27/11/24

Conceitos e obras de arte, ready-mades, apropriação e arte pop(ular) 3ª Parte


[Continuação daqui]


Álvaro Barrios e a arte pop a brincar com a arte

O ponto de partida deste longo devaneio foi o ready-made. E foi a obra de Álvaro Barrios, um artista colombiano, que me chamou a atenção para a relação entre o ready-made e a arte pop — que agora já vi referida, mas em que antes nunca tinha atentado.

Álvaro de Barrios pode ser visto como um discípulo de Lichtenstein, pelo menos nas obras em que se apropria de quadros de banda desenhada[4] é sobretudo disso que aqui se trata. Mas o uso que Barrios faz da BD é muito diferente daquele que Lichtenstein normalmente faz.

A primeira diferença entre as obras dos dois artistas é a escolha de referências. Se Lichtenstein prefere as séries de romance e de guerra dos anos 50 e 60 (ilustradas por desenhadores famosos como Joe Kubert e John Romita Sr., ou por outros menos conhecidos[5]), Barrios prefere os grandes heróis dos anos 30 e 40, como Dick Tracy, de Chester Gould, Fantasma e Mandrake, de Lee Falk, Red Ryder, de Fred Harman, Super-Homem, de Joe Shuster, Terry and the Pirates, de Milton Caniff, Tintin, de Hergé, etc. 

Barrios pode não ter a técnica de um grande desenhador ou pintor, mas consegue fazer funcionar as suas ideias — e aqui temos mais um caso em que a ideia é tão importante como a sua execução, se não mais. E, ao contrário de Lichtenstein que unifica com um traço incaracterístico os traços dos ilustradores que «cita» (não se pode ver num quadro de Lichtenstein se se baseia em Kubert ou Romita…), Barrios insiste, na maioria das suas obras em que há apropriação de outros artistas, em preservar o traço de cada um dos ilustradores apropriados e, nos seus quadros, vê-se bem que a imagem foi tirada de (ou se baseia em) Shuster, Falk, Harman ou Caniff, por exemplo.

Outra diferença é, precisamente, o uso do texto. Nas obras de Barrios, o texto é uma parte tão importante da obra como a imagem. Mas os textos das pinturas baseadas em BD não são textos de quadros de BD. E isto é diferente do que Lichtenstein fazia. Na grande maioria dos casos, Lichtenstein conserva exatamente o texto do quadro de BD «apropriado», ou introduz modificações mínimas, como, por exemplo, acrescentar apenas o nome Brad[6]. Essa «fidelidade» à obra «apropriada» pode ser entendido como um modo de criar ironia — uma crítica implícita ao universo do romance popular ou da aventura de massas... Mas revela também, como referi na primeira parte deste texto, um processo de criação muito próximo do ready-made de Duchamp: agarrar num objeto preexistente e elevá-lo a obra de arte (quase) só pela sua vontade — e por uma ampliação feita com uma técnica artística muito limitada.

Uma das raras exceções, na obra de Lichtenstein, à preservação do texto da BD original é uma pintura de 1964, Masterpiece, que aponta para o que Barrios viria a desenvolver de outra forma: a referência à pintura. A imagem é tirada de uma BD de Ted Galindo e um pouco mais modificada do que o habitual, também ao nível gráfico: a janela do automóvel é transformada numa tela de pintura vista de trás. É aliás, um dos quadros de Lichtenstein mais aceitáveis do ponto de vista gráfico, embora a omnipresente falta de dinamismo do traço ressalte em vários pormenores — especialmente quando comparado com o traço — banal, talvez, mas escorreito e profissional — de Ted Galindo. Quanto ao texto, é completamente modificado: no original, a rapariga diz: «But someday the bitterness will pass and maybe I'll be the girl to change your heart! But for now at least I can be near you!» («Mas algum dia a amargura há de passar e talvez eu venha a ser a rapariga que te faça sentir de outra maneira. Mas, por agora, pelo menos posso estar perto de ti»); no quadro de Lichtenstein, a rapariga diz antes «Why, Brad darling, this painting is a masterpiece! My, soon you’ll have all of New York clamoring for your work!» («Bem, querido Brad, esta pintura é uma obra-prima. Ena, em breve terás Nova Iorque inteira a aclamar o teu trabalho!»)  O demonstrativo this é ambíguo: refere a obra vista de costas no quadro ou o próprio quadro de Liechtenstein? Seja como for, haja ou não autorreferência da obra (um motivo tão em voga nas artes na segunda metade do séc. XX) é difícil não ver no quadro uma alusão (irónica?) à consagração que Lichtenstein começava a ter no mundo das artes plásticas. A haver alguma filiação em Lichtenstein (Barrios recusa-a), é no raro Lichtenstein do Masterpiece.

Barros cria sempre os textos das suas obras. E estes textos são uma componente tão essencial dessas obras que se pode dizer que, por muito que a sua estética seja inequivocamente pop, Barrios é, de facto, um artista conceptual mais que um artista pop. Mas é um conceptualismo desopilante, de paródia. Barrios brinca com tudo: com a sua relação com os seus mestres, com as teorias da arte, com a própria arte moderna. E faz muitas vezes alusões mordazes e divertidas ao mundo das artes. Como diz Elías Doria, «As vítimas da sua sofisticada ironia parecem ter sido trazidas de volta da década de 1940 numa implacável máquina do tempo, mas os problemas que aborda estão ancorados no decadente presente legitimado pelas bienais, pelas casas de leilões, pelas poderosas galerias internacionais, pelas socialites de todos os tempos e um interminável etecetera». 

Por fim, a diferença mais significativa entre Lichtenstein e Barrios é que este muitas vezes não se limita a recriar pedaços de BD, transformando-os noutro «tipo de arte»[7]. Introduz elementos de estranhamento — referências intelectuais, todos eles — que são outro aspeto fundamental da produção do efeito de pastiche humorístico que referi acima. 

É uma recriação-recreação, se se pode dizer assim, em que Duchamp e os seus ready-mades têm muitas vezes um papel de destaque. Não há dúvida de constituem fontes fundamentais da obra de Barrios. Sobretudo a sua «Fonte»: essa é mais importante das fontes…


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[4] Lichtenstein foi o pintor pop que mais se «apropriou» de bandas desenhadas, mas não foi o único.

Andy Wharol fez pelo menos dois quadros que são também apropriações de quadros de BD: Superman Puff, de 1961, e Dick Tracy, de 1963 — este último com alguma desconstrução da imagem original, que desconheço. Pode ver-se aqui a imagem original do Super-Homem de 1961, mas não há, infelizmente, referência ao artista (Curt Swan?). David Barsalou refere (ver link anterior) que este Super-Homem de Warhol é mais de seis meses anterior ao primeiro trabalho de Lichtenstein usando a mesma «técnica», se se pode dizer assim, pelo que «Andy Warhol sempre pensou que Roy Lichtenstein viu as suas pinturas no Bonwit Teller..., roubando as suas ideias e conceitos originais». Uma pessoa pode, pois, apropriar-se da ideia de apropriação… 

Outros artistas mais ou menos pop têm obras baseadas em BD. Sharon Moody é um bom exemplo, embora o trabalho dela se possa considerar talvez mais hiper-realismo neobarroco… 

[5] Como Tony AbruzzoRoss AndruHy EismanMyron FassTed GalindoJerry GrandenettiIrv NovickArthur PeddyJay Scott (Jim) Pike e Mike Sekowsky, entre outros.

[6] Curiosamente, o nome Brad parece também ser uma apropriação do nome de uma personagem de um dos autores de que Lichtenstein mais se apropria, Tony Galindo.  

[7] É agora fácil saber de que BDs específicas Lichtenstein se apropriou para os seus quadros, devido ao trabalho de pesquisa de David Barsalou, entre outros; mas não consigo saber de que histórias concretas é que Barrios tirou os desenhos em que as suas obras se baseiam, nem sequer se são tirados de histórias concretas ou são antes colagens de várias fontes. Parece-me improvável que sejam criações suas usando apenas personagens conhecidas, porque o traço dos autores de que se apropria está demasiado presente nas obras. Parece-me evidente,  por exemplo, que a série de quadros baseados em Terry e os Piratas, nos anos 2010, é construída com cópias exatas de quadros das BDs, apenas com uma cor de fundo e um texto diferentes (podem ver aqui alguns deles).



