18/10/18

Agulhas e alfinetes e a Lei do Segundo Pesado

O linguista francês Claude Hagège enuncia, no seu livro L’homme de paroles (Paris: Fayard, 1985) uma lei a que chama a Lei do Segundo Pesado, segundo a qual, numa sequência de um par de termos da mesma natureza e com a mesma função, como mais ou menos ou tal pai, tal filho, etc., aparece «em segunda posição o termo mais pesado, isto é, aquele que tem um maior número de sílabas, ou as consoantes ou vogais mais longas ou mais posteriores, ou as consoantes com um espectro acústico que apresente as mais fortes concentrações nas frequências baixas», independentemente do que pareça ser a sequência natural das noções em questão[1].

Uma organização natural e universal de certas sequências sonoras da linguagem humana pode explicar, por exemplo, que, em português, francês, e dinamarquês se diga, respetivamente, mais ou menos, plus ou moins ou mere eller mindre e em neerlandês e urdu se diga min of meer e بیش کم و (/kɘm o béš/), «menos ou mais»; que em português, francês e dinamarquês se diga mais cedo ou mais tarde, tôt ou tard e før eller senere, mas em castelhano se diga tarde o temprano.

Na realidade, as coisas não são assim tão simples. Aliás, o próprio Hagège constata várias exceções e explica que a sua lei é de facto uma tendência e não uma verdadeira lei (embora prefira chamar-lhe lei por razões de ordem prática: «porque uma formulação estrita facilita a invalidação se se encontrar um maior número de não aplicações»). Eu preferiria, por a considerar insuficientemente provada, chamar-lhe apenas uma (boa) hipótese. Se é verdade que se aplica bem a regra a soap and water e a água e sabão e a girls and boys e a rapazes e raparigas, já as coisas são menos claras se falamos, por exemplo, de higiene e saneamento: embora esta ordem tenha mais ocorrências em Google, saneamento e higiene ocorre muito – e sanitation and hygiene parece claramente ser a ordem preferida em inglês. Além de que há muitos casos em que a lógica não fonética parece sobrepor-se sempre à tendência do segundo mais pesado: dizemos sempre o princípio e o fim, por exemplo, por muito que o princípio seja foneticamente muito mais pesado que o fim, porque o princípio vem mesmo antes do fim (pelo menos fora de universos muito psicadélicos e em certos delírio para mim infelizmente incompreensíveis diz-que-quânticos-ou-lá-o-que-é…); e dizemos cinco ou seis minutos, cinco ou dez minutos, e nunca ao contrário[2], porque é essa a ordem de grandeza dos números… 

De facto, parece haver muitas condicionantes não fonéticas que podem agir sobre os pares de termos. Duas regras gerais para a ordem das palavras numa frase que podem também agir sobre os pares são que a sequência das palavras deve corresponder 1) à sequência dos eventos no mundo, como em «o princípio e o fim» ou «vim, vi e venci» (fala-se então de iconicidade), e 2) à proximidade, no tempo ou no espaço, de quem diz a frase, ou seja, à proximidade de «eu», como em «cá e lá», «isto e aquilo» e «hoje e amanhã», por exemplo (fala-se neste caso de indexicalidade). William Cooper e John Ross listam – para o inglês apenas, mas alguns princípios têm um alcance seguramente mais vasto – 22 condicionantes da ordem dos pares de palavras, embora algumas delas tenham pouca relevância. Eles próprios propõem uma condicionante fonológica de contraste curto/longo, que é semelhante à lei de Hagège e que pode explicar as exceções que notam na sua proposta de 22 condicionantes: não havendo outras condicionantes a atuar, past and present e dead or alive, por exemplo, deviam ser, segundo as suas propostas, present and past e alive or dead) [4][5]. Evidentemente, é difícil saber o que há de universal na lista de Cooper & Ross e o que é culturalmente determinado. 

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Em 2010, Phillipe Mérigot fez, para a sua tese de doutoramento, um estudo em que analisa os efeitos da transgressão Lei do Segundo Pesado na publicidade e comunicação, testando experimentalmente «os efeitos da transgressão da Lei do Segundo Pesado na memorização e reconhecimento de anúncios e a atitude para com o anúncio em dois estudos de laboratório» e ainda examinando «os efeitos sobre o impacto de uma campanha de envio de e-mail real, manipulando a linha de assunto de um e-mail comercial enviado a 88.000 consumidores.»

Provar-se a hipótese de Hagège pode ter implicações curiosas, e não só nos domínios da propaganda e da comunicação para um fim determinado. Pode pensar-se o que significaria a constatação de um mecanismo mental inato dessa natureza para a perceção do literário – a perceção da força e da beleza da palavra como arte. Falei aqui na Travessa de uma pessoa a quem ouvi dizer que, «se Camões tivesse escrito «aquela leda e triste madrugada», em vez de «aquela triste e leda madrugada», teríamos não só uma banalidade semântica como uma banalidade fonética»; e comentava que «a ideia de quem disse isso é (…) que há uma ordem natural nos elementos do discurso, [rompendo o poeta] essa ordem natural para reorganizar o mundo numa voz única, sua apenas». Segundo a hipótese do Segundo Pesado, o segundo elemento da coordenação leda e triste é mais pesado e, por isso, esta sequência é mais natural; além disso, é também mais natural, segundo a proposta de Cooper e Ross, que o elemento positivo venha antes do elemento negativo. Triste e leda seria «desviante», para o dizer de uma forma simplificada, mas será o desviante mais atraente? 

