19/01/23

Javanês e criptografia

 

Escrevia Aquilino Ribeiro, no seu prefácio ao Dicionário de Calão de Albino Lapa, que «o calão começou por ser uma linguagem de defesa do fraco contra o poderoso, do preso contra o carcereiro e algoz, do conspirador contra o juiz e o tirano. Que procurasse tornar-se criptográfica o mais possível, é lógico.» 

Há muitas maneiras de encriptar o que se diz, umas mais simples e outras mais complicadas, para se poder falar sem ser entendido. Normalmente, o calão usa um processo de substituição lexical: em vez de calças, diz-se galdos ou galdinas; em vez de porta diz-se drofa; em vez de ir-se embora, diz-se ir d’espiante; e assim sucessivamente, mas sem alterar as regras sintáticas, morfológicas, fonéticas, etc., da língua. Há formas de calão, porém, em que, em vez de substituir as palavras, se as criptografam — com códigos muito mais simples que os usados em verdadeira criptografia, mas que chegam para que quem não domine o código não compreenda o que é dito.

Há um código português desse tipo chamado badoncali, que aprendi na minha adolescência. Funciona assim: agarra-se numa palavra e tira-se-lhe um número qualquer de sons do início (no mínimo, uma consoante ou um grupo de consoantes), deixando uma vogal como som inicial. Depois, cola-se bad- (b- apenas, nalguns casos raros) no início do pedaço de palavra que ficou e acrescentam-se à nova sequência os sons que se roubaram no início, juntando-lhes um -i para rematar. Badoncali é calão em badoncali: calão − cal- = ão + bad- (antes) = badão + -cal- + -i = badãocali. Só que, por muito que seja concebido para não ser entendido por falantes do português, o badoncali é português, porque é falado por pessoas que têm na cabeça a estrutura do português. E não há o ditongo [ão] no meio de uma palavra, a não ser antes de diminutivos e aumentativos [o que é, de facto, um argumento sólido para defender que os sufixos aumentativos e diminutivos não são vulgares sufixos, mas isso é outra história] e a sequência ‑cali não é diminutivo nem aumentativo. É então necessário transformar badãocali em badoncali, aplicando-lhe as regras fonéticas do português. .

Existem em francês dois códigos semelhantes a este, o louchébem, o calão dos talhantes, e o largonji. Louchébem (pronunciado /luchêbéme/) é boucher, “talhante” (pronunciado [buchê]) sem o B inicial, que vai para o fim e que é susbtituído por um L. Ao todo acrescenta-se /-eme/ e está feito.: /buchê/ -B + L= /luchê/; /luchê/ + B + /eme/ = /luchêbème/, louchébem. Sabendo agora vocês que largonji é jargon, «jargão», em largonji, não preciso de vos explicar o processo de formação deste outro código.

Quando éramos miúdos pequenos, tínhamos a língua dos PP, um código mais simples (chamado jeringonza em espanhol), em que se pospõe a cada sílaba uma outra sílaba igual, mas começada por P. Batata, por exemplo, fica /bapatápátapa/.

O javanais, também francês, é um esquema simples como a língua dos PP, mas dá formas complicadas: acrescenta-se /av/ entre uma consoante ou grupo de consoantes em princípio de sílaba e a vogal que se lhes segue. Por exemplo, patate, «batata», fica /pavatavatave/.

Para terem uma ideia de como soa, deixo-vos uma cantiga com letra de Boris Vian e música do grande Alain Goraguer. A canção tem partes em javanais e partes em francês não encriptado, digamos assim, mas o francês nem sempre é aquele que se aprende na escola, de maneira que mesmo o que não é em javanais é capaz de não ser fácil de perceber para quem não domine bem o calão francês. Com tantos dicionários de calão francês que há em linha, porém (nesta plataforma, pode pesquisar-se em vários deles), rapidamente esclarecerão as dúvidas que possam ter.

Louis Massis, « La Java Javanaise » (B. Vian/A. Goraguer), 1957

(Parlé)

Salut les mecs

Alors, c’est d’accord?

Pour que les caves ils n’entravent que dalle

On jaspine le javanais


Traînons ce soir 

Travaînavons çave soivar

Cherchons un cave rempli de pognon

Ravemplavi d’pavognavon

Pour y jouer la java javanaise

Sur le pont de Charenton

Voilà un mec

Voivalava avun mavec

Fais-y les poches

Vas-y Jimmy

Vava-z-avy Djavimavy

Aussi sec on se barre à l’anglaise

Dans la rue de paradis


Tous les chemins mènent à Rome

Mêm’ si c’est d’Rom’ qu’on est partis

Mais les javas mêm’ javanaises

Vous ramèn’nt tout’ à Paris

On est bourrés

Avon n’avest bavourravés

Bourrés d’billets

Comm’ des rajahs

Cavomm’ davez ravajavahs

Allons boire un coup de vichy-fraise

Loin de la plac’ de l’Opéra


Sifflons en chœur

Savifflavons zaven choaveur

Sifflons en chœur

Cette java

Çavettave javavava

Sifflavons la java javanaise

C’est à Pigalle qu’on ira

Passez le pognon

Pavassavez l’pavognavon

Passez l’oseille

Passez le fric

Pavassavez lave fravic

Faut que l’artiste se fass’ de la braise

Tout en haut d’la rue Lepic

L’accordéon

Et le saxo

Nous mett’nt le cœur en morceaux

Tiens… ma Julie

‘S’que tu fous là ?

Je te croyais chez ton papa …

Et qui c’est, ce gonze avec qui tu guinches?

On peut savoir?

Lâche ma souris

Lavâche mava savouravis

Lâch’ ma souris

Sinon j’te tue

Savinavon j’tave tavues

Adieu la javavavanaise

Jamais tu la dans’ras plus


Et ramène-toi par là, tézigue

Prends toujours ça c’est un acompte…

Vas-y, Balta, fais-le creuver

Ton soufflet

[Atualizado a 2 de julho de 2023]

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