Conceitos e obras de arte, ready-mades, apropriação e arte pop(ular) 2ª Parte

[Continuação daqui]


Chamemos as vacas e os bois pelo nome. E que nome lhes vamos dar?

Roy Lichtenstein não glosou (um eufemismo?...) só imagens de bandas desenhadas. Um caso curioso é o da série Bull Head Series, de 1973, que remete, à primeira vista, para duas séries anteriores, as composições Vaca, de Theo van Doesburg (1917) e O Touro, de Picasso (1947). 

Quatro vacas da série de Theo van Doesburg. 

Para mim, é claro que a série de Lichtenstein tem uma relação mais direta com a de Van Doesburg que com a série de Picasso. E isto porque tudo leva a crer que tanto a série de Van Doesburg como a Lichtenstein se pretendem trabalhos de progressiva abstratização da imagem figurativa inicial. A sequência de Picasso, essa, tem um objetivo diferente: não abstrativização, mas antes simplificação[3]

É de notar, porém, que Lichtenstein nega o trabalho de progressiva abstrativização que me parece óbvio na sua série ao negar que haja figurativismo inicial. Diz ele:

«A série finge ser didática; estou a dar-vos lições de abstração. Mas, para mim, nenhum [boi] é mais abstrato que outro. O primeiro é abstrato; são todos abstratos».

Esta afirmação levanta-me imediatamente algumas questões:

A obra valeria sem a explicação ou é esta explicação que justifica a obra, que a cria? Se a afirmação de Lichtenstein fizesse parte da obra, se estivesse escrita na própria obra, poder-se-ia falar aqui de conceptualismo no sentido proposto por Sol LeWitt?

E que sentido tem uma afirmação destas? É algo que se diz apenas pela vontade de dizer algo bombástico? Uma pequena provocação? Na realidade, as primeiras imagens da série de Lichtenstein são figurativas e as outras abstratas — a não ser que se dê um significado novo, e por isso incompreensível, aos termos figurativo e abstrato... A experiência é fácil de fazer: pergunte-se a várias pessoas o que representam essas imagens e todos saberão responder, ao contrário do que acontece com as últimas figuras da série. 

Lichenstein1
As primeiras imagens da série são figurativas, mas não são figurativamente interessantes, se se pode dizer assem. A primeira ainda é aceitável, embora revele a tal falta de dinamismo e de domínio da linha e das sombras próprios dos bons artistas plásticos. A segunda, porém, é claramente um trabalho de um desenhador inexperiente. As primeiras imagens das séries de Doesburg e Picasso podem não ser grandes obras, mas valem por si, sem a necessidade de explicação do que se pretende com a série. As de Lichtenstein, bom, não me parece. Acho que estão mais do lado dos sonetos de Degas que das suas bailarinas

Mas não desgosto das duas últimas obras da série, as completamente abstratas. Do que vi de Lichtenstein, são de facto das obras de que mais gosto... (Também não desgosto do seu Tríptico das Vacas (ver aqui), cujo primeiro quadro, figurativo, um pouco com uma estética de anúncio de produtos lácteos, é muito melhor que as pinturas figurativas da Bull Head Series.)

Lichenstein5

[Continua aqui]

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[3] As imagens da série de Picasso nunca deixam de ser figurativas, são apenas cada vez mais simples. Como diz o litógrafo Fernand Mourlot, que foi assistente de Picasso neste projeto, «para chegar ao touro de um só traço, teve de passar por todos os touros precedente. E quando vemos o seu touro número 11, não conseguimos imaginar o trabalho que esse touro lhe exigiu».

Picasso%20Bulls
Gravuras nº 1, nº 6 e nº 11 (última) da série de Picasso. Podem apreciar aqui a série completa. 



Conceitos e obras de arte, ready-mades, apropriação e arte pop(ular) 1ª Parte

 

Qual é o material da arte?

Refere Paul Valéry nas suas Œuvres, um episódio que lhe tinha contado Edgar Degas (todas as traduções neste texto são minhas):

«Um dia […] em que estava a jantar em casa de Berthe Morisot com Mallarmé, [Degas] queixou-se das grandes dificuldades que tinha com a composição poética:
– Que trabalho este! – exclamou ele – passei o dia todo com um malvado dum soneto, sem conseguir fazer progresso nenhum... E, no entanto, não são as ideias que me faltam... Tenho muitas... Tenho demasiadas...
E Mallarmé respondeu, com a sua afável profundidade:
– Mas, Degas, não é com ideias que se fazem versos... É com palavras.»

Mallarmé tem bastante razão. E o que diz dos versos pode dizer-se de qualquer forma de expressão artística. Se Degas era melhor pintor do que poeta era porque dominava melhor as cores, as linhas, as formas do que os sons, acentuações e ritmos das palavras, etc. Não devemos ser demasiado radicais, porém, na recusa da importância das ideias nas artes. Depende muito de que arte falemos e, obviamente, do que queiramos dizer com «ideias», que é termo algo escorregadio. Uma sequência de sons, uma meia frase ainda sem significado nenhum é uma ideia? Ou uma combinação de cores, ou uma forma vaga? «Olha, isto é giro, o que se podia fazer daqui?» é uma ideia? 

As ideias também podem, nalguns casos, ter uma importância fundamental. Há formas de arte em que só a ideia existe, o objeto-obra-de-arte — o quadro, o poema, a escultura — são sem interesse nenhum. Dizia Sol LeWitt, um dos pioneiros do chamado conceptualismo:

«Na arte conceptual, a ideia ou conceito é o aspeto mais importante da obra. Quando um artista utiliza uma forma de arte conceptual, isso quer dizer que toda a planificação e todas as decisões são feitas de antemão, e a execução é uma mera formalidade. A ideia torna-se uma máquina que cria a arte.»

Os antípodas de Mallarmé.

Objetos artísticos pré-fabricados — ou quase

Não é bem de arte conceptual que vos quero falar, até porque é coisa que não conheço. Queria antes falar um pouco de arte pop, de alguma arte pop. Mas não é nenhum ensaio o que se segue, nada de seriamente ponderado, é mais deixar correr o teclado sem grande escrutínio nem organização e dar conta de afiliação, de preferências — um texto de blogue, é o que é. E parto, no meu devaneio, de um tipo de objetos artísticos que são considerados ao mesmo tempo precursores — senão mesmo fundadores — da arte conceptual e da arte pop: o ready-made.

Antes de mais, o que é um ready-made? Para alguns, ready-made não é nem um tipo de objeto artístico, nem um método de criação de artística em geral. Dizem que ready-mades só há os de Marcel Duchamp. Os outros serão «objetos encontrados» ou outra coisa qualquer, mas deve deixar-se a Duchamp o monopólio da coisa ready-made. E que coisa é essa? 

Quer se aceite que Duchamp tenha ou não o monopólio do conceito, é relativamente consensual ser ele o seu inventor. E ou inventou uma coisa que não sabe ao certo o que seja — ou então, inventou-a propositadamente como algo impossível de definir. Diz ele em 1963:

«Um ready-made é uma obra sem artista para a fazer». 

No fundo, a definição coincide com a que André Breton propusera e que era a única que eu conhecia antes de começar a escrever este texto:

«Objeto comum promovido à dignidade de objeto de arte pela simples escolha do artista».

