27/12/19

Três pequenas notas sobre charro, insumo e sótão

Charro

Há um caso conhecido de contribuição do híndi para o vocabulário dos amadores de Cannabis sativa em Portugal. Ganza vem obviamente do híndi ganja, गांजा, termo cujo uso nas línguas europeias está documentado há séculos, com o seu significado original, isto é, referindo apenas o produto. Os outros usos em português moderno, para significar «uma dose de Cannabis» («fumar uma ganza») ou o seu efeito («estar com uma grande ganza») surgem, obviamente, por extensão do significado original.

Menos óbvia é a etimologia de charro, mas parece-me provável que também tenha origem indiana — embora, como ganja, deva ter chegado ao português pelo inglês, língua de comunicação na Índia e língua franca do quem, nos anos sessenta, a divulgou no Ocidente—e à Cannabis... Muitos amadores de Cannabis anglófonos conhecem—sobretudo se tiverem viajado na Índia, mas não só—o termo inglês churrus (pronunciado [tchâras], mais ou menos), ou as suas variantes charras ou charas, que designa um tipo de haxixe (do híndi चरस, urdu چرس). É bem possível que o termo, originalmente um nome não contável como haxixe, imediatamente se tenha tornado contável em português, passando a designar não o produto, mas os cigarros em que ele se consome — possivelmente por analogia com cigarro, precisamente, a que também pode ter ido buscar o rr «longo».

Insumo

Quando faz falta uma palavra, a língua arranja-a logo. Ou se cunha uma palavra nova ou se importa uma palavra de outra língua. Acho que muitos falantes do português sentiam e sentem muitas vezes dificuldades em traduzir o inglês input. É certo que, quando se traduz, não é em palavras isoladas que se deve pensar, e sim em frases completas, mas todos, mesmo os melhores tradutores, se deixam apanhar na armadilha de emperrar em palavras concretas.

Traduzo as definições de input do Cambridge em linha: «aquilo que se introduz num sistema, organização ou máquina (como energia, dinheiro ou informação) para que este/a possa funcionar; ajuda, ideias ou conhecimento que alguém fornece a um projeto, organização, etc.; um recurso, como sejam materiais ou mão-de-obra, que entra na produção de qualquer coisa e cujo custo tem influência nos lucros».

Se procurarem no dicionário técnico da União Europeia, depois de escolher EN como língua de partida e PT como língua de chegada, obterão 513 entradas com a palavra e as suas correspondentes em português em cada caso. Input pode traduzir-se por entrada, fluxo, meio, fator de produção, aporte, contributo e seguramente muito mais, consoante o contexto em que ocorra. Ah, e por insumo, claro!

Lido muito com a palavra insumo há cerca de 20 anos. Em agricultura, por exemplo, fala-se muito de insumos agrícolas para referir sementes, adubos pesticidas e herbicidas, alfaias e maquinaria, tudo aquilo que é necessário para produzir. Mas pode falar-se de insumos para qualquer atividade produtiva. Pessoalmente, uso a palavra apenas para referir coisas materiais, mas há quem lhe dê um uso mais vasto. Por exemplo, eu nunca diria “insumos para a elaboração de um relatório” (nesse caso, usaria contributos), mas há quem o faça.

Tenho quase de certeza de que o termo surgiu simplesmente para traduzir o inglês input. Tenho também quase a certeza de que surgiu no Brasil e que foi importado do castelhano, onde se terá formado já há mais tempo como deverbal de insumir, palavra que não importámos (ver aqui). Depois, do português brasileiro, a palavra espalhou-se rapidamente, sendo agora comum também noutras variantes. Eu conheço-a sobretudo de Moçambique, mas o Porto Editora, por exemplo, acolhe a palavra como termo de economia, sem indicar que é brasileirismo ou moçambicanismo. O mesmo o Priberam

Uma coisa é certa: gostemos ou não dela, é, como se costuma dizer, uma palavra bem formada. Podia ter sido cunhada na nossa língua e segue os preceitos clássicos da «boa formação» de palavras: tem origem latina e tem familiares há muito residentes na nossa língua, como consumo, consumir, eximir, prémio, pronto, presunção, redimir, resumo, resumir, subsumir, etc., etc., todas elas com origem no emere latino, «tomar, obter», ou em sumere, variante de subemere.

Sótão

Mostrava-me um amigo meu, no outro dia, uma foto de uma placa anunciando um restaurante chamado O Sótão na cave de um edifício. Eu percebo a piada da foto, claro, mas, pensando bem na palavra, mais surpreendente que um sótão na cave é que sótão não signifique mesmo cave, como se poderia esperar.

Em castelhano, sótano significa «cave» e o cognato italiano, sottano, é expressão regional para designar uma habitação térrea pobre, também conhecida como basso. Não parece haver consenso quanto à etimologia de sótão: uns propõem uma forma latina não atestada, *subtānu-; outros outra forma latina, subtulu-, que teria dado uma forma intermédia sótalo em castelhano. Mas, seja como for, o significado etimológico é sempre «o que está debaixo; a parte de baixo»—o que é patente nos cognatos castelhano e italiano. A explicação que se costuma dar para a deriva de sentido do termo português é que o sótão está debaixo do telhado, mas é uma explicação convincente, sobretudo quando não se aplica aos cognatos nas línguas próximas?

Uma outra explicação poderia ser (isto é puramente especulativo, como muitas propostas de explicação de evoluções semânticas—sou só eu a pensar em voz alta, como se costuma dizer) que o termo, originalmente designando a cave, tivesse ganho um sentido de «arrecadação», que passou a aplicar-se independentemente da situação da arrecadação no edifício e que depois de especializou nos espaços usados para esse fim na parte superior das casas.

23/12/19

Feliz Natal

Como todos sabem, a tradição já não é o que era, sobretudo porque, de facto, já não era muito o que era quando ainda era aquilo que já não é... Além disso, o melhor ainda é cada qual arranjar a tradição que lhe convenha, se acaso lhe não convier a tradição que há. De maneira que, cá em casa, a tradição costuma ser peru no Natal, exceto nos Natais em que a tradição foi ganso e nos Natais em que a tradição foi pato, que também os houve. Nos anos em que a tradição foi peru, assou-se o peru no forno, coberto de bacon, a muito baixa temperatura (o dia todo), e aconteceu também acrescentarmos-lhe recheio de ameixas secas e maçãs, que fomos buscar ao primeiro ano em que a tradição foi ganso...

O nome inglês do peru diz que ele que vem da Turquia, mas, na realidade, é bicho originário da América do Norte, tendo sido domesticado mesmo no sul desta parte do mundo, na zona que é atualmente o México. Quanto ao nome português, há que compreender que Peru designava muitas vezes não o Peru atual, mas as colónias americanas de Espanha. Do nome francês, que o diz da Índia, também não se pode dizer que esteja incorreto, porque a América eram as Índias Ocidentais, não é verdade? Aliás, os canadianos francófonos também chamam ao milho trigo da Índia.

Foto: Paulo Guedes, sem data: Venda ambulante de perus na época do Natal, Largo de São Domingos, Lisboa (daqui)

Este ano, para variar, vamos introduzir uma tradição nova, um fiambre glaceado, ou seja, neste caso, barrado com uma mistura de mostarda de Dijon e mel e assado no forno a baixa temperatura, talvez com um bocadinho de calor forte no fim para caramelizar a superfície.

Tradição inalterável no Natal da nossa família, só o gelado caseiro â sobremesa – os sabores é que podem variar, entre chocolate, rum com passas ou caramelo com amêndoas. Bem veem, os nossos filhos tinham dois, quatro e seis anos quando fomos viver para Moçambique, de maneira que foram quentes os Natais mais importantes da vida deles. E nem o inverno dinamarquês lhes tira o gelado natalício.

A todos os leitores habituais do blogue, e também a quem venha por acaso aqui parar, desejo um Feliz Natal, com as iguarias que as tradições de cada um lhes ponham na mesa da consoada.

22/12/19

Importante nunca esquecer


Quer se fale de massa ou de arroz, al dente não significa cru.

Sim?

Solstício de inverno [Crónicas de Svendborg #34]


Anteontem, perguntei a um senhor meu conhecido, natural desta ilha de Tåsinge e que tem agora a bonita idade de 95 anos:
 – E então, tudo a postos para o Natal?
– Não celebro o Natal – respondeu ele. – Mas celebro o solstício. Comprei uma garrafa de vinho branco e uns lagostins e depois de amanhã celebro o solstício, como sempre fiz.

E eu que pensava que isto de celebrar o solstício de inverno em vez do Natal era moda recente de neopagãos new age

08/12/19

De pé, como as árvores [Crónicas de Svendborg #33]

Quando eu era miúdo, vi várias vezes (?) na televisão uma peça de teatro chamada As árvores morrem de pé, com Palmira Bastos no papel principal. Também vos recordais? As coisas que nos vêm à cabeça…. Fui agora ver ao Google e fiquei a saber que a peça é de um dramaturgo espanhol chamado Alejandro Casona e que Palmira Bastos tinha 90 anos quando a gravou para a RTP, um ano antes da sua morte. Não sei nada de Palmira Bastos nem me lembro nada da peça, a não ser que tinha um final trágico que impressionou muito os oito aninhos que eu tinha, em que a atriz declamava (também vi isto agora no Google): «Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores!».

