Qual é o material da arte?
Refere Paul Valéry nas suas Œuvres, um episódio que lhe tinha contado Edgar Degas (todas as traduções neste texto são minhas):
«Um dia […] em que estava a jantar em casa de Berthe Morisot com Mallarmé, [Degas] queixou-se das grandes dificuldades que tinha com a composição poética:
– Que trabalho este! – exclamou ele – passei o dia todo com um malvado dum soneto, sem conseguir fazer progresso nenhum... E, no entanto, não são as ideias que me faltam... Tenho muitas... Tenho demasiadas...
E Mallarmé respondeu, com a sua afável profundidade:
– Mas, Degas, não é com ideias que se fazem versos... É com palavras.»
Mallarmé tem bastante razão. E o que diz dos versos pode dizer-se de qualquer forma de expressão artística. Se Degas era melhor pintor do que poeta era porque dominava melhor as cores, as linhas, as formas do que os sons, acentuações e ritmos das palavras, etc. Não devemos ser demasiado radicais, porém, na recusa da importância das ideias nas artes. Depende muito de que arte falemos e, obviamente, do que queiramos dizer com «ideias», que é termo algo escorregadio. Uma sequência de sons, uma meia frase ainda sem significado nenhum é uma ideia? Ou uma combinação de cores, ou uma forma vaga? «Olha, isto é giro, o que se podia fazer daqui?» é uma ideia?
As ideias também podem, nalguns casos, ter uma importância fundamental. Há formas de arte em que só a ideia existe, o objeto-obra-de-arte — o quadro, o poema, a escultura — são sem interesse nenhum. Dizia Sol LeWitt, um dos pioneiros do chamado conceptualismo:
«Na arte conceptual, a ideia ou conceito é o aspeto mais importante da obra. Quando um artista utiliza uma forma de arte conceptual, isso quer dizer que toda a planificação e todas as decisões são feitas de antemão, e a execução é uma mera formalidade. A ideia torna-se uma máquina que cria a arte.»
Os antípodas de Mallarmé.
Objetos artísticos pré-fabricados — ou quase
Não é bem de arte conceptual que vos quero falar, até porque é coisa que não conheço. Queria antes falar um pouco de arte pop, de alguma arte pop. Mas não é nenhum ensaio o que se segue, nada de seriamente ponderado, é mais deixar correr o teclado sem grande escrutínio nem organização e dar conta de afiliação, de preferências — um texto de blogue, é o que é. E parto, no meu devaneio, de um tipo de objetos artísticos que são considerados ao mesmo tempo precursores — senão mesmo fundadores — da arte conceptual e da arte pop: o ready-made.
Antes de mais, o que é um ready-made? Para alguns, ready-made não é nem um tipo de objeto artístico, nem um método de criação de artística em geral. Dizem que ready-mades só há os de Marcel Duchamp. Os outros serão «objetos encontrados» ou outra coisa qualquer, mas deve deixar-se a Duchamp o monopólio da coisa ready-made. E que coisa é essa?
Quer se aceite que Duchamp tenha ou não o monopólio do conceito, é relativamente consensual ser ele o seu inventor. E ou inventou uma coisa que não sabe ao certo o que seja — ou então, inventou-a propositadamente como algo impossível de definir. Diz ele em 1963:
«Um ready-made é uma obra sem artista para a fazer».
No fundo, a definição coincide com a que André Breton propusera e que era a única que eu conhecia antes de começar a escrever este texto:
«Objeto comum promovido à dignidade de objeto de arte pela simples escolha do artista».
Breton disse outra vez a mesma coisa de outra maneira, referindo aqui não o objeto em si, mas sim o processo da sua criação:
«Ação de desviar [o objeto] dos seus fins, dando-lhe um novo nome e assinando-o, o que implica a requalificação pela escolha».
Provavelmente, o mais famoso ready-made: Fonte, de Marcel Duchamp (1917) Cópia do objeto original na Scottish National Gallery of Modern Art, Edimburgo. Foto de Kim Traynor. Wikimedia Commons, daqui. |
Não são ready-mades em sentido estrito, porém, que se encontram na arte pop, mas antes semi-ready-mades, se se pode dizer assim: em vez de ser apenas um objeto já existente requalificado como arte, a obra artística é antes uma reprodução simples desse objeto. Para referir os casos mais icónicos, não uma lata, mas uma imagem de uma lata, não uma revista de banda desenhada, mas a apropriação de imagens de banda desenhada, etc.
Evidentemente, a apropriação de obras existentes (fotos, design, filmes, banda desenhada) levanta questões éticas[1] — e, em última análise, legais —, mas isso não parece importar muito os artistas pop. Para Roy Lichenstein, a questão ética da apropriação não se põe. O seu trabalho é, segundo ele, outra obra, não uma apropriação. Além disso, as bandas desenhadas que usou como base para as suas pinturas eram, para ele, trabalhos de segunda categoria: «A banda desenhada não tem nenhuma relação com nada a que eu chame arte», afirmou ele.