Breton disse outra vez a mesma coisa de outra maneira, referindo aqui não o objeto em si, mas sim o processo da sua criação:

«Ação de desviar [o objeto] dos seus fins, dando-lhe um novo nome e assinando-o, o que implica a requalificação pela escolha».
Fountain%20Marcel%20Duchamp
Provavelmente, o mais famoso ready-made: Fonte, de Marcel Duchamp (1917)
Cópia do objeto original na Scottish National Gallery of Modern Art, Edimburgo.
Foto de Kim Traynor. Wikimedia Commons, d
aqui.
O princípio é, portanto, simples: agarro num urinol de loiça, chamo-lhe Fonte e assino-o com o meu nome ou um pseudónimo. Isto é uma obra de arte porque eu quero. Em vez de recusar imitar o mundo, criando pela arte um mundo até então inexistente, o artista recusa-se a imitar o mundo, transformando, pela sua vontade apenas, o mundo em arte. É assim a ideia que funda a arte, como LeWitt pretendia, sem a necessidade de produzir sequer uma obra, e temos já [uma forma radical de] arte conceptual avant la lettre. Mas temos também a ideia fundamental da arte pop, a de usar como objeto artístico «imagens da cultura popular — de fontes como a televisão, banda desenhada e publicidade impressa», usando, nos seus «materiais e métodos de produção» «estratégias muitas vezes subversivas e irreverentes de apropriação»«que iam buscar ao mundo do comércio».  O próprio termo ready-made, que se refere, antes de ser apropriado por Duchamps, a produtos fabricados — por oposição a handmade, «artesanal» — remete para a estética do consumo de massas que impregna a arte pop.

Não são ready-mades em sentido estrito, porém, que se encontram na arte pop, mas antes semi-ready-mades, se se pode dizer assim: em vez de ser apenas um objeto já existente requalificado como arte, a obra artística  é antes uma reprodução simples desse objeto. Para referir os casos mais icónicos, não uma lata, mas uma imagem de uma lata, não uma revista de banda desenhada, mas a apropriação de imagens de banda desenhada, etc.

Evidentemente, a apropriação de obras existentes (fotos, design, filmes, banda desenhada) levanta questões éticas[1] — e, em última análise, legais —, mas isso não parece importar muito os artistas pop. Para Roy Lichenstein, a questão ética da apropriação não se põe. O seu trabalho é, segundo ele, outra obra, não uma apropriação. Além disso, as bandas desenhadas que usou como base para as suas pinturas eram, para ele, trabalhos de segunda categoria: «A banda desenhada não tem nenhuma relação com nada a que eu chame arte», afirmou ele

Artes maiores e menores: o lugar do desenho

Grandenetti
Em cima: As I Opened Fire, de Roy Lichtenstein, 1963;
em baixo, tira do nº 90 de American Men of War, de Jerry Grandenetti, 1962.
 Podem ver
aqui a rotação das imagens descrita por R.C. Baker
na sua crítica à apropriação de Lichtenstein (trabalho de Roger Schaeder
 no seu site Rogers Seriemagasin).   
Podemos adivinhar que, para Lichtenstein, as suas apropriações eram transformar em arte o que o não era. É essa a perspetiva defendida pelo crítico de arte Alastair Sooke numa conversa com o artista de banda desenhada Dave Gibbons, que é extremamente crítico da apropriação de obras alheias feita por Lichtenstein[2]. Ao discutirem a obra WHAAM (ver aqui o texto completo), Sooke acha que Lichtenstein melhorou muito o original de Irv Novick, que, segundo ele, era um pouco «fraco e limitado», ao passo que a obra de Lichtenstein «considerada como pintura e não como um fragmento de banda desenhada, mas como um objeto artístico, é muito mais bem conseguida do que se [o quadro de BD de Novick] tivesse sido reproduzido e posto numa parede. Por uma série de razões: [Lichtenstein] descartou pormenores estranhos, como os aviões de ambos os lados; retirou a montanha, que me parece ser um recurso de composição pouco feliz; e tornou muito mais claro o equilíbrio entre a explosão à direita e o avião. É muito mais equilibrado, são mais iguais. Penso que temos aqui várias razões concludentes pelas quais, formalmente, esta é uma imagem muito mais bem conseguida do que a sua fonte».

Gibbons discorda:

«Isto, a mim, parece-me plano e abstrato, a tal ponto que se torna confuso para a vista, ao passo que o original tem uma qualidade tridimensional, tem uma espontaneidade, uma vivacidade e uma maneira de captar o olhar de quem o vê que falta neste quadro. Por exemplo, a explosão aqui parece-me apenas um conjunto de formas planas, enquanto que, no original, porque não há traços e tudo depende da cor, a explosão me parece ter muito mais as características de uma explosão.» 

R.C. Baker, do Village Voice, tem uma opinião semelhante sobre como as apropriações de Lichtenstein perdem em qualidade relativamente às suas «fontes»:

«As linhas flácidas, as cores baças e os designs deselegantes do artista são invariavelmente menos dinâmicos do que o realismo quotidiano dos profissionais da banda desenhada. Enquanto um expressionista da BD como Jerry Grandenetti habilidosamente inclina os canos das armas para apanhar só o canto de um painel, Lichtenstein eleva-os a uma diagonal mecânica na sua apropriação de 1963, As I Opened Fire, um erro de layout que reduz pintura a cartaz.»

Concordo com Gibbons e Parker. Também acho que as apropriações de Lichtenstein ficam sempre a perder em relação ao original em termos de equilíbrio das formas e mesmo de cor, mas, para mim, isso é o menos: a qualidade do traço é o maior problema. Deselegância e amadorismo podem ser aqui palavras-chave. Lichtenstein é um desenhador muito fraco. Podem ver lado a lado os quadros originais das bandas desenhadas e as apropriações de Lichtenstein aqui ou aqui e julgar por vocês mesmas/os. Algumas obras — tanto esboços como produtos finais — revelam um traço tão amador que parecem decalques feitos com papel vegetal por alguém sem experiência de artes plásticas. É difícil compreender como podem ser de um pintor famoso. 

Lichtenstein%20Maus%20Blogue
Cinco exemplos do amadorismo do desenho de Lichtenstein. Da esquerda para a direita: Conversation, 1962; Girl, 1964; Tension, 1964; Reckon not, Sir!, 1964; e We rose up slowly, 1964.
Os quadros de BD originais de onde foram tiradas estas obras são de desenhadores competentes: por ordem, Ted Galindo, Joe Simon, Tony Abruzzo, Joe Kubert (um mestre!) e John Romita.
Podem ver os originais clicando no título de cada obra. Não são propriamente obras-primas, mas são, pelo menos, profissionais — mais do que se pode dizer das linhas e dos sombreados de Lichtenstein... 



Lichtenstein%20Brushtroke%201965
Roy Lichtenstein, Brushstroke, 1965.
Nada como a representação estilizada de uma pincelada
para se ver a qualidade — ou a falta de qualidade
 — do traço de um artista.
Mas não parece que algo tão básico em desenho como o domínio e a maturidade do traço conta muito para certos artistas — nomeadamente  certos artistas pop. Lichtenstein dizia que «um desenho não tem  de ser feito com um traço sensível» (ver aqui, pág. XV). E Andy Warhol (que também não era grande desenhador...) disse uma vez a Albert Dorne que «a arte deve transcender o mero desenhar».

Albert Dorne, que era um verdadeiro artista e não um «mero» desenhador, respondeu muito a bem a Warhol: 

«Desculpe lá, Andy, mas, porra, desenhar não tem nada de mero».
Degas_-_Two_Ballet_Dancers_at_the_Barre,_circa_1872
Edgar Degas: Duas bailarinas na barra, cerca de 1872
Museu Boijmans Van Beuningena, Roterdão


É claro que não se pode considerar «grande arte» qualquer desenho, mas, quando é de desenho artístico que se trata, a arte é imanente ao desenho, evidentemente. Ou onde está então? Na ideia? 

Provavelmente, o que nos faz tomar partido por Irv Novick ou por Roy Lichenstein, por Dave Gibbons ou por Alastair Sooke, por Andy Wharol ou por Albert Dorne é apenas gostar ou não de desenho, estar ou não interessado em desenho, valorizar ou não o desenho, e, em última análise, (re)conhecer o desenho como forma de expressão artística ou não. E desenho e ilustração são paixões minhas. 

Roy Lichtenstein era formado em arte e professor de arte, mas não sei se podia ter ganhado a vida como ilustrador. Se chegou a ser um dos pintores mais célebres do séc. XX deve-o sem dúvida às pelas suas ideias. Que pensaria Mallarmé da sua arte?