Agora, isto de as árvores morrerem de pé, enfim, é conforme… Há de facto árvores que morrem de pé, como o castanheiro da primeira foto. Este morreu à míngua de luz, rai’s parta’ os abetos que o rodeavam, que o atabafaram, antes de terem desbastado, tarde demais, o espaço à sua volta.

E há outras que caem mortas, como a faia da segunda foto. Diz que ar e vento é meio sustento, mas ela, com o ar em tanto movimento, não se sustentou. (Também deve haver árvores que não têm onde cair mortas, mas isso é outra história…)

Já agora, continuando a avaliar como se enraízam no real as metáforas vegetais, pode constatar-se que morrer ou não de pé é independente de se ter ou não raízes no local onde se morre: o castanheiro da foto, que mantém intactas as suas raízes, é árvore imigrante, ao passo que a desenraizada faia é árvore com raízes locais.

23/11/19

Nørreskov [Crónicas de Svendborg #32]


A Nørreskov, a «mata norte», é uma das matas da ilha de Tåsinge.
Escreveram-se em casca de bétula textos religiosos, tratados de matemática, medicina e gramática, provérbios, fórmulas encantatórias, trabalhos escolares e, com toda a certeza, cartas comerciais e de amor, entre muitas outras coisas. Mas não foi em casca destas bétulas, claro está.
Este é um exemplo extremo, mas na Nørreskov dobram-se as árvores para o mar que a ladeia. Estamos habituados a que sopre o vento do mar para a terra, mas aqui é ao contrário, o vento empurra as árvores para a praia: «Vão, vão, vão, ali em frente há mais terra, mais terras, lugares para novas raízes.»
Há pessoas que vão passear para centros comerciais ao fim de semana. (E porque não?)
Na Dinamarca, não há rios. Há regatos e ribeiras, mas rios não. «Muitos riachozinhos fazem uma grande ribeira», diz um provérbio dinamarquês que é primo do nosso «grão a grão enche a galinha o papo». A palavra å, que significa «ribeira», é com certeza um dos mais curtos nomes do mundo, pelo se nos guiarmos pelo critério do número de letras com que se escreve — juntamente com ø, que significa «ilha». (Sobretudo se não contarmos o nome das letras do alfabeto.)
Faias. A folhagem esconde uma parte da beleza das árvores.
Não deixa de ser curioso que o latim silva-, «mata, bosque, floresta», tenha dado em português duas coisas tão diferentes como selva e silva. Já agora, que falamos de silvas, também não deixa de ser curioso que em português se dê o mesmo nome de amoras aos frutos das silvas (arbustos do género Rubus) e das amoreiras (árvores do género Morus).
«De Santos a Natal, é inverno natural», diz o provérbio português. E mais aqui. Pouco já resta das cores outonais e vai-se esgaçando o tapete de folhas.

19/11/19

Reanimação


Se um dia me virem morrer de algum mal remediável, por favor não me tentem ressuscitar: a morte é a pior coisa que pode acontecer na vida de uma pessoa e eu não quero passar duas vezes por tão horrível experiência.


10/11/19

Sopa de maní

Fiz hoje sopa de amendoim, uma sopa boliviana que não fazia há muito tempo e, como creio que é um prato bastante desconhecido das/os habituais e potenciais leitoras/es deste blogue, achei que devia pôr aqui a receita — tanto mais que pôr aqui receitas também é coisa que não faço há algum tempo.

Há milhares de receitas de sopa de amendoim e esta é uma receita adaptada à Europa, com ingredientes fáceis de encontrar. Exceto, talvez, o ingrediente principal, o amendoim cru. Pois, porque, em princípio, para fazer sopa tem de se usar amendoim cru. Agora, eu digo «em princípio», porque já fiz com amendoim torrado — mas pouco torrado, ainda branco — que deixei de molho em água quente umas horinhas e até ficou muito bem. Enfim, com o amendoim que conseguirem ou souberem arranjar, vamos à sopa.

Como quase todas as sopas bolivianas, é uma sopa de caldo de carne. Arranjem um bocado de carne sem gordura, senão a sopa fica gorda demais, porque o amendoim é gordo. Digamos 300 g, vá, só para vos dar uma ideia, mas isso depende de quanta carne querem comer. Deve haver um bocado de carne em cada prato, mas escusa de ser um bocado grande. O caldo pode ser de vaca ou de galinha ou das duas coisas misturadas, é conforme gostarem mais. As quantidades que vou dar são as mais frequentes nas receitas que encontro na internet. Eu sempre fiz a olho e sempre acertei, mas também percebo que haja quem, à primeira, queira ter uma base por que se guiar. Não dou é indicações de quantidades de sal, que aqui é tudo gente crescida, não é verdade?

Ponham a cozer a carne em três litros de água. Não sei se vale a pena dizer-vos isso, mas é sempre melhor ir escumando. Outra possibilidade (é como eu costumo fazer) é fazer caldo de carne de vaca na véspera e deixá-lo no frigorífico para o dia seguinte, para a gordura solidificar à superfície e ser fácil de tirar. Nesse caso, guardem a carne à parte e juntem-na à sopa no fim, só para aquecer. Mas enfim, seja ele feito de véspera ou na altura, quando o caldo começar a ferver, tirem cerca de um quarto de litro, juntem-lhe a mesma quantidade de amendoim cru e triturem muito bem, até ficar um leite branco espesso. Pode ser num liquidificador, num robô ou com a varinha, como vos der mais jeito. Deitem a pasta de amendoim no caldo. E atenção, porque, quando ela começar a ferver, a sopa sobe, como se fosse leite. Tenham cuidado com isso, mexam e baixem o lume. (Uma alternativa é cozer primeiro o amendoim inteiro no caldo e passá-lo depois de cozido. Vocês verão o que vos dá mais jeito, não há diferença no resultado final.)

Deixem cozer até a carne estar muito bem cozidinha. Desnecessário será dizer que terão de acrescentar o caldo, se se evaporar muita água. O amendoim engrossa o caldo e podem avaliar a consistência. Deve ficar um bocadinho cremoso, mas não espesso demais, até porque ainda vai levar mais coisas.

Entretanto, piquem uma cebola, uns dentes de alho e uma ou duas cenouras, um bocado de aipo e um pimento, refoguem tudo em azeite e deitem o refogado na sopa.

À parte, descasquem umas quatro batatas e cortem-nas em bocados (em oitavos, por exemplo, se não forem muito grandes); descasquem uns 150 gramas de favas (quero dizer tirar mesmo a pele às favas) e preparem mais uns 150 gramas de ervilhas.

Quando a carne estiver cozida — ou quando o amendoim estiver bem cozido, se tiverem cozido a carne na véspera e só tiverem caldo ao lume — juntem-lhe as batatas, as favas e ervilhas. Quando estiverem cozidas, está pronta a sopa.

Relativamente a temperos, há quem ponha cominhos e orégãos. Eu acho que a sopa não ganha nada com isso, mas experimentem e tirem as vossas conclusões. Também há quem ponha salsa picada no fim, creio que mais para decoração do que pelo sabor. As favas e as ervilhas já dão algum verde, mas é sempre bonito um pouco de verde escuro. Fica também ao vosso critério.

Na Bolívia, a sopa serve-se muitas vezes com batatas fritas aos palitos a boiar. É engraçado, de invulgar que é batatas fritas numa sopa, e o sabor não fica mal, mas é trabalho escusado, na minha opinião. Também há quem lhe ponha massa ou arroz, mas eu acho que fica melhor só com o sabor do puré de amendoim.

Hoje não pus favas, porque não as tinha. A sopa tinha este aspeto e — digo-vos eu, que até nem sou de gabar os meus cozinhados — estava deliciosa!





27/10/19

Roupa, estratégia e moral

No disco Burnt Weeny Sandwich, de Frank Zappa, ouve-se, a certa altura, uma pessoa protestar aos gritos contra um homem de uniforme que tenta acalmar os espetadores e lhes pede que voltem aos seus lugares (traduzo eu)*:
– Levem daqui esse homem!– diz o irado espetador. – Vai-te embora! Despe essa farda, pá! Despe essa porcaria desse uniforme, pá, antes que seja tarde demais! 
A resposta de Frank Zappa é célebre, pelo menos entre os seus cultores:
– Toda a gente nesta sala está de uniforme. Não te iludas. 
*** 
Estátua de homem romano com toga, séc. II d. C.
De Tindari, província de Messina, Sicília.
Museu Arqueológico Antonio Salinas, Palermo.
(Wikimedia Commons, daqui
O que se critica muitas vezes nos uniformes, ou, de forma mais geral, nos códigos estritos de vestuário, é fazerem parte de um imaginário e serem expressão de uma ideologia — de uniformização, precisamente, de anulação do individual. De facto (e perdoem-me a banalidade), todas as convenções de vestuário—e, em última análise, também muitos padrões de «quebra» dessas convenções—servem, obviamente, para marcar funções, papéis, lugares nas estruturas sociais. Há roupa de homem e de mulher, de criança e de adulto, roupa formal e informal, enfim, roupa para cada qual no seu lugar. E é algo que interiorizamos e fica fundo em nós: aos homens, custa-lhes vestir uma camisa que abotoe à mulher; uns acham bimbo (seja lá o que for que isso quer dizer…) usar sandálias com meias; outros acham que não se deve usar mocassins com fato completo, etc., etc.