O estudo que refiro procura, precisamente, dar resposta a este tipo de interrogações – se bem que não analise o discurso literário, mas sim as mensagens publicitárias, em sentido lato. Ora, alguns estudos da comunicação publicitária constatam que quanto mais tempo se demorar na leitura de uma mensagem, mais bem memorizada ela é, como pode parecer óbvio aliás. Assim, seria de prever que uma ordem menos natural faça aumentar o tempo dedicado à leitura e, ao mesmo tempo, a atenção que se presta à frase, o que resultaria em melhor memorização/reconhecimento da mensagem. Os resultados dos testes parecem indicar que a inversão simples da ordem que, segundo a hipótese do segundo pesado, seria a mais «natural» não tem efeitos por aí além na receção da mensagem – a não ser que essa inversão se faça em expressões fixas, isto é, expressões que não foram criadas pela pessoa que escreve o texto, mas existem já na sua cultura como forma cristalizada – como tal pai, tal filho, para voltar a um exemplo já referido, ou a preto e branco ou à grande e à francesa, etc.. Diz o resumo do trabalho: 
Os resultados mostram que a transgressão da [Lei do Segundo Pesado] afeta a memorização e o reconhecimento apenas no caso de expressões fixas. No que respeita à [atitude para com o anúncio], o nosso estudo mostra que a transgressão da [Lei do Segundo Pesado] resulta numa tensão que deve ser resolvida no final da mensagem. Além disso, quando uma mensagem contém várias frases transgredindo a [Lei do Segundo Pesado] é sentida como menos irritante, menos aborrecida e mais fiável.
Note-se que esta última frase se deve ler como «em comparação com mensagens em que só há uma transgressão dessa ordem». Ou seja, não parece haver neste estudo nada que confirme o efeito positivo do «desvio» na perceção – nem que o infirme. Mas também é um estudo só, com 93 pessoas. A conclusão é a habitual: são precisos mais estudos sobre o assunto – se alguém achar que é coisa que valha a pena estudar… 

agulhas e alfinetes

Em inglês, quando se fala de agulhas e alfinetes, diz-se às vezes pins and needles, de acordo com a Lei do Segundo Pesado, e outras vezes needles and pins. É esta última forma «irregular» que dá o título a uma famosa canção de Jack Nitzsche e Sonny Bono gravada originalmente por Jackie DeShannon em 1963. Se calhar, a inversão torna a expressão mais apelativa. Já pins and needles é o nome corrente da doença parestesia. É difícil saber qual é, atualmente, a influência do título da canção e do nome da doença na escolha da ordem das duas palavras, quando usadas para referir apenas… agulhas e alfinetes. 


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[1] Já referi, aliás, esta lei num texto da Travessa, especulando que, se a lei não se aplicasse apenas a pares de nomes mas também a conjuntos de três, se podia também explicar porque se diz stone, paper, scissors em inglês (como em português), mas sten, saks, papir («pedra, tesoura, papel») em dinamarquês. 
[2] Nunca? Não sei, alguém me disse uma vez que, na Venezuela, ouvia frequentemente as pessoas trocarem a ordem «normal» em sequências e números, como em diez o cinco minutos
[3] Ver aqui um resumo da discussão e uma análise das restrições propostas que valida estatisticamente 12 delas. 
[4] Um outro exemplo, seria ladies and gentlemen, mas parece-me que a questão se complica aqui um pouco. A quinta condicionante da proposta de Cooper e Ross é que o masculino vem antes do feminino (husband and wife, brother and sister). Se é certo que o poder dos homens nas sociedades patriarcais pode bem explicar esta ordem, também é certo que esse mesmo domínio masculino se reflete às vezes em cavalheirismo: «as senhoras primeiro!» Creio que essa atitude patriarcal e o facto de ela se aplicar mais facilmente a «senhoras» que a mulheres (esposas) ou irmãs pode explicar a diferença entre ladies and gentlemen e husband and wife.
[5] Também se costuma propor, pelo menos para o inglês, uma ordem relativamente fixa da adjetivação múltipla, no caso de não se querer destacar nenhum dos adjetivos: 1 opinião, 2 tamanho, 3 características físicas, 4 forma, 5 idade, 6 cor, 7 origem, 8 material, 9 tipo e 10 qualidade (ver aqui) Trata-se evidentemente, de uma questão completamente diferente. Se a trago a esta nota de rodapé, porém, é só porque me parece interessante constatar que não conheço, neste caso, propostas de uma motivação fonética da sequência natural dos adjetivos, uma coisa que talvez se pudesse esperar… 

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