[Continua aqui]



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[1] David Apatoff trata a questão da dupla moral da apropriação num texto do seu blogue Illustration Art (em inglês). Diz ele que artistas que se apropriam das obras alheias não deixam que ninguém se aproprie das suas obras apropriadas e que a apropriação «será sempre menos crime se forem artistas plásticos de renome a roubar a artista "comerciais" ou de formas de arte menos consagradas  (como sejam ilustradores, designers industriais e artistas de banda desenhada)»

[2] Dave Gibbons é autor de uma obra em que satiriza violentamente a apropriação de Lichtenstein do trabalho de Irv Novick em WHAAM! Ver este texto deste blogue. 


15/11/24

A idade, boutadezinha um bocado pateta em redondilha maior

                 

 

                 ✵

A nossa idade é sem fim 
– deixa só de ser, um dia,
a idade que se tem, 
p’ra ser a que se teria…

                 ✵

Canções que referem outras canções #8: “Here Stands A Woman”, de Gillian Welch, e “Danville Girl”, de Dock Boggs

 

Na sua canção “Here Stands A Woman”, de 2024, Gillian Welch refere um motivo recorrente da canção popular americana, a ”Danville girl”. Não se pode dizer exatamente que seja uma canção específica que ela refere, já que o motivo da ”Danville girl” aparece numa série de canções ditas tradicionais, com diferentes títulos, como ”Ramblin' Reckless Hobo”, “Wild and Reckless Hobo”, “Around a Western Water Tank” e outras (ver aqui ou aqui listas dessa linhagem de canções).

A personagem da canção de Gillian Welch não é a mesma que a da canção tradicional. Tem em comum com ela vir de famílias abastadas e ter sido uma rapariga elegante, mas não tem, como na outra canção, uma relação breve com um vagabundo, que a deixa para continuar a sua vida errante. Na canção de Welch é a rapariga de Danville que deixa Danville, deixa de usar os lacinhos e os caracóis das raparigas de Danville e empenha até, num momento de necessidade, as joias que a família lhe tinha dado. A canção descreve o fim de uma relação amorosa, mas a voz feminina da canção, a rapariga de Danville, está convencida de que o amor acabou porque já não existe a rapariga por quem o seu homem se tinha apaixonado – ela mudou...

You told me that you loved me
And that would never change
Now I'm looking in the mirror 
And I know that I'm to blame 
'Cause it's all gone, babe, like the song says 
Fallen from her curls 
Here stands a woman 
Where there once was a girl 
Come a long way from Danville 
Where they wear that Danville curl 
The mother and the father 
Who kept me in their care 
They're both gone like the ribbons 
That I used to wear 
But it's alright, Ma, things got tight, Pa 
So I went and pawned the pearls (…) 
You told me that you loved me 
And that would never change 
But I'm looking in the mirror I know I'm not the same

 

Escolho a versão de Dock Boggs (1927) da canção referida por Gillian Welch, porque é a primeira gravação de uma variante deste grupo de canções em que o motivo da Danville Girl é central; e também a primeira que, por isso, se chama mesmo “Danville Girl”. Tem também os elementos de vagabundagem e da interminável viagem de comboio que são comuns a todas as variantes, mas a história amorosa é mais do que um elemento entre vários, como noutras versões.

I went down to Danville
Got struck on a Danville girl
You bet your life she's out of sight
She wears those Danville curls
She wears her hair on the back of her head
Like all high-toned people do
The very first train that leaves this town
Gonna bid that girl adieu
I don't see why I love that girl
For she never cared for me
But still my mind is on that girl
Wherever she may be
 

A sedução da etimologia e alguns exageros etimológicos

 

A ideia de que o «verdadeiro» significado de uma palavra está diretamente relacionado com o seu significado «primeiro» e, por isso mesmo, «primordial» — ou, dito de outra maneira, que se pode usar o significado «etimológico» de uma palavra para escrutinar melhor a noção que ela exprime — é uma ideia com bastante fortuna, mas é uma ideia muito duvidosa... Dos vários significados por que passa a história de uma forma linguística, não há nenhuma que seja mais essencial que outro. E depois, com rigor, o significado «etimológico» de uma palavra de uma língua atual não existe, só existe o significado que teve — noutra língua! — outra palavra que está na origem da palavra atual. Mas a conversa é capaz de estar vaga demais. Vejamos casos concretos.

Uma amiga insistia, há uns meses, na necessidade de referir a noção de ideologia ao significado etimológico de ideia, que ela ligava a Platão. Ora a palavra ideologia é uma palavra relativamente recente, que não foi formada a partir da ἰδέα (idea) grega, mas do significado que a descendente francesa dessa palavra, o termo idée, tinha no séc. XVIII, que era já muito semelhante, se não igual, o que tem hoje. Muito diferente desse significado atual de idée (ou de ideia, em português, que lhe corresponde diretamente) é, porém, o significado das formas anteriores da palavra em grego, em latim e em francês antigo (até ao séc. XVI): a ideia platónica de «arquétipo» decorre naturalmente do significado de «forma, padrão, aspeto exterior», que essas formas tinham — o que aliás não surpreende, se pensarmos que a palavra deriva de εἴδω (eídō, “vejo”), que, por sua vez, deriva do protoindo-europeu *weyd-, «ver ou saber» (pelo vistos a relação entre cognição e visão é antiga, estão a ver?). De facto, a palavra ideia está etimologicamente relacionada com o nosso verbo ver, com ídolo e com o raro termo viso, que mantém o significado do seu étimo latino visum: «o ato de olhar; visão; aparição; aspeto; prenúncio». Visum está também na origem do italiano viso e do francês visage, que significam «rosto» e do inglês wise, «sábio» e formas semelhantes em várias outras línguas germânicas, e também do inglês wizard «feiticeiro». Em querendo, há muita coisa que se pode relacionar etimologicamente, não é verdade? Agora, se o significado de idée no francês do séc. XVIII não era diferente do que tem em francês atual, já o mesmo não se pode dizer de idéologie, que foi uma palavra cunhada em 1796 por Destutt de Tracy para designar uma ciência que teria por objeto o estudo das ideias, «a análise do pensamento, simplesmente», e que ele propõe que venha substituir a metafísica. Não só a idea grega original não é tido em conta na cunhagem do termo idéologie, como este termo não tem, na origem, relação direta com o seu significado atual. A noção moderna de ideologia (ou as noções modernas de ideologia, porque há algumas nuances no uso do termo em diferentes contextos*) só aparece no século XIX e é só no séc. XX que ganha ampla difusão.

Dou-vos só mais uns exemplos, que encontrei por acaso nos últimos tempos, do que muitas vezes se faz. Neste vídeo, por exemplo, põe-se a etimologia a corroborar uma certa perspetiva da didática: Afirma-se que «a etimologia[…] sempre nos ajuda a descobrir nas palavras sentidos mais ou menos ocultos que nos possibilitam entender melhor a própria realidade», mas há algum viés na descrição etimológica. Dos cinco termos referidos no vídeo, comento três, para não tornar o texto demasiado longo.

Dizer que laboratório vem de labor, «que é trabalho, tarefa» e «mais especificamente um trabalho ligado à tarefas agrícolas» e que «o laboratório tem muito a ver (…) com o esforço dos alunos em fazerem descobertas como se estivessem cultivando a terra do conhecimento» é uma forma mais poética que rigorosa de dizer as coisas. É certo que a palavra laboratório está relacionada com labor, já que foi criada a partir de uma forma do verbo laborare. Mas laborare é bem mais em latim, que trabalhar a terra: é trabalhar, esforçar-se, labutar; sofrer, ser oprimido, ser afligido por, estar perturbado com; elaborar, desenvolver, formar, fazer, preparar. A palavra francesa laboratoire, porém, de que deriva a nossa, surge no séc. XVII e alguns dos seus significados registados nesse século e no século seguinte são o de «parte da farmácia onde se preparam os remédios», «oficina de trabalhos manuais (de um pintor de esmalte)», « parte de um forno de revérbero onde se põe a matéria sobre a qual age o combustível» e «gabinete de um homem de letras».