Percebe-se bem, creio eu, onde Zappa quer chegar: mesmo os jovens contestatários da altura, que chocavam pelo seu vestuário extravagante, estavam a seguir um código de vestuário relativamente estrito. Já me aconteceu não poder entrar num bar por ir de jeans e blusão de cabedal, e também já me aconteceu não poder entrar por ir de fato completo… O padrão varia de lugar para lugar, de grupo social para grupo social, mas há sempre um padrão – ou não? E tem mesmo de ser assim? E deve ser assim?

Agora, um uniforme, bem vistas as coisas, também pode ter as suas vantagens. Quando vivíamos em Moçambique, os nossos filhos usavam uniforme na escola—como todas as crianças das zonas urbanas daquela parte de África, aliás, e de outras partes do mundo—e isso facilitava a vida de pais e filhos, porque não era preciso escolher diariamente a roupa e porque se estragava só o uniforme (que se destinava, em parte, a isso mesmo...). Havia também quem argumentasse, não sei se com muita razão, que era uma forma de diminuir as marcas de classe social, porque assim não se podia exibir roupa de marcas caras e outros sinais exteriores de abastança.

E depois, há uniformes de vários tipos, como dizia o Zappa. Trabalhei alguns anos no Centro de Línguas do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Dinamarca, em Copenhaga, e tornou-se claro para mim que havia aí também, mais que um código de vestuário, um verdadeiro uniforme: fatos cinzentos, camisas brancas ou azuis e sapatos pretos de atacador. Ok, podiam variar um pouco mais gravatas e meias, mas pouco. Por comodidade, adotei também esse uniforme não-oficial—também me dava jeito não ter de escolher roupa todos os dias e anonimizar-me mais naquele ambiente.

A minha mulher gosta de contar a seguinte história: um dia, era ela jovem e contestatária, criticou a sensaboria e a falta de personalidade do fato e gravata que o seu pai usava todos os dias.

– Sabes que eu quero que as pessoas oiçam com atenção o que tenho para lhes dizer. Então uso uma roupa em que elas não reparem, que seja o mais possível o que elas esperam que eu use—para não pensarem na roupa que eu visto em vez de pensarem no que eu lhes digo.

É uma escolha estratégica compreensível e estou convencido de que, de forma mais ou menos consciente, é essa a escolha de muita gente. Mas na estratégia não há moral. Se passarmos do ponto de vista tático ao ponto de vista ético, é exigível, parece-me, o contrário do que essa estratégia pressupõe: tenho direito a que ouçam o que tenho para dizer, independentemente da maneira como vá vestido; e tenho, claro está, direito a que não me julguem pela roupa que visto.





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* Entre as faixas “Little house I used to live in” e “Valarie”. Excerto gravado ao vivo Royal Albert Hall, Londres, a 6 de junho de 1969 

14/10/19

Uma bonita idade

De uma conversa entre mim e um senhor com noventa anos de idade:

– Noventa anos? É uma bonita idade!
– Porque diz isso, se não sabe como é ter noventa anos?
– Bom, a maior parte das pessoas não chega lá… Era isso que eu queria dizer.
– Sim, vistas as coisas dessa maneira… Mas tem pouco de bonito, esta idade. Foram-se as forças, morreu a companheira e morreram os amigos… Restam os filhos, de vez em quando, e mais um ou outro familiar, mas só isso… Bonitas idades foram outras idades que já passaram.









[Apêndice para quem saiba francês, porque não me apetece traduzir a canção e, mesmo que me apetecesse, provavelmente não sairia nenhuma tradução de jeito: que saberia Brel da velhice, se morreu aos 49 anos?]

 
     Jacques Brel: « Vieillir », 1977


10/10/19

Peros e maçãs

No dialeto da minha região — e não só —, maçã usa-se para referir os frutos das árvores da espécie Malus domestica que têm uma altura claramente menor do que a largura. Quando os frutos das árvores dessa espécie são claramente mais altos que largos, chamam-se peros. Entre os dois tipos, fica uma nomeação indecisa, creio eu. E, bom, há variedades de que encontram as duas designações, mas não sei se de deve à forma essa hesitação. Nalguns casos, é antes o tempo o responsável: o que era antes pero passou agora a maçã, que, provavelmente, acabará por se impor como termo único para designar os frutos da espécie. Até se chama agora Maçã Bravo de Esmolfe, vejam lá vocês!, ao que sempre foi pero-bravo-de-esmolfe — ou «pero-bravo-mofo», como ouvi muitas vezes dizer… Mas está mal, e não só pelas maiúsculas e ausência de hífens: se querem chamar-lhe maçã em vez de pero, chamem-lhe então maçã-brava-de-esmolfe, sim?

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Tirando raras exceções (agora, lembro-me só de figueira, mas sei que há mais...), há, em português, uma relação direta entre o género da planta e o género do seu fruto — planta masculina, fruto masculino, como limoeiro, pessegueiro, ananaseiro, abacateiro, medronheiro, abrunheiro, coqueiro, etc.; planta feminina, fruto feminino, como laranjeira, macieira, ameixeira, nespereira, bananeira, tamareira, amoreira, etc. Pero não é exceção: à árvore que dá os peros chama-se pereiro.

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Note-se que tanto pero como pereiro estão longe de ser termos espúrios ou «populares» ou «dialetais». Têm pedigree e bom pedigree, como se pode ver na breve história de pero que Isabel Maria Fernandes escreveu no blogue Saberes Cruzados). Não faltam, sequer, abonações de escritores consagrados. Por exemplo, Filinto Elísio, usa o termo em matéria épica, a sua recriação do Oberon de Wielend:
Mas ha lá no jardim, junto á marmorea
Fonte, um pereiro, abérto como um léque.
O pedigree é, aliás, justificado pelo antigo nome botânico: antes de se dividirem peros/maçãs e peras em dois géneros, eram ambas as plantas classificadas num único género, Pyrus, e peros/maçãs eram Pyrus malus.

Ilustrações de May Rivers em The Fruit Grower's Guide, de John Wright (1836), digitalmente tratadas por Rawpixel (daqui e daqui)  


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P.S.: Como já aqui disse uma vez, não são só peros e maçãs que, em português europeus, se distinguem uns dos outros por serem os primeiros mais altos que largos e os segundos mais largos que altos—o mesmo acontece com tacho e panela.

06/10/19

Ditos que o vento levou: «morreu um escrivão»


Perguntaram-me há dias que expressão havia em português para designar uma grande ventania—uma coisa que estivesse para o vento como «chover a cântaros» está para a chuva… Respondi sem hesitar que era «morreu um escrivão», mas depois fiquei na dúvida: seria mesmo uma expressão portuguesa ou só do idioleto da minha avó?


Pus “morreu um escrivão”, sequência exata, fechada com aspas, no motor de busca que costumo usar. Além de umas quantas, poucas, referências a variantes da expressão, encontro o seguinte em “Páginas folclóricas” (1925?), um texto de Luiz Chaves para a Revista Lusitana, dirigida por Leite de Vasconcelos:
 O vento rijo incomoda, é áspero. Atribui-se-lhe com ironia uma causa pejorativa: em Alcanena diz-se que «morreu um juiz em Torres»; em Bragança, «morreu um judeu»; «morreu um escrivão em Santarém», diz-se pela Estremadura central; «morreu um escrivão», diz-se em Lisboa. 
Já vários amigos, lisboetas como eu e mais ou menos da minha geração, me disseram que nunca ouviram tal coisa. É com toda a certeza expressão caída em desuso—de que sou eu, provavelmente, um dos últimos depositários…






Ilustração: Adrien Manglard, Côte et mer par coup de vent, 17??, Musée des Beaux-Arts de Lyon 
(Wikimedia Commons, daqui)

28/09/19

Travessa do Pensa-em-Voz-Alta

Já falei sobre isso com vários amigos portugueses que vivem em França ou que conhecem bem o país: parece que se aceita melhor em França que em Portugal que uma pessoa fale sozinha. Pelo menos, era impressão geral das pessoas com quem falei que é coisa que se vê mais em França e isso deve ser sinal de que é lá mais bem aceite o falar sozinho — ou pensar em voz alta, porque, bem vistas as coisas, é afinal disso que se trata.

