vi mas de hespanha lembro-me do António Hespanha, professor da faculdade de letras que uma vez foi referido numa reunião em que eu estava e em que o H foi quase aspirado, digo "quase" porque ninguém (ou quase) sabe bem em Portugal como se faz.
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