Dizer que estagiário vem de stagium, que «significa o lugar onde a pessoa está, mas é um lugar de passagem» e que, portanto, «o estagiário (…) está num lugar que é apenas (…) provisório para algo», que ele «está ali aprendendo, vendo, observando, mas em vista de um progresso», além de não acrescentar muito à ideia que todos têm do termo estágio, também foge um pouco ao rigor etimológico. De facto, a palavra latina stagium, que significava «moradia» (normalmente, uma moradia associada a uma função laboral/social) vem do francês, ao contrário do que costume: é uma latinização medieval (!) do francês antigo estage (deverbal do francês antigo ester, «estar de pé, encontrar-se», que mais tarde também veio a significar «estado, posição, situação» e deu o atual étage). Os primeiros significados de stage em francês são já muito próximos do seu significado atual em português.

E dizer que «a palavra professor, professora vem de profiter, que tem a ver com a apresentação de uma pessoa estar diante de alguém», já que «pro- é estar à frente de alguém» e que, -fiter, por seu turno «vem de fateri, um outro verbo latino que significa "apresentar, falar, expor"», pelo que «o professor então é aquele que se expõe diante dos alunos», é também torcer a etimologia para a obrigar a dizer algo. Na realidade, professor/a vem do latim professōr, que é «aquele/a que se declara perito numa arte ou ciência». O nome deriva do verbo profiteri, que significa «defender, declarar publicamente, reconhcer(-se); professar; declarar-se, confessar». É certo que a origem última é per- «para a frente», e fateri, «reconhecer, confessar» (da família de fari, «falar», da raiz preindo-europeia*bha- «falar, dizer»); mas isto mostra que, conforme dá jeito a quem usa desta forma a etimologia, se pode ir mais ou menos longe na história das formas — com diferenças de muitos milhares de anos — para as pôr a dizer o que se quer. De facto, quando se dá uma palavra grega ou latina como étimo da palavra atual, há também que pensar que estas palavras também tinham étimos em línguas anteriores e que, se «primeiro é mais verdadeiro», porque não se vai antes ao protoindo-europeu? 

Adam
Adão cavando a terra, vitral da Catedral de Cantuária.
(Da página oficial da Catedral no Facebook)
Também há casos em que a referência etimológica é quase correta e poderia de facto servir o propósito que com ela se visa, não fora faltar o tal quase. A questão da diferença entre faute («culpa; erro») e erreur («erro») em francês é tratada em dezenas de vídeos na Internet e a proposta de distinção varia, como se pode esperar, consoante se esteja a falar de, por exemplo, didática das línguas ou gestão de empresas, ou simplesmente a dar conselhos sobre como gerir melhor a sua vida. Normalmente, a etimologia dos termos é deixada de lado, mas surgiu-me noutro dia um vídeo em que se afirma que a distinção proposta entre faute como intencional e erreur como não intencional se pode ver na etimologia, já que faute vem, em última análise de fallere, que é «enganar [trapacear, ludibriar; esconder, sonegar; aligeirar, aliviar]» ao passo que erreur vem de errare, que tem inicialmente o sentido de «deambular» e que ganha depois, ainda em latim, o comum significado de «afastar-se do caminho certo, perder-se», donde o sentido de errare como fazer algo mal feito, que se conhece ainda em latim clássico: cuiusvis hominis est errare, nullius nisi insipientis in errore perseverare («Errar é próprio do homem, mas só os tolos persistem no erro», diz Cicero, na 12ª Filípica). Agora, a história de fallita e faute é mais complicada que uma evolução direta e o uso consagra atualmente expressões como faute d’ortographe que os dicionários acolhem e que designam ações involuntárias; e fallere não tem sempre um uso transitivo e agentivo em latim: também significa «decepcionar; frustar» e «não ser visto, estar por descobrir, ser ainda ignorado». Mais uma vez, escolhe-se o significado etimológico que serve o que se quer defender. 

É certo que às vezes o desenrolar das relações etimológicas resulta num discurso engraçado e sedutor, como neste caso, em que se relaciona corretamente humano, humanidade e homem — e Adão — com húmus, humildade e humilhar — mas as conclusões morais retiradas dessas relações (que a etimologia convida o humano à humildade, a encontrar o seu lugar na terra sem a humilhar, com respeito e humildade) não derivam, obviamente, da etimologia em sentido estrito. 

A conclusão de tudo isto são que, quando se insiste na maior pureza de um determinado significado etimológico de uma palavra ou na descoberta de sentidos escondidos na etimologia que definem melhor o que uma palavra quer dizer, o que se faz de facto é puxar a brasa à sua sardinha, quer dizer, pôr a etimologia a corroborar uma aceção de uma palavra para dar força a um argumento  — para se chegar, enfim, onde se quer chegar. É possível, sem grande esforço, aliás, estabelecer relações entre palavras que, atualmente, não têm relação semântica entre si a partir uma manipuladora referência à sua etimologia. Para voltar a um exemplo dado atrás, se alguém quiser que há atualmente uma idolatria do vídeo, acho que deve apresente argumentos mais sólidos do que referir a sua relação etimológica… Aqui estou a brincar, é óbvio, mas há quem se entretenha a fazer relações deste tipo...

Quando se quer discutir um conceito, é melhor ver o que significa de facto a palavra que o exprime na língua atual — isto é, na cabeça de quem fala essa língua — do que remeter para o que significava um antepassado dessa palavra. E o significado real de uma palavra é o significado dessa palavra em todas as situações em que ele é de facto usada pelos falantes da língua. 

 _______________________________________________ 

* Ver esta página do dicionário do CNRTL para uma descrição abrangente do termo idéologie, com exemplos, e esta página para a história da palavra. O dicionário do CNRTL é uma excelente ferramenta gratuita online para a língua francesa — e não só, se se souber utilizar. Infelizmente, tem estado inacessível muitas vezes. Está, aliás, inacessível na altura em que estou a postar este texto. Talvez para trabalho de manutenção ou atualização, não sei. Para um artigo mais detalhado sobre a cunhagem do termo, incluindo passagens da obra de Destutt de Tracy, e a sua evolução, ver "Le non-dit de l'idéologie : l'invention de la chose et du mot", por Jacques Guilhaumou em Actuel Marx, nº 1/2008.

02/11/24

A humana condição (minipoema de Inverno)


A humana condição, 
sejamos claros, 
é um se, um caso, um contanto que

Ou melhor: é o contrário disso tudo, 
uma condição ao revés, um a menos que
vamos sendo, a não ser que, de repente, 
se interrompa ou se nos altere a condição 
– um morto continua a ser humano?

No comboio para Aalborg, 2/4/2002

01/11/24

Chega uma vez

 

Para mim, é claro que, em caso de paragem cardíaca, não quero ser reanimado. É que estou convencido de que a morte é mesmo o pior que me pode acontecer na vida e não estou para passar duas vezes por tão desagradável experiência.

03/09/24

De frutos e parasitas

 

Dizia aqui no outro dia que «muitos conceitos abstratos são referidos com metáforas de coisas materiais». De facto, quando uma palavra é usada em várias aceções, umas mais abstratas que outras, a aceção mais concreta costuma ser a primeira: estrela usava-se para referir um corpo celeste antes de se usar para referir uma celebridade e a palavra foco usava-se para designar um ponto de luz (é uma forma divergente de fogo) antes de referir, entre outras coisas, «questão, assunto ou ponto para onde converge a atenção de alguém». 

Parece fazer todo o sentido, não é verdade?, esta deslocação metafórica das coisas mais concretas para as menos concretas e é de facto assim que o significado evolui muitas vezes. Mas nem sempre. O contrário pode também acontecer e às vezes surpreende-nos. 

Por exemplo, quando se diz «o fruto do meu trabalho», podemos pensar que é mais um caso do tipo de evolução semântica do concreto para o abstrato. Na realidade, porém, não se trata de uma metáfora do fruto da planta, mas antes ao contrário: o sentido mais antigo de fructus em latim é o de «utilização, disfrute» — «fruição», enfim, ou «usufruto»! A palavra é de facto um particípio do verbo que deu o nosso fruir e que tinha o mesmo significado. E é deste sentido mais abstrato de «fruição» que deriva a aceção mais concreta de «produto» (não forçosamente agrícola, mas também agrícola, e não limitado a fruta) ou de «rendimento proveniente do que se produz» e, enfim, o da componente ou órgão de uma planta. 