Agora, isto são só impressões e se há coisa em que nunca nos devemos fiar são as nossas impressões, mesmo que se lhes chame «experiência», para lhe dar um ar mais fiável. Costumo dizer que o mundo está cheio de maus estudos e más estatísticas, mas mesmo os maus estudos e as más estatísticas são mais fiáveis que as nossas impressões.

Isto a propósito de quê? Ah, pois, de falar sozinho. O que eu queria mesmo era aqui deixar um link para um texto do Toponímia de Lisboa, blogue do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, onde se fala do nome e da história da travessa lisboeta que dá nome ao blogue: “Do Beco à Travessa do Fala-Só”.


P.S. 1: Uma cantiga a propóito (há sempre uma cantiga a propósito seja lá do que for):
Casey Bill Weldon: “Talkin' to Myself”,1936

 


P.S. 2: Também cantar na rua ou noutros espaços públicos é visto como sinal de pouco juízo (se não se tiver à frente um chapéu para recolher doações, « à votre bon cœur, messieurs dames ! »). Eu faço-o de vez em quando, para grande vergonha de quem me acompanha, sobretudo se forem as minhas filhas.



23/09/19

O CF Os Belenenses faz hoje cem anos


A minha saudosa avó Belmira nasceu a 16 de Setembro de 1919. Foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. Tinha 39 anos quando eu nasci e 46 feitos há três dias quando nasceu o meu irmão mais novo. Entre eu e ele nasceram o outro meu irmão e a minha irmã. A minha avó dedicou-nos a nós quatro a segunda metade da sua vida. Faleceu em 2001 e eu, que vivia na Bolívia nessa altura, não pude ir ao seu funeral. Tinha-me dito da última vez que a vi, com genuína serenidade, que estava agora preparada para partir, sem tristeza nenhuma, sem nenhuma angústia, porque nós já tínhamos todos a nossa vida e, por isso, ela já não fazia falta nenhuma. A minha querida avó…

O dia 16 de Setembro de 1919 foi uma terça-feira, vi agora na Internet. Tinha a minha avó exatamente uma semana de vida quando foi fundado o Clube de Futebol Os Belenenses, de que o meu padrinho me fez sócio quando era ainda miúdo pequeno. Sou desde então, «do Belenenses», sem saber muito bem o que isso significa, mas aceitando, com preguiçosa resignação, que isto de ser de um clube é uma coisa que nos acontece, pronto!, e é para toda a vida, como a família ou a nacionalidade… Parabéns ao Belenenses!

O Belenenses não tem nada a ver com a minha avó, que por acaso até era benfiquista. Da família, que não escolhi, ainda bem que me calhou tê-la a ela.

14/09/19

De nacionalidade, cidadania e direito a voto

«Si valimos pa trabayar, tamén valimos pa votar.» Compreendem seguramente a frase, mas provavelmente não sabem em que língua está escrita. É asturiano e é uma frase de um cartaz de 1977. Sei que é de 77, porque foi na primavera desse ano que passei a minha única temporada nas Astúrias, nas montanhas de Mieres. Que pena não encontrar o cartaz na Internet, ficava aqui muito bem a ilustrar este texto.

Nunca esqueci esta frase, provavelmente porque é uma proposição que me parece bastante justa. Na altura, se a memória não me falha, era o slogan de uma campanha de reivindicação do voto aos dezoito anos, mas a frase pode ter muito maior abrangência. Bom, longe de mim querer estabelecer uma relação direta entre o direito a votar e o facto de ter um trabalho. Nem se pode estabelecer uma relação simples e direta entre pagar impostos (ou poder pagá-los) e ser leitor/elegível. A questão é sem dúvida um pouco mais complexa; mas não vejo como se pode contornar o velho e mais que justo princípio de «nenhuma tributação sem representação».

Percebo que, por razões de ordem prática, há que definir períodos mínimos de permanência num lugar ou numa instituição para ter plenos deveres e plenos direito. Mas os prazos atualmente estabelecidos são normalmente longos demais. Além disso, como prevalece a ideia de que certos direitos da cidadania decorrem apenas da nacionalidade e a nacionalidade é uma condição quási-imutável, definida apenas pelo local de nascimento e/ou pela ascendência, há direitos que alguns nunca alcançam, por mais impostos que paguem, por mais que trabalhem, participem e se empenhem na comunidade onde vivem. Não faz muito sentido.

É tempo de passar além das noções clássicas de «direito de solo» e «direito de sangue». Pode ser-se — e é-se de facto muitas vezes — membro efetivo de uma comunidade e cidadão efetivo de um país, sem se ter lá nascido e sem fazer parte da(s) etnia(s) do país. É preciso recuperar a essência da ideia republicana de cidadania: quem é membro de facto de uma comunidade é quem nela vive, nela produz e nela consome—em suma, quem dela efetivamente faz parte—independentemente de onde tenha nascido ou de onde tenham nascido e vivido os seus pais e os seus antecessores. Uma visão não etnicista da nacionalidade e em que tampouco seja determinante o acaso do lugar de nascimento é, na minha opinião, a única que em absoluto faz sentido.

É certo que as leis de nacionalidade preveem quase sempre a possibilidade de esta se adquirir. Mas são normalmente processos morosos e algumas vezes efetivamente discriminatórios: pode a lei dar condições diferentes a homens e mulheres, por exemplo, ou exigir ao candidato a nacional garantias de integração ou conhecimentos sobre o país que os nacionais «naturais» não têm de ter — e muitas vezes não têm de facto.

Acabo de receber o boletim de voto para a eleição do parlamento de um país onde não vivo há 22 anos (Portugal) e não tenho direito a votar nas eleições para o parlamento de um país onde sou oficialmente residente há 18 (Dinamarca). Mas, sem nunca ter tido necessidade de trâmites burocráticos nem outras complicações, tenho direito a votar nas eleições autárquicas dinamarquesas; e, também sem que tenha havido quaisquer diligências da minha parte, posso escolher se, nas eleições para o Parlamento Europeu, voto nas candidaturas dinamarqueses ou nas portuguesas. Porque não se alarga, com a mesma simplicidade, o direito de voto dos residentes estrangeiros às legislativas — sem ter de passar pelo processo de aquisição de cidadania? E não só aqui, claro — em todo o lado.

05/09/19

Sopa de marisco

[Continuamos com sopas e com pão (ver o texto anterior), mas hoje o tema é sopas de marisco.]

Há de haver dezenas de outros tipos de sopas de marisco, mas as que eu conheço dividem-se em duas categorias: com refogado e sem refogado. (Eh eh eh...)

Do primeiro tipo é a bisque clássica, de que passo dar, a quem não conheça, uma ideia de como se faz. Ou seja, de como eu a faço, porque há tantas variações como cozinheiros, claro está. A bisque mais clássica é, creio eu, a bisque de lavagante (bisque de homard), mas ao lavagante não há quem lhe chegue... Em Moçambique, fazia bisque com lagosta, porque a lagosta era barata, mas isso era em Moçambique... Nada impede, porém, de usar o mesmo processo com outro bicho qualquer menos dispendioso.
Ilustração de John Tenniel para Alice no País da Maravilhas, 1896 (Wikimedia Commons, daqui)
Doura-se o marisco inteiro em azeite abundante, mexendo sempre.
Tira-se o marisco do tacho, tira-se a carne das cascas e devolvem-se as cascas ao tacho. Se for um bicho grande, têm de se cortar as cascas aos bocados.

(A carne do marisco desaparece aqui da receita, mas, se quiserem e não precisarem dela toda para nada muito importante,
guardem um bocado para deitar na sopa no fim, ok?) 
Depois, juntam-se às cascas alho, cebola e um pouco de aipo e alho francês, tudo picado grosso, e deixa-se ficar a refogar.
Molha-se em seguida com um bocado de conhaque ou outra bebida do mesmo tipo e deita-se-lhe fogo.

(A parte do flambé era um espetáculo para os meus filhos, quando eram pequenos. Eu chamava-os à cozinha para verem e eles deliravam.) 
Junta-se depois tomate, também picado grosso, e deixa-se estar ali a apurar.
Salpica-se em seguida com um bocadinho de farinha, mexe-se bem e junta-se um líquido. Há quem ponha só caldo de peixe ou marisco (feito em casa ou comprado), eu ponho primeiro um bocadinho de vinho branco e só quando o cheiro a vinho desparece é que junto o caldo. Também se pode pôr só água, claro, se não houver caldo…
Lembrem-se de mexer sempre – agora, que já tem farinha, pode pegar mais facilmente.
No fim, é passar tudo bem passado num passador, espremendo bem. Cascas de marisco e restos do refogado vão para o lixo, o resto é a sopa.
É só acertar temperos e juntar um bocado de nata.
Serve-se com croûtons, pois então, que têm um nome bonito, com um acento circunflexo no u, e uma coisa assim dá muito sabor à sopa. Bom, agora o acento já não é preciso, desde 1990, mas, mesmo sem acento, fica bem. O pão também pode ser frito em vez de torrados apenas, também é bom.

