Com o aumento das quotas obrigatórias de música portuguesa na rádio, ressurgiu há pouco tempo a discussão dessas quotas. Não é isto, porém, que motiva este meu texto, cujo esboço foi iniciado, aliás, há quase cinco anos (!). Quero deixar claro que não tenho nada contra medidas de apoio aos músicos portugueses, e muito menos no atual contexto de pandemia. O que discuto neste texto, porém, tem um âmbito bem mais vasto que a questão das quotas de rádio.
Tive várias vezes longas discussões com amigos meus que me diziam que era preciso «defender a música portuguesa». Esta ideia da «defesa da música portuguesa» – às vezes também chamada «a nossa música» – é suficientemente antiga para eu sempre a ter conhecido e é uma ideia que tem a força de ser comum a vários setores ideológicos e musicais. Mas é uma ideia que sempre me pareceu pouco clara ou, por vezes, bastante ilógica, assumindo pressupostos que, para mim, não são de modo algum evidentes.
Uma interrogação que nos surge imediatamente quando começamos a refletir sobre este tema é porquê defender uma música e que música se deve defender? Satisfaz-me a resposta que cabe ao Estado defender os interesses dos seus cidadãos e que, por isso, o Estado deve defender a música feita por esses cidadãos — embora, como argumentarei mais à frente, nem sempre disso resulte a defesa de uma música que todos considerem portuguesa. Mas, aceitando essa primeira premissa, deve então defender-se toda a música de cidadãos portugueses da mesma maneira? A resposta depende, em grande medida, da ideia política de cada um, do papel que cada um atribui ao Estado na nivelação das assimetrias existentes. A resposta que me surge imediatamente é que se deve defender mais a música que mais precisa de ser defendida: a música de qualidade que não pode defender-se a si própria, porque, pelas suas características, não pode ser nunca suficientemente vendável para que dela alguém possa viver. É esse o critério que, nalguns países, leva à atribuição de subsídios a artistas — músicos, poetas ou outros — que trabalham em géneros artísticos não comerciais que se pretende preservar, porque se considera que, embora marginais, são uma parte importante da produção artística de um país. Evidentemente, estas decisões são também difíceis e às vezes polémicas — porque o grande público vê com maus olhos gastarem-se os dinheiros públicos em coisas de que o grande público não gosta nada; e porque é muito difícil arranjar critérios fiáveis e abrangentes para aferir a qualidade. Mas não é normalmente destas músicas que se fala quando se afirma que é preciso defender a música nacional…
De que se fala então quando se fala de música portuguesa? Como dizia acima, a única definição que me parece aceitável é «música composta por indivíduos de nacionalidade portuguesa[1]». Há outras definições, assentes, por exemplo, não no autor mas sim na própria música, mas não vejo bem como se possa medir a portugalidade de uma música.
Só não digo que os nomes maiores da música portuguesa promoveram música essencialmente estrangeira, porque não acredito que haja alguma música essencialmente nacional. Carlos Seixas é, dizem os entendidos, um compositor bastante à italiana; Bomtempo tinha em Haydn a sua principal influência e muitos críticos referem que Joly Braga Santos remete para Respighi e Vaughan Williams. Por exemplo… E podia, sem arriscar muito a que me acusassem de delírio, apontar o «estrangeirismo» de outros nomes maiores da música portuguesa.
Se passarmos da música dita erudita à chamada música popular, a sua portugalidade não é mais fácil de definir. A canção dita ligeira têm óbvias influências estrangeiras. Que haverá de mais popular português que a música pimba que anima de norte a sul o povo português, em bailaricos de verão, patuscadas familiares e jornadas de trabalho? Ora, como outros estilos de canção ligeira anteriores a ele, o pimba e seus congéneres de grande público fizeram adaptações «portuguesas» de música estrangeira — a chamada música schlager internacional[2]. A canção dita «de texto» ou «de autor» tem também influências directas da canção de outros países, talvez sobretudo da canção francesa, como, aliás, os seus autores muitas vezes admitem. O pop-rock português, esse, é frequentemente criticado por ter como modelo a «música anglo-saxónica» (mais uma expressão muito difícil de definir com rigor). Há até dois esquemas clássicos de fado que se chamam o bolero do Machado e o bolero do Zé Inácio… Todos os géneros musicais têm, enfim, muitos modelos estrangeiros e isso é apenas natural: por que razão haveria um músico de recusar absorver o que é feito além-fronteiras?