Parasita é outra palavra em que a evolução do significado se faz ao contrário do que muitos esperariam: poderia pensar-se que o significado primeiro é o de «animal ou planta que se alimenta de um hóspede», mas este significado surgiu há pouco tempo e deriva diretamente do significado original: a palavra grega parasitos significava «alguém que come em casa de outrem», sobretudo «quem frequenta as casas dos ricos e obtém as suas graças através de bajulação». 

Já agora, uma curiosidade que não tem nada a ver com o tema aqui tratado: o latim fructus teve uma fortuna tal que se usam os seus descendentes em praticamente todas as línguas europeias, sejam elas românicas, germânicas, célticas ou eslavas (podem ver aqui exemplos em mais de 50 línguas.] 

Outra curiosidade é a distinção que se faz em português e noutras línguas ibéricas entre o masculino fruto e o feminino fruta. Fruta é um nome não contável*, ao contrário de fruto, e, embora os dicionários de português e castelhano digam que designa «os frutos comestíveis», a verdade é designa apenas frutos comestíveis sem casca rija e de sabor tendencialmente doce — nunca se chama fruta a nozes e avelãs, nem a tomates, pepinos, pimentos, azeitonas e muitos outros frutos não doces. 

* Ao que vi, fructa, plural neutro de fructus, já existia em latim com esta aceção dita «coletiva».


O inferno [Crónicas de Svendborg #49]


 Hoje vi uma casa arder com uma pessoa lá dentro.

E éramos várias pessoas cá fora, a não poder fazer nada — que podem uns baldes de água quando uma casa está toda em chamas? — e todos nós conhecíamos o homem que já estava morto lá dentro e todos tínhamos por ele simpatia, alguns até amizade.

Uma casa a arder com uma pessoa lá dentro. O inferno.  


A antiguidade não é posto nenhum

Ouvi algumas vezes defender doutrinas ou formas de conhecimento ou de medicina com base na sua antiguidade.  Dever-se-ia, segundo alguns, aceitar a validade de coisas como a «medicina» aiurvédica ou a acupunctura e outras formas de «medicina tradicional» por serem «conhecimentos já muito antigos». 

Agora digam-me: como pode avalizar essas práticas o facto de terem sido criadas numa altura em que se desconheciam os mais básicos fundamentos de química, em que ninguém fazia ideia nenhuma de como funcionava o corpo humano – nem a natureza em geral? 

É antes ao contrário, não é? De qualquer informação sobre doenças, tratamentos e efeitos de quaisquer substâncias ou práticas sobre o ser humano ou outros animais (mas também sobre a descrição da realidade em geral), o melhor é certificar-se sempre de que ela não está desatualizada. 

Imagem: Sushruta a atender doentes, autor anónimo sec. XVII. Wikimedia Commons, daqui.



04/08/24

Soupe au pistou à minha moda

 

A minha soupe au pistou é sempre um grande êxito e, da última vez que a fiz para um grupo grande, muita gente me pediu a receita. Como não a tinha escrita em lado nenhum, tive de a escrever agora. E já que a escrevi, ponho-a aqui. Experimentem, que hão de gostar – talvez... E bom proveito!

Bom, antes de começar a receita propriamente dita, deixem-me só fazer uma pequena introdução: a soupe au pistou é, como já adivinharam pelo nome, um prato francês. Mais concretamente, é um prato provençal — um prato mediterrânico, como verão pelos ingredientes. Pistou é a palavra occitana que corresponde à palavra lígure (genovesa) pesto, que eu creio que é mais conhecida internacionalmente que a parente occitana. Há inúmeras receitas de soupe au pistou, muitas das quais se encontram com facilidade na Internet, mas a minha difere de quase todas por não levar massa, nem carne de porco, nem tomate na sopa. Ah, e notem que não é sopa para entrada, é sopa-refeição. Claro, isto depende das quantidades que se comam, mas é pelo menos assim que a usamos cá em casa.

Os ingredientes da minha receita são (para umas 6 pessoas, creio eu, mas não sei bem, vocês vejam e ajustem à segunda vez, se houver uma segunda vez...):

  • feijão branco, feijão encarnado, feijão verde, curgete em quantidades sensivelmente iguais: cerca de 250 g de cada (o feijão branco e encarnado, já sabem que têm de pôr de molho na véspera, não é verdade?);
  • uma cenoura grande ou duas pequenas;
  • uma batata média;
  • um manjericão (ou alfavaca ou basílico, chamem-lhe o que quiserem, que criança amada tem muitos nomes, como dizem os dinamarqueses);
  • quatro dentes de alho não muito pequenos;
  • três ou quatro tomates médios bem maduros;
  • sal grosso;
  • azeite; e
  • queijo ralado — escolham o queijo que mais vos agradar, mas deve ser um queijo duro e não muito curado, para não roubar o sabor do resto dos ingredientes.

Cortam-se a curgete em cubos pequenos (um ou dois centímetros de aresta) e o feijão verde em bocados de uns três ou quatro centímetros, e põem-se a cozer junto com os dois tipos de feijão, em cerca de 1,2 litros de água fria. Quando se coze feijão, começa-se com água fria, para a pele não se separar e para cozer mais uniformemente. Há quem coza o feijão encarnado à parte, também por uma questão estética, para a sopa ficar com uma cor mais bonita, mas eu não me importo, cozo tudo ao mesmo tempo. Junta-se também a cenoura cortada em meia rodelas finas e a batata também cortadas em cubos pequenos. A batata há de desfazer-se durante a cozedura, não se vê na sopa. 

Deixa-se cozer tudo cerca de uns 80 ou 90 minutos, que é como quem diz, até o feijão estar cozido. Conforme a qualidade do feijão, pode demorar mais ou menos tempo a cozer, mas certifiquem-se de que está todo o feijão bem cozido, porque não se deve comer feijão mal cozido. Não sabe bem, nem faz bem. Se demorar mais tempo, talvez seja preciso acrescentar água, mas isso controlam você. A sopa deve ficar cremosa, mas não espessa demais.

Há que pôr sal e pimenta a gosto, claro, mas deve-se salgar pouco, porque o pistou e o queijo que depois vamos pôr na sopa são salgados.

À parte, fazemos o pistou. Misturamos num robô de cozinha (ou num almofariz, se tiverem paciência para isso...) as folhas de alfavaca com os dentes de alho, os tomates previamente pelados, umas quatro ou cinco colheres de sopa de azeite e uma boa colher de chá de sal grosso. Provem o pistou e vejam se precisam de retificar o sal. Sozinho, o pistou tem um sabor muito forte, mas não é para comer assim, por isso não se preocupem.

E pronto, há que ter na mesa, na altura de servir, azeite e queijo ralado. Depois de servida a sopa, cada pessoa deita no seu prato umas duas ou três colheres de pistou, uma mancheia de queijo ralado e um bom fio de azeite. E depois é comer. E repetir, talvez... 




16/07/24

Cantigas de rima esdrúxula e encontros de consoantes


1. A valsa “Drama de Angélica (Canto Tétrico)” foi composta por Manoel Gabriel Manhães Barreto e Lubiti, e gravada originalmente pelo Grupo do Calundas em 1931. Ei-la aqui na versão de Alvarenga e Ranchinho, de 1942.

A letra autodescreve-se como «poesia ética em forma esdrúxula, / feita sem métrica com rima rápida». Na realidade, é ao contrário: métrica até tem, apenas com algumas irregularidades, rima é que não. Se tivermos em conta que o fim da canção é descrito na própria letra como um dístico, a forma da letra é esta que ponho aqui em baixo, com 48 decassílabos acentuados na quarta sílaba. No entanto, se não aparecesse a palavra «dístico» a introduzir os últimos versos, e tendo em conta que o texto se quer «em forma esdrúxula», podia considerar-se que é de facto um texto em 96 versos de quatro sílabas, todos esdrúxulos — o que as pausas na melodia confirmam —, já que as palavras acentuadas na quarta sílaba de cada verso são todas esdrúxulas, como as que surgem no fim dos decassílabos. Ou quase todas esdrúxulas: perplexo e convexo são graves e não deviam, portanto, aparecer na letra, se se quiser levar mesmo a sério a tal condicionante dos versos esdrúxulos.