Artes maiores e menores: o lugar do desenho
Em cima: As I Opened Fire, de Roy Lichtenstein, 1963; em baixo, tira do nº 90 de American Men of War, de Jerry Grandenetti, 1962. Podem ver aqui a rotação das imagens descrita por R.C. Baker na sua crítica à apropriação de Lichtenstein (trabalho de Roger Schaeder no seu site Rogers Seriemagasin). |
Gibbons discorda:
«Isto, a mim, parece-me plano e abstrato, a tal ponto que se torna confuso para a vista, ao passo que o original tem uma qualidade tridimensional, tem uma espontaneidade, uma vivacidade e uma maneira de captar o olhar de quem o vê que falta neste quadro. Por exemplo, a explosão aqui parece-me apenas um conjunto de formas planas, enquanto que, no original, porque não há traços e tudo depende da cor, a explosão me parece ter muito mais as características de uma explosão.»
R.C. Baker, do Village Voice, tem uma opinião semelhante sobre como as apropriações de Lichtenstein perdem em qualidade relativamente às suas «fontes»:
«As linhas flácidas, as cores baças e os designs deselegantes do artista são invariavelmente menos dinâmicos do que o realismo quotidiano dos profissionais da banda desenhada. Enquanto um expressionista da BD como Jerry Grandenetti habilidosamente inclina os canos das armas para apanhar só o canto de um painel, Lichtenstein eleva-os a uma diagonal mecânica na sua apropriação de 1963, As I Opened Fire, um erro de layout que reduz pintura a cartaz.»
Concordo com Gibbons e Parker. Também acho que as apropriações de Lichtenstein ficam sempre a perder em relação ao original em termos de equilíbrio das formas e mesmo de cor, mas, para mim, isso é o menos: a qualidade do traço é o maior problema. Deselegância e amadorismo podem ser aqui palavras-chave. Lichtenstein é um desenhador muito fraco. Podem ver lado a lado os quadros originais das bandas desenhadas e as apropriações de Lichtenstein aqui ou aqui e julgar por vocês mesmas/os. Algumas obras — tanto esboços como produtos finais — revelam um traço tão amador que parecem decalques feitos com papel vegetal por alguém sem experiência de artes plásticas. É difícil compreender como podem ser de um pintor famoso.
Cinco exemplos do amadorismo do desenho de Lichtenstein. Da esquerda para a direita: Conversation, 1962; Girl, 1964; Tension, 1964; Reckon not, Sir!, 1964; e We rose up slowly, 1964. Os quadros de BD originais de onde foram tiradas estas obras são de desenhadores competentes: por ordem, Ted Galindo, Joe Simon, Tony Abruzzo, Joe Kubert (um mestre!) e John Romita. Podem ver os originais clicando no título de cada obra. Não são propriamente obras-primas, mas são, pelo menos, profissionais — mais do que se pode dizer das linhas e dos sombreados de Lichtenstein... |
Roy Lichtenstein, Brushstroke, 1965. Nada como a representação estilizada de uma pincelada para se ver a qualidade — ou a falta de qualidade — do traço de um artista. |
Albert Dorne, que era um verdadeiro artista e não um «mero» desenhador, respondeu muito a bem a Warhol:
«Desculpe lá, Andy, mas, porra, desenhar não tem nada de mero».
Edgar Degas: Duas bailarinas na barra, cerca de 1872 Museu Boijmans Van Beuningena, Roterdão |
Provavelmente, o que nos faz tomar partido por Irv Novick ou por Roy Lichenstein, por Dave Gibbons ou por Alastair Sooke, por Andy Wharol ou por Albert Dorne é apenas gostar ou não de desenho, estar ou não interessado em desenho, valorizar ou não o desenho, e, em última análise, (re)conhecer o desenho como forma de expressão artística ou não. E desenho e ilustração são paixões minhas.
[Continua aqui]
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[1] David Apatoff trata a questão da dupla moral da apropriação num texto do seu blogue Illustration Art (em inglês). Diz ele que artistas que se apropriam das obras alheias não deixam que ninguém se aproprie das suas obras apropriadas e que a apropriação «será sempre menos crime se forem artistas plásticos de renome a roubar a artista "comerciais" ou de formas de arte menos consagradas (como sejam ilustradores, designers industriais e artistas de banda desenhada)»
[2] Dave Gibbons é autor de uma obra em que satiriza violentamente a apropriação de Lichtenstein do trabalho de Irv Novick em WHAAM! Ver este texto deste blogue.
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