A sopa de marisco do outro tipo, sem refogado, é como se faz mais em Portugal. Aqui fica a minha versão, normalmente com camarão:

Cozam o marisco com uma cebola e uma cenoura grandes cortadas aos bocados. As quantidades são as seguintes: quanto mais marisco se cozer, melhor fica o caldo.
Mal esteja cozido o marisco (é mesmo um instantinho), tirem-no da água, descasquem-no e deitem as cascas outra vez no tacho.

(A carne do marisco também desaparece da receita neste ponto, 
mas, exatamente como na anterior, se não precisarem dela para outra coisa, 
reservem um bocado para pôr na sopa no fim, é sempre uma mais-valia, como se diz agora.) 
Deixem cozer tudo um bocado, uns 20 minutos, uma coisa assim.
Depois, passem o caldo e, como na sopa anterior, espremam tudo — cascas, cabeças, cebola e cenoura — muito bem espremidinho no passador.
Em seguida, passem algum tomate na máquina ou com a varinha e juntem-no ao caldo do marisco.
Deixem cozer algum tempo. Eu deixo cozer uma meia hora, porque não quero juntar açúcar à sopa e tenho esta mania de que o tomate tem de cozer bastante tempo para perder acidez, mas devo dizer que não tenho prova nenhuma de que seja mais que mania minha. Enfim, certifiquem-se, pelo menos, de que o cheiro do tomate cru desapareceu e que cheira apenas a caldo de marisco.
Só falta engrossar a sopa. Deve poder-se engrossar o caldo só com farinha misturada com manteiga – o chamado roux –, sem mais, mas eu faço como aprendi com um rapaz que era cozinheiro de uma daquelas cervejarias à entrada da Almirante Reis: mexo a farinha com manteiga numa frigideira até a farinha começar a torrar — cuidada para não deixar queimar – e é com este roux torrado que engrosso o caldo. Se não melhora o sabor, melhora pelo menos o aspeto, acho eu, porque senão fica a sopa muito clara.
Serve-se também com pão torrado, claro, e desta vez escusa de ser escrito à francesa.
Aconselha-se sempre um bocadinho de picante, aquele que mais vos agradar.

Et voilà ! Vocês, como fazem as vossas sopas de marisco? São muito diferentes das minhas?


Sidney Bechet & His Orchestra: "Hold Tight, Hold Tight (Want Some Seafood Mama)", 1938

02/09/19

De migas e sopa

Mica, miga, migalha, migar, tudo isso vem tudo do latim mica, que quer dizer migalha. É uma família de palavras ibérica, se se pode dizer assim, pois que existem palavras semelhantes em línguas vizinhas — pelo menos em galego (miga, migalla, migar) e castelhano (miga, migaja, migar).*

Uma parte do significado desta família de palavras está relacionado com pão; e migar, além de significar «esfarelar» ou «partir ou cortar em pedaços pequenos», significa «pôr pão na sopa». A sintaxe deste migar é variável. Vê-se por exemplo, em Quando os lobos uivam, de Aquilino Ribeiro, um migar transitivo que tem como objeto a tigela (e, deito-me eu a adivinhar, que nunca tal ouvi, talvez também a sopa…)
«Miga bem a tijela!», dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. «Miga bem, Jaime, que só tens caldo!»
Há também outra construção em que migar pão tem a sopa como objeto indireto. Conheço-a de um dos Contos tradicionais do povo português, de Téofilo Braga, um história que ele diz ter recolhido em Airão, no Minho:
Um rapaz foi offerecer-se para criado a casa de um lavrador; á noite, quando foram ceiar, deram-lhe uma tigella de caldo. Diz elle:
– Oh meu amo, o caldo está muito quente.
– Pois sópra-lhe.
No dia seguinte o rapaz despediu-se, entendendo lá para si que lhe não convinha servir n'aquella casa, onde nem tempo dariam para comer. Foi-se offerecer a casa de outro lavrador; aconteceu a mesma cousa; ao começar a comer o caldo, disse:
– Oh meu amo, o caldo está muito quente.
– Pois espera que arrefeça.
O moço tambem resolveu não ficar servindo n'aquella casa, cuidando que lhe dariam tempo sem mais nada. Foi-se embora ao outro dia, e chegou a casa de outro lavrador, que o tomou para o serviço. Á ceia disse o moço:
– Oh meu amo, o caldo está muito quente.
– Pois miga-lhe brôa.
O rapaz disse lá para si, que aquella era a casa que lhe convinha, e ali se deixou ficar.
Eu sei que não é grande novidade para ninguém o que fica para trás. Sabemos todos que, antigamente, a sopa de muitos era caldo que de entulho só tinha pão; e também sabemos quais eram as condições laborais dos trabalhadores rurais em tempos que felizmente já lá vão… Agora, talvez seja novidade para alguns o que se segue:

A palavra sopa, antes de significar o alimento (semi)líquido, significava o pão que nela se punha. A palavra é de origem germânica, mas parece ter chegado às línguas latinas (e ao inglês) pelo latim, que a tinha incorporado. É certo que sopas ainda hoje são «o pão que se miga na sopa» — ou no vinho açucarado, se forem de cavalo cansado —, mas o que eu quero dizer é que é foram os bocados de pão migados no líquido a dar nome à sopa e não a sopa a dar nome aos bocados de pão, se me faço entender.

Ilustração: Marcus Gheeraerts I, pormenor de «Fabel van de sater en de boer» («Fábula do sátiro e do camponês»), in Eduard de Dene: De warachtige fabulen der dieren, Bruges: 1567, p. 60

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* Noutra línguas latinas, há um nome apenas: em catalão, há mica, «bocadinho»; em francês há mie, «miolo (de pão)»; e em italiano, mica, que pode ser «bocado» ou «migalha de pão».

01/09/19

Cheira a elefante queimado [Crónicas de Svendborg #31]

Contava uma senhora na mercearia em Strynø:
Ontem à tarde, tinha de ir buscar uma coisa a casa de uma amiga, mas não me apetecia nada estar a trancar portas e janelas, de maneira que deixei tudo aberto. Também aqui ninguém rouba nada. Mas, enfim, pelo sim pelo não, escondi a carteira no forno, não queria ir com ela na mão.
Nunca mais me lembrei. Hoje de manhã fiz pão, pus o pão no forno e daí a bocado começo a sentir um cheiro esquisito. Bom, a carteira não sofreu muito, vá lá, é cabedal de qualidade, pele de elefante, mas os meus cartões já estavam a começar a encarquilhar.

Do tamanho das mãos e doutras partes do corpo



Em castelhano europeu, cojonudo é um termo de apreciação positivo: «baril!». Já em castelhano do Cone Sul, boludo, huevón e pelotudo, que em princípio significam exatamente o mesmo (com uns testículos muito grandes, pois então…), querem dizer «parvo, estúpido, idiota». Não deixa de ser curioso que o tamanho das gónadas masculinas tenha interpretações tão diferentes dos dois lados do Atlântico. Enfim… 

Agora, também se pode dizer depreciativamente de uma mulher que é una boluda, una huevona ou uma pelotuda — o que não deve espantar por aí além os falantes de português, já que nós também falamos de mulheres de tomates (claro, com um significado muito diferente dos termos castelhanos atrás referidos). 

Uma resposta comum a quem acusar um argentino de ser boludo, huevón ou pelotudo é algo como «¿Cómo que boludo? ¡Sós vos que tenés las manos chicas!». Uma defesa um bocado ordinária, não é verdade? Eu tinha uma amiga argentina que virava, porém, a coisa ao contrário (provavelmente, há muito quem o faça, mas só o ouvi a ela): para chamar estúpido a um tipo qualquer, dizia apenas: «No que yo tenga las manos chicas…» 





Ilustração: “Anatomia de uma hérnia inguinal do lado esquerdo”, autor não referido, in Marcy, Henry O., The anatomy and surgical treatment of hernia, New York: D. Appleton & Co., 1892

30/08/19

Vírgulas, mais uma vez

Isto de vírgulas é complicado. Quero aqui falar de um erro comum e pouco notado, que, ao contrário de muitos erros frequentemente criticados, tem implicações importantes em termos de sentido: pôr entre vírgulas sintagmas ou orações restritivas. Está mal. Só os sintagmas apositivos é que se põem entre vírgulas. Ena, tantos palavrões técnicos. Importa-se de trocar isso por miúdos?*

Um modificador restritivo de um nome especifica a que(m) é que o nome se refere. Se eu tiver duas irmãs, a expressão nominal «a minha irmã» pode referir qualquer das duas. Mas se, das duas, há uma «que mora na Suíça» e outra «que mora em Portugal», estes sintagmas podem servir para especificar de qual das duas estou a falar: «A minha irmã que mora na Suíça faz anos amanhã.» São estes modificadores restritivos os que não se escrevem entre vírgulas.

