Se há sociedades com tradição de serem idealizadas, o império inca é com certeza uma delas. Desde as Cartas de uma peruana, de Madame de Graffigny, até ao livro que ando agora a ler (um “policial histórico” passado no império inca), tem-se insistido em fazer do império inca um ideal de organização, justiça e desenvolvimento. Um mito que, por um lado, sempre me fascinou; e que, por outro lado, como sou hostil a mitos, sempre me empenhei em combater.
Muito provavelmente, há que procurar no Inca Garcilaso de la Vega, autor de Comentarios reales sobre el Peru de los Incas, a origem da idealização dos incas. Garcilaso de la Vega diz que pretende, ao escrever os Comentários… que se “veja distintamente o que eram antes da chegada dos Espanhóis tanto as cerimónias da vã religião dos seus habitantes como o governo dos seus reis em tempos de paz e de guerra, e tudo o que se possa dizer dos Índios desde os mínimos exercícios dos sujeitos até aos mais altos topos da coroa”, mas uma leitura atenta da obra deixa claro, no entanto, que o projecto de Garcilaso de la Vega é antes o engrandecimento da cultura inca perante os europeus; e este engrandecimento não pode ser feito senão de uma maneira: tornar os incas iguais a eles... É impossível saber o que há de consciente e/ou de inconsciente neste projecto, e pouco importa. É provável que Garcilaso, nascido no Cuzco de uma princesa inca e de um nobre espanhol acredite em muito do que escreve e que deve corresponder, em parte, à própria maneira como os últimos nobres do império concebiam a sua própria história. Mas também é possível que tenha omitido propositadamente o que, como os sacrifícios humanos, encaixasse mal nos valores europeus.
Uma das invenções de Garcilaso que teve uma fortuna especial foi fazer dos quipus, as cordas com “nós falantes” que os incas usavam para a contabilidade do império, um sistema de escrita prático do tipo da nossa. Os quipus eram efectivamente um sistema de registo de tropas, mantimentos, dados de população e inventários de diversos tipos, mas (embora tenha sido já aventada a polémica hipótese de poderem conter de facto informação fonética) nada indica que com eles se pudesse escrever textos, como as cartas literárias da heroína Zilia de Madame de Grafigny ou as mensagens relativamente complexas do romance que agora estou a ler.
Outro mito inca com sucesso é o do socialismo inca, altamente organizado, com sistemas eficazes de segurança e de justiça social. Se bem que seja pouco provável que o imperio quíchua alguma vez tenha tido um nível de organização como aquele que é descrito na novela que estou a ler, não parece haver dúvida de que o “império dos quatro horizontes” tenha tido de facto uma estrutura de tipo estatal e a funcionar com eficiência. Ir além disso e querer fazer dele um modelo de justiça e igualdade é, provavelmente, ir longe demais. As injustiças e os abusos de poder por parte das elites aristocráticas não foram, com certeza, menores no império inca do que qualquer outra sociedade feudal; a expansão colonial não foi mais suave do que outras expansões coloniais; e não nos esqueçamos que uma das cruéis instituições coloniais espanholas que o vice-rei Francisco de Toledo no então Vice‑reinado do Peru e dos Charcas não é senão o restabelecimento da mita inca (isto é os impostos de quatro meses de trabalho anuais)…
Uma outra característica da idealização dos incas é a crença num avanço científico e tecnológico dos incas maior do que o que eles de facto tinham. Sabe-se, por exemplo, que foram esquecidas, com a queda de Tiahuanaco alguns séculos antes da expansão inca, técnicas sofisticadas de irrigação e cultivo, cujos vestígios foram em parte destruídos pelos incas, que obviamente as não compreendiam. Mas já encontrei muito quem atribua aos incas esses conhecimentos que lhes são, de facto, anteriores. Também a arquitectura inca, por exemplo, é frequentemente idealizada. A técnica de construção com grandes blocos de pedras é impressionante, de facto, sobretudo pela dificuldade de carregar, cortar e polir perfeitamente blocos assim, mas o Machu Picchu [de passagem: um sítio que é considerado umas das maiores maravilhas do mundo… porque o é de facto!] não é, do ponto de vista propriamente arquitectónico, nada que se possa comparar com, sei lá…, as catedrais de Amiens, Reims ou Chartres, que são dois séculos mais antigas…
O que a novela que estou a ler e a sua idealização do império inca me vieram recordar, para além do que fui investigando sobre a utopização do império do Cuzco, foi a conversa dos guias turísticos no Peru. São muitos e contam todos as mesmas histórias, e devem estar habituados a lidar com gente fácil de convencer dos mitos incaicos (é o adjectivo espanhol correspondente ao nome inca). É natural que os incas tenham tido, de facto, conhecimentos de astronomia relativamente desenvolvidos, como parece provar a orientação de certos edifícios, mas estes guias exageram um bocado:
“Está a ver aqui esta janela neste muro? Se olhar por aqui, ao pôr-do-sol, verá que o sol se põe exactamente do alinhamento da janela com aquela pedra grande lá ao fundo, está a ver? Que foi lá posta pelos incas!…”
Numa zona de pedras como aquela, entre qualquer janela e qualquer ponto cardeal é impossível que não haja uma pedra qualquer – que deve lá ter sido posta pelos incas… Mas está tudo muito bem, quem sou eu para contrariar agora o senhor guia? A justiça, a superior organização, os conhecimentos arquitectónicos, em tudo o que é idealização do inca, os guias turísticos peruanos batem aos pontos Garcilaso de la Vega, Madame de Graffigny e as modernas novelas de detectives no reinado de Pachacuti…
No fundo, nem tenho nada contra isso... Afinal de contas, é o que nós fazemos aos estrangeiros que apanhamos a jeito, com grandes histórias de Viriato e dos lusitanos, da sobre-humana aventura dos descobrimentos, da grandeza dos nossos poetas, das nossas palavras só-nossas e da nossa singular nostalgia musical… E isto sem sermos guias e sem ganharmos, portanto, nada com isso. Sim, que a idealização dos incas, pelo menos, sempre vai dando alguma coisa…
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