É claro que Luís de Freitas Branco tem as Suites Alentejanas Nº 1 e Nº 2, Braga Santos as Variações sobre um tema alentejano, que a música «tradicional rural» influencia também desde a canção ligeira até à canção de intervenção, que o fado de Coimbra é uma das principais influências dalguns dos primeiros e mais influentes cantautores, etc. Mas também a música «tradicional», rural ou urbana (um adjetivo como tradicional cobre coisas muitos diferentes, muitas delas bastante recentes, por tal sinal) é, como todas as outras músicas, o produto de músicas que vêm um pouco de toda a parte, desde a música de origem persa do Califado de Córdoba, provavelmente, até à música litúrgica ou às canções e músicas de dança que, mesmo antes de haver discos, circulavam já com relativa facilidade, por toda a Europa e não só. Toda a música dita tradicional é, pelo menos em parte, fusão de músicas diversas, das melodias às letras e às sonoridades, e vai-se sempre alterando num processo dinâmico.
E depois, músicas nacionais são também as músicas nacionalizadas, ou não? Para as pessoas da minha idade e da minha região, a música do canadiano Robert Farnon que abriu durante anos as emissões da RTP é uma música portuguesa, porque é a música da televisão portuguesa; e a música tradicional do Carnaval português... é o samba.
Músicas puras, enfim, que reflitam de forma inequívoca e trans-histórica a «alma de um povo», desculpem, mas não sei quais sejam, porque essa ideia romântica não corresponde a nada de efetivamente observável. Mas, mesmo sem sabermos bem o que é música portuguesa, podemos voltar ao início da discussão para a concluir com uma constatação simples: se cabe ao Estado proteger os seus cidadãos e, por conseguinte, a música destes cidadãos, são todos os músicos portugueses vivos que o Estado deve proteger, antes de mais — componham ou não «música portuguesa» e em português, e — muito importante — toquem e cantem ou não música portuguesa e em português. Não se garantiria, ainda assim, a resolução do problema atrás referido (apoiar e proteger os que mais precisam de apoio e proteção, por serem menos comerciais), mas já se teria uma definição mais sensata de quem defender: não uma entidade bastante vaga chamada música portuguesa, mas os músicos de nacionalidade portuguesa, mesmo que componham música klezmer ou interpretem Motörhead ou Stravinski.
Das peças abaixo, quais refletem o património cultural português e as sonoridades e ambientes tradicionais portugueses? Quais se podem considerar música portuguesa?
Simone de Oliveira, “Amor à portuguesa”, 1959
Uma canção composta pelo espanhol Enrique Confiner em 1953. Além do original castelhano, tinham já sido gravadas versões em inglês, francês, alemão e italiano antes da versão portuguesa de Simone Oliveira.
Iris Rautio: “Benfica”, 1963
Não sei nada desta canção finlandesa, mas não há dúvida de que fala de Portugal. Se fala de Benfica ou do Benfica, isso não sei, mas, como Iris Rautio era uma cantora pop conhecida, há de ter contribuído para divulgar Portugal na Finlândia, numa altura em que não havia provavelmente muitos finlandeses que viessem de férias a Portugal.
Conjunto de João Paulo: “Hully Gully do Montanhês”, 1965
Não se trata de uma versão. É uma composição de Sérgio Borges e Carlos Alberto Gomes. Hully Gully não é uma expressão portuguesa, mas acho que se pode dizer que a letra é em português...
Joly Braga Santos: Sinfonia Nº 6, 1972
Não se trata de uma obra em português, embora tenha um texto de Camões — mas em castelhano…
Constança Capdeville: Momento I, 1974
Música bem portuguesa, esta, na autoria e na interpretação (do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, dirigido por Jorge Peixinho)
Enza Pagliara: “Pizzicarella”, 2002
O folclore salentino tem, como outros tipos de folclore europeu, sonoridades semelhantes às de algum folclore português. Contribui para essa semelhança o uso do acordeão, um instrumento inventado na Alemanha há cerca de 200 anos, com base no sheng asiático, trazido para a Europa nos fins do séc. XVIII, que inspirou a criação de vários aerofones de palheta livre.
César Viana: Land der Brüderlichkeit, 2020
Land der Brüderlichkeit significa «terra da fraternidade». Trata-se de um «prelúdio coral», que, em vez de se basear num hino luterano, se baseia em “Grândola, vila morena” de José Afonso.
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[1] É claro, uma pessoa pode perguntar-se se a música de Thilo Krasmann era portuguesa antes de este músico ter obtido a cidadania portuguesa, mas deixemos agora essas picuinhices…
[2] A música que em Portugal se chama pimba e os seus parentes próximos designam-se em várias línguas pela palavra alemã Schlager. Para dar apenas dois exemplos simples de schlager em português, o “Vinho verde” que é do meu Portugal e que faz seguramente parte da música portuguesa que alguns querem defender, é uma versão de uma canção alemã de Michael Kunze e Udo Jürgens, “Griechischer Wein”, de que há também versões pelo menos em croata, finlandês, neerlandês e polaco – e que alguns croatas, finlandeses, neerlandeses e polacos considerarão provavelmente, música sua; e os dois amores de Marco Paulo são uma versão de um tema do músico grego Giorgios Hatzinassisos...
Há tanta coisa que não é o que parece...
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