Ouve meu cântico, quase sem ritmo
Que a voz de um tísico, magro esquelético
Poesia ética em forma esdrúxula
Feita sem métrica com rima rápida
Amei Angélica, mulher anêmica
De cores pálidas e gestos tímidos
Era maligna e tinha ímpetos
De fazer cócegas no meu esôfago

Em noite frígida, fomos ao Lírico
Ouvir um músico, pianista célebre
Soprava o zéfiro, ventinho úmido
Então Angélica ficou asmática
Fomos a um médico de muita clínica
Com muita prática e preço módico
Depois do inquérito, descobre o clínico
O mal atávico, mal sifilítico.

Mandou-me célere comprar noz vômica E ácido cítrico para o seu fígado
O farmacêutico, mocinho estúpido,
Errou na fórmula, fez despropósito
Não tendo escrúpulo, deu-me sem rótulo
Ácido fênico e ácido prússico
Corri mui lépido, mais de um quilômetro
Num bonde elétrico de força múltipla

O dia cálido deixou-me tépido
Achei Angélica, já toda trêmula
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate
Tomou num fôlego triste e bucólica
Esta estrambólica droga fatídica
Caiu no esôfago, deixou-a lívida
Dando-lhe cólica e morte trágica

O pai de Angélica, chefe do tráfego,
Homem carnívoro, ficou perplexo
Por ser estrábico, usava óculos
Um vidro côncavo, e o outro convexo
Morreu Angélica de um modo lúgubre
Moléstia crônica levou-a ao túmulo
Foi feita a autópsia todos os médicos
Foram unânimes no diagnóstico

Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico
Todo de mármore da cor do ébano
E sobre o túmulo uma estatística
Coisa metódica como Os Lusíadas
E numa lápide paralelepípedo
Pus esse dístico terno e simbólico
«Cá jaz Angélica, moça hiperbólica
Beleza helênica, morreu de cólica»

Enfim, uma brincadeira com versos esdrúxulos, que são muito raros em letras de canções. Alguém comenta no YouTube que, além desta, a única canção que conhece com versos esdrúxulos é “Construção”, de Chico Buarque, uma obra-prima, digo eu, da canção em língua portuguesa — e da canção em geral. (Não vou aqui transcrever a letra da canção, que é muito conhecida e tem pouco a ver, no tom e no conteúdo, com as outras cantigas satíricas que aqui trato, mas podem lê-la aqui. As três últimas estrofes sem versos esdrúxulos são de outrs composição, “Deus lhe pague”, que se segue a “Construção” sem intervalo.)

De facto, se falarmos de canções em português com todos os versos terminados em palavras esdrúxulas, também não me lembro de mais nenhuma. Mas conheço outra, do início dos anos setenta, em que as palavras finais dos versos são quase todas esdrúxulas: “Homem Tétrico Morreu em Pé Num Carro Eléctrico”, do cantautor português Daniel. Não deixa de ser curioso que esta canção de Daniel tenha também no título a palavra tétrico. Será que Daniel conhecia a valsa de Manhães Barreto e foi inspirado por ela na criação da sua canção, que também tem um espírito satírico e também termina em morte? Há uma diferença fundamental, porém, entre a rima das duas canções: Daniel diverte-se a criar palavras, esdruxulizando palavras não esdrúxulas: na canção aparecem amarélico, sentádico, funerárico e qualquérico, que, embora não existam, toda a gente percebe, e um estranho fétrico, que eu não conheço e que não consigo encontrar nos dicionários. 

Entrou num carro elétrico um homem tétrico
E estava muito cheio o carro elétrico
Ficou de pé, cansado e com ar patético
Enquanto o carro avança e solavanca, frenético
Agarrado ao banco de metal amarélico
Suportando empurrões do jeito mais histérico
Dizendo palavrões ia o homem tétrico
Que não gramava nada andar de carro elétrico
Avança e solavanca, segue o carro elétrico

A tarde era amarela como o homem tétrico
O carro era amarelo como o homem tétrico
Deu-lhe uma pisadela um psicadélico (lá está o pessicadélico)
E ele fica muito muito amarélico
Deu um grito no carro deixando patético
O povo que ia agarrado ao carro fético
E cai no chão de pau nunca mais sendo cético
Avança e solavanca, para o carro elétrico E a tarde continua muito amarélica

O polícia cala o apito metálico
E sai p’la porta fora o corpo do homem tétrico
Que morreu em pé num carro elétrico
Não havia lugar para ir sentádico
Naquele carro doido que ia armado em sádico
E chega o carro negro do funerárico

E, mesmo assim, a tarde continua muito amarélica
O polícia toca o apito metálico
E numa casa pobre há um grito histérico
E na necrologia, num jornal qualquérico,
Anuncia-se a morte de um qualquer Américo
Que morreu em pé num carro elétrico
Não havia lugar para ir sentádico
Naquele carro doido que ia armado em sádico
Que não andava a gás, porque era elétrico

Companhia nem enlutou o homem tétrico
Que gramou meio século mulher de choro histérico
E só teve dinheiro para andar de elétrico
Que de tanto andar ficou cadavérico
Pois negaram-lhe sempre um salário módico
Por isso só andou no carro fétrico

Mas graças a Deus, ele já não é tétrico
Nem mais terá de ouvir o lamento histérico
Da sua Alzira com hálito elétrico

Mas não há três sem quatro, e há outra canção que é preciso aqui referir. Daniel também pode ter conhecido uma mazurca de Violeta Parra, a “Mazúrquica Modérnica”,  em que todas as rimas — esdrúxulas! — são, como o título já indicia, palavras criadas pelo mesmo processo com que Daniel cria amarélico, sentádico e qualquérico: acrescentar um pseudo-sufixo ico a palavras graves e agudas, esdruxulizando-as. A canção tem também um claro tom satírico, mas o conteúdo é fortemente político. Bom, talvez se possa também falar de um tom político na canção de Daniel, mas num sentido de uma crítica social mais difusa que a da canção de  Violeta Parra, em que ela diz claramente que não são as canções de intervenção social que agitam as massas populares, mas sim as condições de miséria, a repressão e as políticas governamentais***.

Me han preguntádico varias persónicas
Si peligrósicas para las másicas
Son las canciónicas agitadóricas
Ay, qué pregúntica más infantílica
Sólo un piñúflico la formulárica
Pa' mis adéntricos yo comentárica

Le he contestádico yo al preguntónico
Cuando la guática pide comídica
Pone al cristiánico firme y guerrérico
Por sus poróticos y sus cebóllicas
No hay regimiéntico que los deténguica
Si tienen hámbrica los populáricos

Preguntadónicos, partidirísticos
Disimuládicos y muy malúlicos
Son peligrósicos más que los vérsicos
Más que las huélguicas y los desfílicos
Bajito cuérdica firman papélicos
Lavan sus mánicos como piláticos

Caballeríticos almidonádicos
Almibarádicos mini ni ni ni ni
Le echan carbónico al inocéntico
Y arrellenádicos en los sillónicos
Cuentan los muérticos de los encuéntricos
Como frivólicos y bataclánicos

Varias matáncicas tiene la histórica
En sus pagínicas bien imprentádicas
Para montárlicas no hicieron fáltica
Las refalósicas revoluciónicas
El juraméntico jamás cumplídico
Es el causántico del desconténtico
Ni los obréricos, ni los paquíticos
Tienen la cúlpica, señor fiscálico

Lo que yo cántico es una respuéstica
A una pregúntica de unos graciósicos
Y más no cántico porque no quiérico
Tengo flojérica en los zapáticos
En los cabéllicos, en el vestídico
En los riñónicos y en el corpíñico


2. De cantigas com rimas esdrúxulas e letratura comparada, que é como eu chamo ao estudo de influências e semelhanças em canções de mundos diferentes, ficamos por aqui. Mas não é só para vos apresentar estas cantigas que este texto serve. É também para falar de encontros consonânticos que o não chegam a ser — ou que deixaram de o ser, talvez...

