06/07/18

A influência das línguas que não falamos no pensamento – e no resto

Tenho dito aqui que, ao contrário do que agora parece estar na moda, não vejo boas razões para acreditar na influência da língua no pensamento; mas quero agora dar a mão à palmatória e reconhecer que, afinal, a língua pode mesmo ter influência no pensamento: ignora-se a informação existente em línguas que não se falam. Se vos parecer que estou a brincar, é verdade, estou, sim senhora, mas estou a brincar com uma coisa muito séria, que de facto não tem graça nenhuma.

Dou-vos exemplos da área da linguística, porque é a que conheço melhor, mas tenho a certeza de que é fácil encontrar exemplos em todas as áreas. Lembro-me de alguém me dizer uma vez que, se o linguista dinamarquês Louis Hjemslev era menos conhecido que outros pioneiros da línguística, era porque tinha escrito em dinamarquês. Não sei se será essa a razão mais importante para o desconhecimento de Hjemslev, até porque há muitas traduções de obras suas em francês e inglês, mas é capaz de não ser razão desprezável. No caso do trabalho do grande Antoine Culioli, que faleceu em fevereiro passado, não tenho dúvidas que é por ser feito em França e em francês que não tem a divulgação que merece, numa área em que o inglês é claramente a língua que domina. Há traduções de alguns trabalhos de Culioli e dos seus colaboradores e seguidores em inglês, claro, mas é insuficiente. O que não haverá por esse mundo fora de estudos, ensaios, conhecimento, enfim, escrito em línguas que a maioria dos académicos não lê?

Bem vistas as coisas, aliás, há vários problemas em vez de um só: um é a ignorância propriamente dita (não nos chega a informação do que existe noutras línguas), outro é mais incapacidade (sabemos que existe, mas não termos maneira nenhuma de o traduzir) e um terceiro é uma compreensível inércia, vá, para não lhe chamarmos preguiça (bom, com algum esforço, arranjava-se quem traduzisse, mas é tanto trabalho!…). Lembro-me de ter feito uma vez um trabalho sobre as Lettres d’une péruvienne, de Madame de Grafigny (que referi aqui de passagem). Era na altura uma obra pouco estudada e o único artigo que encontrei que me interessava para o tema do meu trabalho era em alemão. Ena, o trabalho que eu tive para arranjar uma cópia do artigo numa biblioteca estrangeira e depois andar a pedir ás pessoas que eu conhecia que falavam alemão para me irem traduzindo oralmente – um bocadinho uma, um bocadinho a outra, para não enjoar – o que dizia o artigo e depois arranjar quem me traduzisse mesmo como devia ser a passagenzinha que queria citar no meu trabalho…

Tenho uma história curiosa que se passou comigo há cerca de quatro anos que ilustra bem este problema:

Numa época em circulam na Internet tantos aforismos e excertos de prosa falsamente atribuídos a pessoas célebres, Garson O’Toolle faz um excelente trabalho, no seu Quote Investigator  procurando descobrir a verdadeira origem de frases famosas. A 7 de Setembro de 2014, o Quote Investigator publicou um artigo sobre o aforismo Education is what remains after you have forgotten everything you learned in school («A educação é o que fica depois de se esquecer tudo o que se aprendeu na escola»), que me lembro de ter conhecido ainda em em miúdo e que foi já atribuída a Albert Einstein, B. F. Skinner, Edouard Herriot, C. F. Thwing, Ralph Waldo Emerson, Agnes F. Perkins, James Bryant Conant, E. F. L. Wood, George Savile e Lord Halifax – e talvez a outros. A conclusão da investigação é que circulam há mais de um século frases com um conteúdo semelhante, umas referindo a educação, outras a cultura, mas que não há prova nenhuma de que alguma delas tenha sido criada por nenhum dos autores que lhes atribuem. A ocorrência mais antiga de uma variação da frase que o Quote Investigator encontrou era de dezembro de 1907.

Pouco dias depois, escrevi a Garson O’Toole um e-mail, em que lhe dava conta de uma ocorrência mais antiga e lhe propunha uma linha de investigação. Dizia-lhe eu que, num texto de 1900, que é de facto uma republicação de um artigo originalmente publicado em 1891, Ellen Key escreveu (traduzo eu) o seguinte:
Mas a educação é, felizmente, não só o conhecimento dos factos, mas, por grande paradoxo, «o que resta, quando esquecemos tudo o que aprendemos».
E acrescentava que, não sendo eu falante de sueco, devia confirmar a minha tradução e também que me parecia claro que, pelo uso de parênteses, Ellen Key não se assumia como autora da frase.

Garson O'Toole respondeu-me, agradecendo o meu trabalho e pedindo-me autorização para publicar o meu esclarecimento, que prontamente lhe dei. Mas a minha carta nunca foi publicada, nem foi nunca seguida a linha de investigação que eu propunha. A explicação mais plausível é que o Quote Investigator sofra da tal estranha influência da língua sobre o pensamento que faz com que, por inércia, se dê como inexistente o que exista só em línguas exóticas. É compreensível, insisto, é compreensível… Mas o conhecimento não ganha nada com isso. É certo que, no caso que acabo de referir como exemplo, é de conhecimento muito irrelevante que se trata – mas noutros não é.

O que se pode fazer contra isto, além de ter muito trabalho quando for necessário? Não se pode fazer muito, mas, já que as palavras são como as cerejas e estamos agora na época delas – das cerejas, quero eu dizer –, há uma questão que está intimamente ligada a esta: a do conhecimento de línguas estrangeiras que é preciso haver em todas as sociedades. E sobre isso pode fazer-se alguma coisa.

Não me vou agora adiantar muito sobre a questão das políticas de ensino de línguas estrangeiras, que é tema demasiado vasto para esta pequena nota final. Quero só lembrar um paradoxo interessante, que se relaciona com o tema deste texto: é fundamental um muito bom domínio, por toda a população, da língua internacional mais importante, o inglês – sem o qual não há, hoje em dia, nem informação, nem educação, nem negócios (e Portugal está longe de ter alcançado um nível satisfatório); mas o investimento no inglês não deve fazer esquecer que é também necessário aumentar o número de pessoas com bons conhecimentos noutras línguas internacionais importantes, como o mandarim, o castelhano, o árabe e o alemão, entre outras. A lição dinamarquesa serve para muitos países: na perspectiva de se abrir ao mundo, os dinamarqueses decidiram fazer da Dinamarca um país funcionalmente bilingue dinamarquês-inglês e conseguiram-no. O nível de inglês é até superior, na Dinamarca, ao de alguns países de língua oficial inglesa. Hoje, porém, empresas e instituições de ensino queixam-se de o forte investimento no inglês ter tido como efeito lateral o desinvestimento noutras línguas, algumas das quais, como o alemão e o francês, faziam até parte da tradição educativa e cultural dinamarquesa. E hoje há falta de pessoas que falem outras línguas – espanhol, por exemplo, mas não só –, até porque, noutros países, o conhecimento do inglês não se desenvolveu tanto como na Dinamarca e nem sempre o inglês funciona como devia como língua de comunicação…

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