Já um modificador apositivo diz alguma coisa extra daquilo que é referido pelo nome, sem por isso o definir por oposição a outras coisas ou seres designados pelo mesmo nome. Se eu só tenho uma irmã e ela faz anos amanhã, direi «A minha irmã faz anos amanhã». E posso, claro está, acrescentar a esta afirmação alguma informação adicional sobre a minha irmã, por exemplo, que ela mora na Suíça: «A minha irmã, que mora na Suíça, faz anos amanhã.» Este tipo de frases é muito raro na comunicação oral, pelo que não há normalmente confusão entre os dois tipos de frase na oralidade (seria mais natural qualquer coisa como «A minha irmã faz anos amanhã. Mora na Suíça, essa minha irmã.»), mas ocorre na escrita, porque na escrita há tendência a condensar e concentrar a informação. E os apostos vêm sempre entre vírgulas, porque são sintagmas que se podem escusar ou mover para outro lugar.

Agora, nem todos os modificadores restritivos são orações relativas, como nos exemplos acima. Mas as regras de uso das vírgulas são as mesmas. Escrever, por exemplo, falando de Herman Melville que «Alguns veem no seu livro, The confidence man, uma sátira de Henry Ward Beecher» só faz sentido se Herman Melville não tivesse escrito mais nenhum livro, o que não é certo; e escrever que “O considerado entomologista de Harvard, E.O. Wilson, fez notar que, sem insetos, a vida desapareceria da terra», só estaria correto se o E.O. Wilson fosse o único etimologista considerado de Harvard, o que também não acontece.

Notem que nem sempre o problema deste erro é dar como único o que o não é. Pode também criar outro tipo de alterações do significado da frase onde ocorre. A frase «Alice é uma peça de teatro musicado sobre os conflitos internos do autor, Charles Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário, Lewis Carroll» dá Charles Dodgson como autor de uma peça de teatro cujos autores são de facto Kathleen Brennan e Tom Waits. O que queriam escrever era «Alice é uma peça de teatro musicado sobre os conflitos internos do autor Charles Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário, Lewis Carroll».

Lembro-me de que uma vez tive de pedir esclarecimentos à autora de um relatório que estava a traduzir e em que se afirmava que «os camponeses de Ribauè, que foram apoiados pelo projeto, aumentaram de facto a produção de milho». O projeto destinava-se de facto a apoiar todos os camponeses de Ribauè? Não, não, o projeto tinha como grupo-alvo um número restrito de camponeses do distrito – o que ela queria dizer era «os camponeses de Ribauè que foram apoiados pelo projeto aumentaram de facto a produção de milho», ou seja, restringir o número de camponeses que tinham aumentado a sua produção de milho aos que tinham sido apoiados pelo projeto.

Isto de vírgulas é um bocado complicado....


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* Podem ver, por exemplo –  e contrastar com a minha – a explicação que dá o Ciberdúvidas da diferença entre os dois tipos de modificadores. Mas encontram muitas outras na Internet.

28/08/19

Notas avulsas sobre uma morte concreta e a morte em geral


Escrevi aqui uma vez, num dos meus textos preferidos desta Travessa, que «pesa mais o mau que o bom». Ou que pesa mais o negativo que o positivo, se preferirem, mais a dor que o prazer. De todos os males, o pior é a morte. Se calhar, os outros males, mesmo a dor, física ou psíquica, que nos pode levar a preferir a morte à sorte que temos, só existem como prenúncios da morte, como pedaços de morte espalhados pela vida.

*** 

É importante enterrar os seus mortos. Os mortos não enterrados custam mais a morrer em nós, se se pode dizer assim. Para o dizer de uma forma mais prosaica, custa-nos mais aceitar que não voltaremos a vê-los, a falar com eles, a saber da sua vida.

Há muitas maneiras de enterrar os seus mortos e são todas válidas. Vejo muita gente insurgir-se contra quem ostenta (é assim que o veem os que se insurgem) os seus mortos nas redes sociais. Não me meto nisso. Como vou eu dizer a alguém como trabalhar o que lhe vai dentro? Não o faço eu, que sou uma pessoa reservada na expressão da dor e excluo quase todo o privado das redes sociais, mas não vejo mal nenhum em que se faça. E, embora sem nomear diretamente os mortos, faço-o aqui na Travessa, que é também sítio público, sempre que consigo dar forma aceitável ao que penso e sinto.

E depois, enterrar os seus mortos é, sempre foi, uma tarefa parcialmente social. Como tudo o que é humano, inclusive os sentimentos. Que seja o jornal local ou o Facebook, o anúncio público da morte e da dor parece ser sempre uma parte do esconjuro da morte ou da sua aceitação…

 Agora, as maneiras que fomos inventando de enterrar os mortos são todas tão sofisticadas como imperfeitas: velórios e funerais, e todo o tipo de cerimónias funerárias, religiosas ou laicas; as várias formas de obituários, e todos os tipos de elogios fúnebres, no jornal, no café ou em casa de amigos; os memoriais, as homenagens e a celebração de aniversários—tudo isso vale, e muito. Mas é às vezes muito pouco. É o que se pode, enfim.

*** 

O que digo no último parágrafo foi o que me interrompeu, no funeral de K, o desfilar de recordações. Pensei no último jantar com K, dois meses antes, em que ele me lembrou uma compilação de canções que eu lhe oferecera há quase vinte anos.
 – Quando ouvi a primeira vez, não me disse nada aquela música. E depois fui ouvir outra vez o ano passado, por curiosidade, e gostei muito daquilo tudo. Tenho ouvido muitas vezes, desde então. Acho que precisava de amadurecer para apreciar aquilo.
Amadurecer… Mostrei-lhe um vídeo em que mestre Jacques Pépin explica como desossar uma galinha.
– Não é tão fácil como ele o faz parecer, mas também não é muito difícil.
– Muito fixe! – disse ele. – Hei de experimentar.
Não sei se chegou a experimentar. K era um excelente cozinheiro e adorava comer e beber bem, e comia e bebia talvez demais. «Que mais se leva desta vida?», não é a pergunta retórica que se costuma fazer? Eu costumo dizer que conta mais o que cá se deixa. K deixou feito muito bem.

*** 

«E aquelles que por obras valerosas / Se vão da ley da Morte libertando»?

É justa a maiúscula na Morte, que merece a maior de todas as maiúsculas. Que persistimos na memória dos que cá ficam também é certo, mas não nos equivoquemos: quando desaparece a última pessoa que se lembra de nós, desaparecemos de vez da face da terra. Se nos definem como seres individuais a consciência e a memória que temos de nós — que mais temos que nos acompanhe toda a vida? —, admitamos que sobrevivemos na consciência e na memória de quem nos conheceu bem. Décadas no máximo. Mas mais que isso, nada. As obras que cá se deixam, valerosas ou não, não são os seus criadores. Os criadores de obras imortais, esses. morrem como toda a gente — ao fim de pouco tempo, ninguém se lembra de como falavam, riam, comiam ou se irritavam, já ninguém se lembra deles…





11/04/19

Sobre a idade de ouro da língua e um pouco mais

A minha amiga Catarina mostrou-me há pouco tempo um excerto de William Labov, um dos nomes maiores da sociolinguística (é uma passagem conhecida, que eu traduzo e cuja versão original pode encontrar-se, por exemplo, na Wikipédia):
Diferentes comunidades estigmatizam mais ou menos as novas formas da língua, mas nunca conheci ninguém que as recebesse com aplausos. Alguns cidadãos mais velhos recebem bem as novas músicas e danças, os novos dispositivos electrónicos e computadores. Mas se ouviu ninguém: «É maravilhoso como os jovens falam hoje em dia. É muito melhor que a maneira como falávamos quando eu era criança». (...) A crença mais geral e mais profundamente enraizada sobre a língua é o Princípio da Idade do Ouro: Houve um determinado momento do passado em que a língua estava num estado de perfeição. Parte-se do princípio que, nesse estado, todos os sons eram corretos e belos, e todas as palavras e expressões eram genuínas, precisas e apropriadas. Além disso, o declínio desse estado tem sido regular e persistente, de modo que cada mudança representa um afastamento da idade de ouro e nunca um retorno a ela. Todos os sons novos soarão feios e todas as novas expressões soarão impróprias, imprecisas e inapropriadas. Tendo em conta este princípio, é óbvio que a mudança linguística deve ser interpretada como inconformidade com as normas estabelecidas e que as pessoas rejeitarão mudanças na estrutura da língua quando delas se tornam conscientes. 
(in Principles of Linguistic Change, Vol. 2: Social Factors (2001), p. 51) 
Esta ideia da Idade de Ouro e da degenerescência forçosa das coisas humanas está longe de se aplicar apenas à língua—aplica-se a tudo o que é humano e foi já aqui referida no blogue algumas vezes a propósito de outras coisas (é até uma etiqueta do blogue). Muitos concordarão que Labov tem razão. E eu também, mas parece-me que há que dar conta de algumas exceções sistemáticas a esta regra geral.