Provavelmente repararam que, no “Drama de Angélica”, há na letra duas palavras que, em princípio, não são esdrúxulas em português europeu, mas que o são de facto no português brasileiro atual, ritmo e maligna. Sabemos que a estrutura fonética do português do Brasil não admite certos encontros consonânticos e que, por isso, surge aqui uma vogal entre a consoante em fim de sílaba e a consoante inicial da sílaba seguinte, produzindo uma nova sílaba. Assim, rit-mo transforma-se em rí-ti-mo e ma-lig-na transforma-se em ma-lí-gui-na. Verifiquei que o mesmo se passa por vezes no português moçambicano (por causa do substrato banto?), mas não tenho uma ideia clara nem da extensão do fenómeno, nem se ele se começa a verificar no falar dos jovens que têm o português como língua materna, e nem se se verifica nas outras variantes africanas do português.

Muitos acharão que se trata de uma diferença efetivamente estrutural (fonológica) entre o português europeu e pelo menos o português do Brasil, porque, em português europeu, não temos grandes problemas com encontros consonânticos: pronunciamos ritmo e maligna, sem mais sons entre o /t/ e o /m/ de ritmo ou entre o /g/ e o /n/ de maligno. Aliás, produzimos constantemente, até, sequências de muitas consoantes, mesmo em palavras que, etimologicamente — e na escrita — não têm encontros consonânticos, porque os EE átonos podem pronunciar-se [ɨ]* (se falamos muito pausadamente, por exemplo, ou num registo formal) ou podem não se pronunciar, que é o que acontece a maior parte das vezes: por exemplo, a palavra telefone pode dizer-se [tɨlɨfɔnɨ], com as suas supostas quatro sílabas, ou [tlfɔn], numa única sílaba.

Tenho muitas vezes observado, porém, no português europeu — e é aqui que queria chegar — a ocorrência de um som não assinalado na grafia exatamente nos mesmos contextos em que ocorre o /i/ dito epentético de rítimo ou malíguina. Só que o som é um [ɨ], o som dos EE átonos. Tomemos por exemplo, a palavra pneu, que não tem historicamente nenhum som entre o P e N. Se, no Brasil, se ouve sempre pineu, em Portugal também se ouve às vezes peneu. O mesmo em, por exemplo segmento, subsolo, admitir e até palavras como claro ou credo, que se podem ouvir pronunciadas sèguemento, subessolo, ademitir, quelaro ou queredo. Não sei se alguma vez ouvi o maligno da canção pronunciado malígueno em Portugal, mas não me surpreenderia. E tenho a certeza de que ritmo se diz muitas vezes rítemo**. Palavras terminadas em R também se pronunciam muitas vezes com um [ɨ] final: falare, mulhere

Não sei se é um fenómeno novo, nem no Brasil nem em Portugal. No caso do português brasileiro, parece haver, como disse atrás, uma impossibilidade de certos encontros consonânticos, que é, aliás, semelhante à que se verifica noutras línguas ibéricas. Esta característica pode existir desde estados muitos anteriores da língua e os encontros consonânticos de que a escrita aparentemente dá conta podem nunca o ter sido de facto, que é como quem diz que ritmo e maligno podem ter-se pronunciado sempre com alguma vogal entre as consoantes em contacto, como se pronunciam atualmente no português do Brasil. Mas também pode ser que esses encontros consonânticos tenham sido possíveis em fases anteriores da língua e só mais recentemente se tenham tornado impossíveis no português brasileiro. Nunca vi nada escrito sobre o assunto, não sei. Não sei...

Agora, o apagamento, na pronúncia, dos EE átonos veio produzir um grande número de encontros de consoantes, às vezes cinco de seguida (!), que tornam o português europeu difícil de pronunciar e de compreender, mesmo para falantes de línguas próximas ou até de outras variantes do português. Mas cria também uma incerteza no sistema, que é como quem diz, na cabeça dos falantes da língua: quando é que há um [ɨ] não pronunciado ou quando é que não há som nenhum? Isto faz, por exemplo, não só que se hesite na grafia de palavras como Amsterdão/Amesterdão (ambas formas correntes), mas também que se escreva (aqui erro ortográfico, claro!) eslado em vez de gelado, como eu já vi escrito: de facto, ouvindo-se apenas [ʒladu] e sendo jlado estranho à grafia portuguesa, tanto um hipotético eslado como gelado se leem da mesma forma se o E for mudo — a primeira parte da palavra, até ao /a/, não se distingue da mesma sequência em eslavo.

Uma estratégia simples do cérebro dos falantes (da língua, seja), para regularizar a estrutura dos encontros consonânticos pode ser «postular» um E átono não pronunciado entre todos eles — ou pelo menos entre vários deles. É possível que se transformem estruturalmente (ou se tenham transformado ou se estejam a transformar…) encontros consonânticos em duas sílabas — dí-gue-no, a-pe-ti-dão — que podem ou não, em Portugal, ser pronunciadas como uma só. Não tenho, infelizmente, nem tempo nem meios para testar seriamente a hipótese, mas a ideia aqui fica.


_______________

* Este som é muitas vezes transcrito [ə], embora não seja realmente um schwa, pelo que prefiro transcrevê-lo aqui de forma mais rigorosa

** E até rítimo, que ouvi em sotaques populares lisboetas, que conservam alguns [i] em vez de [ɨ]; mas isto é, estou em crer, muito excecional.

*** A versão reconstruída da letra, sem os satíricos esdrúxulos: 

«Me han preguntado varias personas si peligrosas para las masas son las canciones agitadoras. Ay, qué pregunta más infantil, sólo un piñufla la formularía, para mis adentros yo comentaría. 

Le he contestado yo al preguntón: Cuando la guata pide comida, pone al cristiano firme y guerrero por sus porotos y sus cebollas. No hay regimiento que los detenga, si tienen hambre los populares.

Preguntadones partidaristas, disimulados y muy malulos, son peligrosos más que los versos, más que las huelgas y los desfiles. Bajito cuerda firman papeles, lavan sus manos como Pilatos.

Caballeritos almidonados, almibarados, mi-ni-ni-ni-ni-ni, le echan carbón al inocente y arrellenados en los sillones cuentan los muertos de los encuentros como frívolos y bataclanes.

Varias matanzas tiene la historia, en sus páginas bien imprentadas. Para montarlas no hicieron falta las refalosas revoluciones. El juramento jamás cumplido es el causante del descontento. Ni los obreros, ni los paquitos tienen la culpa, señor fiscal.

Lo que yo canto es una respuesta a una pregunta de unos graciosos. Y más no canto porque no quiero: tengo flojera en los zapatos, en los cabellos, en el vestido, en los riñones y en el corpiño-»

E uma tradução possível, para quem não perceba bem o espanhol de Violeta:

«Várias pessoas me perguntaram se canções agitadoras são perigosas para as massas. Ah, que pergunta infantil, só um miserável a faria, comentaria eu de mim para mim.

Respondi eu ao perguntador: Quando a barriga pede comida, torna-se uma pessoa firme e guerreira por feijão e cebola. Não há regimento que detenha os populares, quando têm fome.

Perguntadores partidários, dissimulados e maldosos, são mais perigosos que versos, e que greves e desfiles. Assinam papéis pela calada, lavam as mãos como Pilatos.

Senhorzinhos engomados e xaroposos, mi-ni-ni-ni-ni-ni, atiçam os inocentes e, esparramados nas poltronas, contam as mortes dos recontros como sendo frívolas e teatrais.

A história tem vários massacres, nas suas páginas impressas. Para os perpetrar não foram precisas tímidas revoluções. O juramento nunca cumprido é a causa do descontentamento. Nem os trabalhadores nem os polícias têm culpa, senhor juiz.

O que canto é uma resposta a uma pergunta de uns engraçadinhos. E não canto mais porque não quero: sinto-me fraca nos sapatos, no cabelo, no vestido, nos rins e no corpete.»