No dia 4 de Fevereiro de 2014, morreu Hazel Sampson e, com ela, a língua klallam, que ela era a última pessoa a ter como língua materna. Embora haja ainda algumas (poucas) pessoas que o falem como segunda língua, o klallam pode considerar-se uma língua morta. Língua morta pode precisamente definir-se como uma língua que já não é língua materna de ninguém.
Ninguém sabe ao certo o que é uma língua. Há muitas definições bastante satisfatórias de língua, mas, por um lado, é impossível definir-se os seus limites, na sua variação no tempo e no espaço; e, por outro lado, não se sabe de que consta ao certo a língua enquanto programa mental. Trocando por miúdos, e insistindo no que interessa mais para a questão que aqui trato, quer isto dizer, por exemplo, que ninguém sabe em que momento é que o romance falado na parte ocidental da península ibérica se pode passar a designar como português; e quer dizer também que não se sabe onde estão armazenados, como estão estruturados e como funcionam ao certo a imensa base de dados e os inúmeros mecanismos que nos permitem falar e compreender uma língua.
Para compreender o que é a morte de uma língua, é útil ter presente esta conceção de que a língua é uma estrutura que, em abstrato, pertence à comunidade dos seus falantes e que nela evolui, mas que, em concreto, se encontra instalada, na sua forma integral, no cérebro de cada uma das pessoas que a têm como língua materna. A língua morre de facto quando morre o seu suporte físico – quando deixa de ter falantes. Por muito que haja uma descrição exaustiva do léxico e da gramática dessa língua, essa descrição fica sempre muito aquém da estrutura complexíssima que os falantes nativos têm na mente. A analogia com um programa de computador funciona aqui relativamente bem: imaginem um programa que, por uma razão qualquer, já só existe no disco rígido de um único computador e que esse disco rígido é destruído. O programa desaparece. Pode haver uma descrição detalhada do que ele produzia, mas isso não impede que já não haja aquele programa[1].
Há dois tipos de línguas mortas: as línguas com mortes datadas (seja ou não conhecida a data da morte) e as línguas de que é impossível determinar quando morreram[2]. No primeiro caso, está uma língua como o klallam; no segundo, uma língua como o latim. No primeiro caso, o que acontece normalmente é que, por terem pais falantes de duas línguas diferentes, os filhos não adquirem a língua de um dos pais. Ou adquirem-na em bebés, mas, por não a usarem, acabam por perdê-la. Quando uma língua é muito minoritária, vão ficando, por este processo, cada vez menos falantes da língua e, a certa altura, morre o último – e, com ele, a língua. No segundo caso, a língua vai-se modificando e, ao fim de muito tempo, já toda a gente fala uma versão tão diferente da língua que é considerada outra língua. Para usar o exemplo do latim, o latim falado em grandes zonas do império foi evoluindo lentamente e foi-se diferenciando de região para região, e a certa altura, deixou de ser referido e entendido como latim[3] – passou a ser chamado português, galego, castelhano, asturiano, aragonês, catalão, valenciano, etc., etc., etc. Mas é impossível determinar-se quando o latim deixou de ser falado, porque ele foi sempre sendo transmitido de pais para filhos, sem a interrupção que se verifica em casos como o do klallam.
Lembro-me de duas máximas muito úteis que aprendi quando comecei a estudar linguística: “em cada momento, uma língua é sempre o resultado da transformação de um seu estado anterior” e “uma língua é um dialeto com exército e marinha”. O que esta última máxima quer dizer é que a identificação de uma língua é mais frequentemente de caráter político que propriamente linguístico. O norueguês bokmål e o dinamarquês são sempre considerados línguas diferentes, mas, se a Noruega e a Dinamarca não fossem países distintos, haveria, muito provavelmente, quem os considerasse duas variantes dialetais da mesma língua. Se se pensar também em variantes temporais em vez de apenas variantes dialetais, temos que o latim deixa de ser considerado latim quando desaparece o império romano e se criam, no espaço que este ocupava, várias outras unidades políticas. Mas as pessoas não mudaram de língua no ano de 476 ou lá quando se queira considerar o fim da Roma imperial, nem em nenhum momento concreto: os filhos continuaram sempre a aprender a língua dos pais – que se foi sempre alterando um bocadinho, como as línguas sempre se alteram[4].
Parecerá agora claro (espero…) a toda a gente que destas constatações simples se pode derivar que são línguas mortas todos os estados anteriores, que já ninguém fala, de uma língua atual. Usando qualificações como arcaico, antigo, medieval, clássico, etc., para as línguas existentes, obtemos forçosamente línguas mortas. Agora, se a designação de língua morta é standard para, ponhamos, o grego antigo ou clássico, a que se opõe a língua viva grego moderno, é-o talvez menos para línguas mortas como o português, o espanhol ou o francês arcaicos[5]. É claro que a proximidade temporal e, por conseguinte, a proximidade linguística, do que se designa como português arcaico e do português atual é muito maior que a do grego do tempo de Sócrates e do grego atual (e provavelmente até que a do inglês do tempo de Chaucer e do inglês atual), mas duvido que um português atual entenda sem problemas o português dessa época e até que reconheça o português dessa época como sendo a sua língua – o português atual é provavelmente mais próximo do castelhano atual, por exemplo, que do português do tempo de Afonso Henriques...
Dito de uma maneira mais pomposa, que é como se costumam resumir as coisas em fim de texto, para a grande maioria das línguas atualmente existentes[6], há um continuum de língua(s) morta(s) que são as suas fases passadas – que já ninguém fala. No fundo, a língua é (como) um organismo vivo: também para a língua, a morte é o preço a pagar pela possibilidade de evoluir.
[Texto revisto a 24 de julho de 2023]
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[1] No caso de um programa de computador, é provavelmente mais fácil, a partir apenas da descrição das funções e resultados de um programa que não sabe qual é, criar outro programa que, embora diferente, tenha funções e produza resultados semelhantes. No caso da língua, as ciências linguísticas e as neurociências estão muito, muito longe de conseguir (por exemplo), a partir de uma descrição do klallam, pôr na cabeça de alguém alguma programação linguística que produza os mesmos resultados que produzia aquela que Hazel Sampson e os outros falantes da língua tinham no cérebro…
[2] Já encontrei quem distinga os dois tipos chamando línguas extintas e não línguas mortas às primeiras, mas não me parece que esta distinção seja muito comum.
[3] Na região do Trentino-Alto Adige e do Vêneto, em Itália, porém, continuou sempre a ser designado como ladin. Também a língua dos judeus sefarditas continuou sempre a chamar-se ladino.
[4] Isto não acontece sempre de forma contínua e progressiva. Pode haver momentos de ruptura em que há grandes transformações, devido a, por exemplo, imposição política de uma língua estrangeira, grandes migrações de populações, etc. Mesmo estas convulsões não produzem mudanças num momento determinado, mas sim num espaço de tempo mais alargado, de várias gerações.
[5] …e provavelmente menos ainda para coisas como ndebele arcaico…
[6] Os crioulos, línguas nascidas “de repente”, “sob pressão”, são exceção a esta regra geral.
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