A minha experiência é que, quando, numa determinada região, as novas gerações—normalmente através da escolarização—se aproximam de uma variante de maior prestígio, as reações à mudança podem não ser exatamente como Labov as descreve no excerto acima. Ouvi muitas vezes a pessoas sem educação formal de zonas rurais que não sabem mesmo falar o correto, que só falam assim à maneira delas, que é uma maneira de falar bruta ou errada… E ouvi dessas pessoas coisas como «Ah, ele (por exemplo, um filho educado de alguém da aldeia) já não fala como à gente, que ele tem estudos e aprendeu mesmo o português correto.» Em variantes de pouco prestígio, a ideia do falar perfeito ancestral esbate-se muito ou assume outros contornos. As pessoas podem achar que é pena já ninguém falar a variante à maneira antiga, que era tão expressiva ou tão engraçada, mas não pensam nela como mais próxima da perfeição, simplesmente porque desvalorizam o seu próprio falar.

E é curioso que a palavra dialeto, que significa, em princípio, «variante de uma língua falada numa determinada região», sem qualquer julgamento de valor implícito («os dialetos setentrionais», «o dialeto de Lisboa/ da zona da Lousã», etc.), é usado muitas vezes, mesmo para referir a sua própria variante ou até a sua própria língua, com o significado de «falar imperfeito, incorreto, de menos valor que a variante de prestígio ou a língua oficial».


06/04/19

Conversa de mãe e filha sobre transportes


– Mas vê lá se arranjas quem te dê boleia da festa para casa. Ou para aqui perto, pronto... Pede aos pais dos teus amigos que tenham lugar no carro... É muito longe, e àquela hora...
– Mas eu custa-me tanto, tenho tanta vergonha...
– Ok, tens vergonha, mas são duas horas de viagem, ao fim de um dia em que eu já fiz quase 500 quilómetros a guiar...
– Mas tenho vergonha... Não há assim ninguém que eu conheça tão bem que me sinta à vontade para lhe pedir...
– Além disso, lembra-te do aspeto ambiental, duas horas de carro só com duas pessoas.
–  Ah, ok, então vou tentar arranjar boleia.



03/04/19

Lapin à la moutarde e outras histórias de coelhos

Parece que a grande contribuição da Ibéria para a alimentação humana é aquele coelho «normal» que todos conhecemos. Bom, alimentação e não só, porque o coelho não é só comida…

Foto: Patrick Gaudin (2011) daquiAttribution 2.0 Generic (CC BY 2.0) 
Mas apreciais coelho? Vou dar-vos uma receita. Bom, toda a gente sabe fazer um coelhinho à caçadora e cada um(a) de vocês melhor que cada um(a) dos/as outros/as, de maneira que não vale a pena falar disso aqui. Proponho-vos antes outro clássico, mas com menos fortuna em Portugal – o coelho com mostarda. Como sempre, há milhentas maneiras de o preparar, que têm todas em comum, além do bicho propriamente dito, cebolas ou chalotas, caldo de carne (vaca, vitela, galinha…), vinho branco e mostarda – e natas, quase sempre, mas já vi receitas sem natas. Esta é a minha versão da coisa. Como de costume, não dou medidas nem quantidades exatas de coisa nenhuma, nem vos falo de sal e pimenta. Vocês sabem cozinhar e sabem bem calcular quanto hão de pôr de cada ingrediente. Se não ficar perfeito à primeira, à segunda já farão os ajustes necessários.

Há quem diga que o coelho se corta sempre em oito partes. Eu digo que o cortem em quantas partes quiserem, mas cortem-no, que não dá jeito nenhum fazer esta receita com um coelho inteiro.

Depois, envolvam os bocados do coelho em muita mostarda. Tem de ser mostarda a sério, escusado será dizer (por exemplo, esta ou esta), e não tenham medo de pôr mesmo muita. Não há problema, o sabor forte da mostarda desaparece com a cozedura. Em seguida, dourem os bocados de coelho em azeite bem quente. Parece que isso de selar a carne é um mito, como os há muitos em culinária, mas também agora não interessa.

Tirem o coelho do tacho e, na gordura que ficou, refoguem cebola, alho francês e cenoura – tudo picado, naturalmente, mas não tem de ser muito fininho. Quando estiver tudo bem douradinho, ponham lá outra vez o coelho, e reguem com vinho branco. Em desaparecendo o cheiro a vinho, juntem-lhe o caldo de carne – só o suficiente para cobrir o coelho.

Há coelhos que cozem mais depressa que outros e há quem goste do coelho mais ou menos cozido. Mas enfim, quando o coelho estiver como vocês o querem, deitem-lhe um bocadinho de nata, para suavizar o molho. E pronto. Também não vale a pena dizer que, conforme o molho esteja mais ou menos espesso e vocês o queiram mais ou menos espesso, podem ter de o ligar no fim – ou não.

O acompanhamento é à vossa vontade. Qualquer coisa que não tenha um sabor muito marcado (tagliatelle ou fettuccine, batata cozida, arroz branco, uma coisa assim), para não se perder o sabor do molhinho. Bom proveito!


Bunny!, foto de antiuser (2009) daqui.
Attribution-NonCommercial-ShareAlike 2.0 Generic (CC BY-NC-SA 2.0)
Aparte 1: Uma das teorias sobre a origem da palavra Hispania é que viria do fenício i-shapan, que significa «ilha de damões». O damão é um mamífero que se encontra em toda a África e no Médio Oriente, e a ideia é que os fenícios teriam designado com o nome de uma espécie sua conhecida os coelhos que encontraram na Península Ibérica. Acontece com frequência: quando se chega a um local com espécies novas, vegetais ou animais, muitas vezes dá-se-lhes o nome de planta ou bicho semelhante que se conhece. Mas esta hipótese etimológica, já antiga, é apenas uma entre várias.

Agora, se a espécie coelho é originária da Ibéria, de parte de França e da parte ocidental do Norte de África, há várias raças desenvolvidas noutros lados. Por exemplo, na Bélgica foi criado um coelho gigante (há outros) chamado gigante-da-flandres, que pode ultrapassar os dez quilos de peso. Criado originalmente para carne e pele, como os coelhos de outras raças, este coelho é hoje sobretudo animal de estimação.







Pormenor de O Jardim das delícias (entre 1480 e 1505) de Hieronymus Bosch, 
Museu do Prado, Madrid, daqui
Aparte 2: Tirando isso, não deixa de ser curioso que, apesar de o coelho ser, em princípio, símbolo de fragilidade e pureza, se encontrem na iconografia medieval tantas imagens de coelhos malvados e assassinos. Se calhar, pode substituir-se o «apesar da» da fase anterior por um «por» causal: como propõe Jon Kaneko-James, essas imagens são provavelmente a expressão do «mundo ao contrário» e o género específico da «vingança do coelho» servia muitas vezes «para mostrar a cobardia ou estupidez» das suas vítimas.

Seja como for, uma imagem menos inocente do coelho parece ter sobrevivido a essas drolleries medievais – se não como ser diabólico, pelo menos como ser endiabrado. O Coelho Branco do País das Maravilhas e Bugs “Pernalonga” Bunny, entre outros, são disso exemplos óbvios.

Desenho de Tofu Verdedaqui.
Attribution-NonCommercial-ShareAlike 2.0 Generic (CC BY-NC-SA 2.0)






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30/03/19

Expressão e comunicação

É uma discussão antiga: a linguagem serve mais fundamentalmente para exprimir ou para comunicar o que nos vai dentro?

É obviamente uma maneira muito simplificada de pôr a questão, mas não quero aprofundar o assunto neste texto. Chega-me agora constatar que, como todos sabemos, falamos às vezes sozinhos ou com os nossos animais de estimação e que dizemos coisas sem nos certificarmos de estarmos mesmo a ser compreendidos – nem nos importarmos muito com isso...; e que, mesmo quando temos muito cuidado para fazer chegar aos outros as nossas mensagens, nem sempre os outros compreendem essas mensagens como nós queremos que as compreendam. Parece fácil assentar em que há na linguagem uma tensão permanente entre expressão e comunicação.

Agora, muita gente afirma que é através da arte que melhor se exprimem emoções, sentimentos, impressões, estados de espírito. A interpretação da arte é, porém, subjetiva. Quando se comparam as várias interpretações de uma pintura, de uma obra literária ou de uma peça musical, têm às vezes pouco em comum. E claro, quanto mais abstrata for a expressão, maior desacordo há sobre o que quer dizer, ou seja, sobre as interpretações comuns — menos comunicação. Mas isso não significa que o seu valor expressivo seja menor, claro está.

Surgiu-me uma ideia que não consegui ainda escrutinar devidamente e que talvez me possam ajudar a avaliar: será que quanto mais se puser a tónica na expressão, menor é a comunicação? (Evidentemente, já não estamos aqui exclusivamente no domínio da linguagem, mas a questão de comunicação versus expressão extravasa com certeza do que se diz ou escreve.)

