Tinham-me roubado o passaporte em Chocas-Mar, uma praia idílica na província de Nampula, mesmo em frente à Ilha de Moçambique. Para se fazer novo passaporte, era preciso o meu assento de nascimento, que pedi que me enviassem de Lisboa. Felizmente, não era necessário ir a Maputo; havia um cônsul honorário em Quelimane, cuja secretária se ocupava deste tipo de coisas. Foi dessa senhora que recebi uma mensagem no Alto Molócuè. Nessa altura, não havia telefone na vila, mas podia comunicar-se por rádio com a estação dos correios e foi o funcionário dos correios a minha casa dar-me o recado:
– A senhora diz que há problema com o seu pedido de passaporte e que tem de lá ir falar com ela.
E eu fui, logo na manhã seguinte. Quando falei com a senhora, fiquei a saber que o problema era o cê de Victor – ou a sua falta.
O meu bilhete de identidade dizia que eu me chamava Vítor, mas o assento de nascimento dizia Victor. Não podia ser.
– Sempre tive Vítor no BI e o passaporte que me roubaram também tinha Vítor. Sempre escrevi assim o meu nome. Nem sabia que o assento de nascimento tinha Victor – disse eu à senhora. – É capaz de ter sido quando houve aquela reforma em 1973 em que se acabaram com os acentos graves, sabe? Se calhar, decidiram passar todos os Victores a Vítores…
Eu sabia que era uma explicação pateta, porque uma coisa não tinha nada a ver com a outra, porque o meu primeiro BI era anterior a 1973 e porque continuava a haver muitos Victores, mas a senhora lá se convenceu de que me podia passar o passaporte, «mas como estava no assento de nascimento». Fiquei com uma discrepância entre o BI e o passaporte, mas não me preocupei muito com isso. E continuei a escrever Vítor em todo o lado, como sempre tinha feito.
Quando fiz o pedido de residência na Dinamarca, escrevi Vítor. A funcionária que recebeu o pedido deu logo pela falta do cê.
– Nem sabe escrever o seu nome! – disse-me ela num tom de desdém.
Fiquei sem vontade de lhe explicar fosse o que fosse sobre as subtilezas da grafia dos antropónimos. Na realidade, eu sabia muito bem escrever o meu nome e a grafia Victor está simplesmente errada: uma palavra sem acento gráfico terminada em erre é forçosamente aguda e ninguém se chama [vitor]. Mesmo com o tal cê etimológico, era Víctor que se devia escrever. Mas nunca tal vi – ou é Vítor ou Victor.
Prevendo mais chatices, quando me registei no Consulado em Copenhaga, pedi um documento (sem qualquer valor legal, mas enfim…) em que se explicasse que Vítor e Victor eram ambas variações corretas de um mesmo nome, o meu. E passaram-mo.
Quando renovei o bilhete de identidade, acederam em passar-mo com a grafia que tinha no BI. O meu nome – agora acrescido do apelido da minha mulher, que adotei – era de novo sem cê tanto no passaporte como no BI: Vítor Manuel Lucas Santos Lindegaard. Mas foi sol de pouca dura.
Quando fui, há três semanas, substituir o BI pelo Cartão de Cidadão, disseram-me que tinham de escrever o meu nome como estava no assento de nascimento, entretanto digitalizado. E voltou a haver discrepância, mas agora ao contrário da que tinha sido iniciada em Quelimane: é o passaporte que não tem cê e o cartão de cidadão que o tem. A ver quanto quilómetros vou ter de fazer de chapa-cem por causa disto…
Tu ve lá isso, Vi(c)tor!
ResponderEliminarQue ainda pode acontecer de um século destes vires a morrer, e descobrir-se que não tens herdeiros, porque os filhos e o casamento estão registados no outro nome...
Um tio do meu pai foi para os EUA com uma identidade falsa, e depois da morte dele foi um sarilho para provar que havia um único falecido e heranças de duas pessoas.
Oh, pá, Helena, fosse esse o maior problema – já avisámos os nossos filhos de que não tencionamos deixar-lhes nada, de maneira que...
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