Escrevia Aquilino Ribeiro, no seu prefácio ao Dicionário de Calão de Albino Lapa, que «o calão começou por ser uma linguagem de defesa do fraco contra o poderoso, do preso contra o carcereiro e algoz, do conspirador contra o juiz e o tirano. Que procurasse tornar-se criptográfica o mais possível, é lógico.»
Há muitas maneiras de encriptar o que se diz, umas mais simples e outras mais complicadas, para se poder falar sem ser entendido. Normalmente, o calão usa um processo de substituição lexical: em vez de calças, diz-se galdos ou galdinas; em vez de porta diz-se drofa; em vez de ir-se embora, diz-se ir d’espiante; e assim sucessivamente, mas sem alterar as regras sintáticas, morfológicas, fonéticas, etc., da língua. Há formas de calão, porém, em que, em vez de substituir as palavras, se as criptografam — com códigos muito mais simples que os usados em verdadeira criptografia, mas que chegam para que quem não domine o código não compreenda o que é dito.
Há um código português desse tipo chamado badoncali, que aprendi na minha adolescência. Funciona assim: agarra-se numa palavra e tira-se-lhe um número qualquer de sons do início (no mínimo, uma consoante ou um grupo de consoantes), deixando uma vogal como som inicial. Depois, cola-se bad- (b- apenas, nalguns casos raros) no início do pedaço de palavra que ficou e acrescentam-se à nova sequência os sons que se roubaram no início, juntando-lhes um -i para rematar. Badoncali é calão em badoncali: calão − cal- = ão + bad- (antes) = badão + -cal- + -i = badãocali. Só que, por muito que seja concebido para não ser entendido por falantes do português, o badoncali é português, porque é falado por pessoas que têm na cabeça a estrutura do português. E não há o ditongo [ão] no meio de uma palavra, a não ser antes de diminutivos e aumentativos [o que é, de facto, um argumento sólido para defender que os sufixos aumentativos e diminutivos não são vulgares sufixos, mas isso é outra história] e a sequência ‑cali não é diminutivo nem aumentativo. É então necessário transformar badãocali em badoncali, aplicando-lhe as regras fonéticas do português. .Existem em francês dois códigos semelhantes a este, o louchébem, o calão dos talhantes, e o largonji. Louchébem (pronunciado /luchêbéme/) é boucher, “talhante” (pronunciado [buchê]) sem o B inicial, que vai para o fim e que é susbtituído por um L. Ao todo acrescenta-se /-eme/ e está feito.: /buchê/ -B + L= /luchê/; /luchê/ + B + /eme/ = /luchêbème/, louchébem. Sabendo agora vocês que largonji é jargon, «jargão», em largonji, não preciso de vos explicar o processo de formação deste outro código.
Quando éramos miúdos pequenos, tínhamos a língua dos PP, um código mais simples (chamado jeringonza em espanhol), em que se pospõe a cada sílaba uma outra sílaba igual, mas começada por P. Batata, por exemplo, fica /bapatápátapa/.
O javanais, também francês, é um esquema simples como a língua dos PP, mas dá formas complicadas: acrescenta-se /av/ entre uma consoante ou grupo de consoantes em princípio de sílaba e a vogal que se lhes segue. Por exemplo, patate, «batata», fica /pavatavatave/.Para terem uma ideia de como soa, deixo-vos uma cantiga com letra de Boris Vian e música do grande Alain Goraguer. A canção tem partes em javanais e partes em francês não encriptado, digamos assim, mas o francês nem sempre é aquele que se aprende na escola, de maneira que mesmo o que não é em javanais é capaz de não ser fácil de perceber para quem não domine bem o calão francês. Com tantos dicionários de calão francês que há em linha, porém (nesta plataforma, pode pesquisar-se em vários deles), rapidamente esclarecerão as dúvidas que possam ter.
Louis Massis, « La Java Javanaise » (B. Vian/A. Goraguer), 1957
(Parlé)
Salut les mecs
Alors, c’est d’accord?
Pour que les caves ils n’entravent que dalle
On jaspine le javanais
Traînons ce soir
Travaînavons çave soivar
Cherchons un cave rempli de pognon
Ravemplavi d’pavognavon
Pour y jouer la java javanaise
Sur le pont de Charenton
Voilà un mec
Voivalava avun mavec
Fais-y les poches
Vas-y Jimmy
Vava-z-avy Djavimavy
Aussi sec on se barre à l’anglaise
Dans la rue de paradis
Tous les chemins mènent à Rome
Mêm’ si c’est d’Rom’ qu’on est partis
Mais les javas mêm’ javanaises
Vous ramèn’nt tout’ à Paris
On est bourrés
Avon n’avest bavourravés
Bourrés d’billets
Comm’ des rajahs
Cavomm’ davez ravajavahs
Allons boire un coup de vichy-fraise
Loin de la plac’ de l’Opéra
Sifflons en chœur
Savifflavons zaven choaveur
Sifflons en chœur
Cette java
Çavettave javavava
Sifflavons la java javanaise
C’est à Pigalle qu’on ira
Passez le pognon
Pavassavez l’pavognavon
Passez l’oseille
Passez le fric
Pavassavez lave fravic
Faut que l’artiste se fass’ de la braise
Tout en haut d’la rue Lepic
L’accordéon
Et le saxo
Nous mett’nt le cœur en morceaux
Tiens… ma Julie
‘S’que tu fous là ?
Je te croyais chez ton papa …
Et qui c’est, ce gonze avec qui tu guinches?
On peut savoir?
Lâche ma souris
Lavâche mava savouravis
Lâch’ ma souris
Sinon j’te tue
Savinavon j’tave tavues
Adieu la javavavanaise
Jamais tu la dans’ras plus
Et ramène-toi par là, tézigue
Prends toujours ça c’est un acompte…
Vas-y, Balta, fais-le creuver
Ton soufflet
[Atualizado a 2 de julho de 2023]
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