Uma questão que se põe de imediato quando se começa a refletir sobre o assunto é como interferem simultaneamente na comunicação e na expressão os modelos artísticos, as formas fixas e as temáticas canónicas das diversas formas de arte. Surgidas provavelmente para facilitar memorização e reconhecimento, e efeito natural da “profissionalização” da expressão artística, as formas fixas, se servem bem para instituir uma arte também no sentido de ofício e para criar gostos e, por conseguinte, beleza (gosta-se, antes de mais, do que se re/conhece), limitam obviamente tanto a comunicação como a expressão de sentimentos, sensações, experiências, ideias, etc. Não é de surpreender que quem, na arte, valoriza a pureza da expressão se revolte contra as formas ou os conteúdos canónicos. Diz, por exemplo, Alexandre O’Neill em “Bom e expressivo (Poemas com endereço, 1962):

Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.

Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

tal como o outro pedia
se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: - Não é poesia!,

diz-lhe que não, que não é,
que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-

dra que rola na pedra . . .
Mas também da rima “em cheio”
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,

a não ser a de cada um,
com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo . . .




21/02/19

Palavra puxa palavra: uma conversa numa rede social

Faz agora um ano, o meu amigo Stefaan Dondeyne e eu tivemos uma conversa curiosa no Facebook. Fui eu que comecei, com a seguinte publicação:
Em francês, distinguia-se – e há ainda com certeza quem distinga, apesar de a regra ter sido alterada em 1990 – entre cuissot, uma coxa de um animal de caça, e cuisseau, uma coxa de vitela, por muito que as duas palavras se pronunciem, claro, da mesma maneira e tenham, evidentemente, a mesma origem.
Agora, se isto vos aparece extravagante, vejam que o Porto Editora diz que uma escola islâmica se chama uma madraça, a não ser que seja na Guiné-Bissau ou em Moçambique, onde é uma madrassa
Era dar conta de uma curiosidade e não uma crítica. Provavelmente, até é certo que a grafia predominante na Guiné e em Moçambique é com ss e nas outras variantes com ç. (O que está com certeza mal é que a grafia moçambicana não tem origem no mandinga, mas isso é outra história…)
E respondeu-me Stefaan (traduzo eu de forma bastante livre, porque ele não me respondeu em português):
Em suaíli, darasa (no singular, madarasa no plural.) significa apenas aula ou sala de aulas. Ok, isto não está diretamente relacionado com a ideia central da tua publicação, mas fiquei a pensar em qual seria o significado de darasa em árabe. Parece-me provável que também signifique apenas «sala de aula».
Fui dar uma voltinha ao Google e respondi-lhe:
Stefaan, em árabe, a palavra tem o ma- no singular e no plural e significa apenas «escola», qualquer tipo de escola (مدرسة‎, madrasah, plural مدارس, madāris).
Na altura, pesquisei apenas madrasah em árabe, mas não pesquisei se darasa também significava alguma coisa nessa língua – que era a dúvida de Stefaan. E significa, de facto, pelo menos a fiarmo-nos no Wiktionary —não «sala de aula», como Stefaan previa, mas «aula», «lição» ou «estudo». Ou seja, tem afinal, um significado igual a um dos significados de darasa em suaíli. Além disso, como verbo, pode também significar «estudar» e «aprender». De facto, madrasah forma-se como nome de lugar do verbo: é um lugar de estudar ou de aprender. Mas isto só o soube ontem. Na altura, o que me veio à cabeça foi outra coisa diferente:
É de facto interessante, Stefaan, agora que penso nisso: como o ma- é marca de plural nas língua bantas, o suaíli cria uma forma de singular de uma palavra que não é originalmente plural, só porque começa com ma-. O mesmo acontece, por exemplo, em português quando algumas pessoas dizem «uma sande». Partem do princípio de que o s final de sandes é uma marca de plural e criam, por isso uma forma singular sem s [quando de facto o s final de sandes vem do ch final de sandwich, singular].
Muito provavelmente, e mesmo sem saber, na altura, da existência de darasa em árabe, tenho razão na minha análise da formação do singular darasa em suaíli, com o significado de «sala de aula» – mas talvez não, talvez esse significado tenha derivado diretamente do significado «aula»...

Stefaan, pegando na deixa da chamada etimologia popular (ou, mais concretamente, de ressegmentação, metanálise ou retroformação, não chego à conclusão de que termo é mais usado em português), tinha algo a acrescentar sobre este tema:
Vítor, não é regra geral, mas há com certeza outros exemplos. Um deles é kitabu, «livro», no singular, que dá vitabu, no plural. Kitabu vem do arábe kitab [ كِتَاب‎ — a primeira sílaba é pois interpretada com o prefixo suaíli ki- do singular de uma classe de nomes, pelo que passa a vitabu, que é o plural dessa classe]. Também na brincadeira (ou como calão), há quem faça o singular de video como kideo…. A classe ki-/vi- é uma classe de nomes para «coisas». [Ver aqui uma explicação do sistema das classes de nomes em suaíli.]
Já se sabe, as palavras são como as cerejas e, palavra puxa palavra, uma pessoa começa a falar de palavras com grafia dupla e, de repente, ena, onde a conversa já vai!

09/02/19

Uma sopa improvisada

Dizia-me uma vez um amigo que, em culinária, o mais importante é a imaginação. Mas imaginação só não chega. É certo que é muito importante atrever-se a experimentar, mas há que ter também uma boa noção de como se equilibram sabores e consistências, para que os produtos da imaginação não sejam tão inovadores como intragáveis.

Faço muitos pratos de muitos sítios diferentes, mas nem sempre os faço da uma maneira canónica. Creio que sou nisso igual à maior parte das pessoas que gostam de cozinhar – acaba-se sempre por se dar um toque pessoal… Também faço, porém, muitos pratos que não são de lado nenhum, que são invenções minhas. Ou apenas variações sobre pratos existentes, em que, de tão afastadas, já ninguém reconhece o original. Dos pratos que invento, há muitos que, por razões várias, não volto a fazer, mas também há alguns que repito e alguns que passo até a fazer com regularidade. A invenção de que vos falo hoje já foi repetida e há de sê-lo mais vezes, estou em crer – ficou uma coisa mesmo ao gosto da malta cá de casa.

Antes de passar à receita da sopa, deixem-me só explicar que, cá em casa, raramente se fazem compras para fazer especificamente este ou aquele prato. Quando vamos ao supermercado, compramos o que houver de bom e barato e depois vai-se diariamente decidindo o que se faz com os produtos que há na despensa, no frigorífico ou no congelador.

No outro dia, dei com um frigorífico, um frigorífico relativamente vazio. Havia talos de aipo, uns pimentos vermelhos, um resto de abóbora (por acaso, daquela a que se chama hoikkado ) e um resto de couve coração-de-boi. Havia cebolas na despensa e tomate em pacote já passado e havia no congelador uma mistura de mariscos congelada, que costumo usar para fazer arroz de marisco. E pronto, é esta a lista dos ingredientes sólidos da sopa. É claro que a fica ainda melhor se se usar marisco fresco e tomate fresco, passado no robô ou com a varinha.

Piquei muito grosseiramente a cebola, o talo de aipo e os pimentos e pus a refogar tudo em azeite, em lume muito brando. Entretanto, ralei a abóbora no robô, com a lâmina de ralar mais grossa, e juntei ao refogado. Deixei estar aquilo muito tempo, a apurar, a apurar, até começarem a aparecer sucos castanhos – é mesmo antes de começar a queimar, sabem?

Queria então molhar com um copinho de vinho branco, mas, que chatice!, tinha-se acabado. Um bocadinho de conhaque ou afim havia de ficar bem, pensei eu, mas também não havia. Espera! E um bocadinho de vinho do Porto? Um bocadinho só, para não adoçar a sopa, mas o suficiente para cortar o ácido ao tomate que vinha a seguir e, claro, para dar à sopa um travo especial.

Quando o cheiro a vinho deixou de sobressair, juntei o tomate. Continuou tudo a refogar muito devagarinho, até ficar o estufado a precisar de líquido. Juntei aí a couve cortada aos bocados e a mistura de mariscos, que sempre dão algum líquido, e continuou tudo a estufar mais um bocado.

Quando secou, deitei-lhe um bocado de água de cozer couve-flor e curgete do dia anterior. Eu guardo sempre os caldos de cozer coisas, porque me podem ser úteis em molhos ou sopas, como este foi neste caso. É claro, se tivesse sido água de cozer marisco, melhor seria…

Não deixei cozer muito mais, só uns dez minutos, uma coisa assim, porque não queria a couve a os mariscos muito cozidos. Uns minutos antes de apagar o lume, ajustei o sal e juntei à sopa meia grama de açafrão (açafrão mesmo, curcuma não!), para rematar o paladar e, de bónus, melhorar a cor.

Não foi preciso ligar a sopa com coisa nenhuma, porque a consistência estava como eu a queria. Ainda assim, como tinha no frigorífico um bocado de cevada cozidos (ou cevadinha francesa, como também se chama), deitei uns bagos no meu prato. Os outros comensais não quiseram, preferiram a sopa sem mais entulho.

Bom proveito!