A ideia de que o «verdadeiro» significado de uma palavra está diretamente relacionado com o seu significado «primeiro» e, por isso mesmo, «primordial» — ou, dito de outra maneira, que se pode usar o significado «etimológico» de uma palavra para escrutinar melhor a noção que ela exprime — é uma ideia com bastante fortuna, mas é uma ideia muito duvidosa... Dos vários significados por que passa a história de uma forma linguística, não há nenhuma que seja mais essencial que outro. E depois, com rigor, o significado «etimológico» de uma palavra de uma língua atual não existe, só existe o significado que teve — noutra língua! — outra palavra que está na origem da palavra atual. Mas a conversa é capaz de estar vaga demais. Vejamos casos concretos.
Uma amiga insistia, há uns meses, na necessidade de referir a noção de ideologia ao significado etimológico de ideia, que ela ligava a Platão. Ora a palavra ideologia é uma palavra relativamente recente, que não foi formada a partir da ἰδέα (idea) grega, mas do significado que a descendente francesa dessa palavra, o termo idée, tinha no séc. XVIII, que era já muito semelhante, se não igual, o que tem hoje. Muito diferente desse significado atual de idée (ou de ideia, em português, que lhe corresponde diretamente) é, porém, o significado das formas anteriores da palavra em grego, em latim e em francês antigo (até ao séc. XVI): a ideia platónica de «arquétipo» decorre naturalmente do significado de «forma, padrão, aspeto exterior», que essas formas tinham — o que aliás não surpreende, se pensarmos que a palavra deriva de εἴδω (eídō, “vejo”), que, por sua vez, deriva do protoindo-europeu *weyd-, «ver ou saber» (pelo vistos a relação entre cognição e visão é antiga, estão a ver?). De facto, a palavra ideia está etimologicamente relacionada com o nosso verbo ver, com ídolo e com o raro termo viso, que mantém o significado do seu étimo latino visum: «o ato de olhar; visão; aparição; aspeto; prenúncio». Visum está também na origem do italiano viso e do francês visage, que significam «rosto» e do inglês wise, «sábio» e formas semelhantes em várias outras línguas germânicas, e também do inglês wizard «feiticeiro». Em querendo, há muita coisa que se pode relacionar etimologicamente, não é verdade? Agora, se o significado de idée no francês do séc. XVIII não era diferente do que tem em francês atual, já o mesmo não se pode dizer de idéologie, que foi uma palavra cunhada em 1796 por Destutt de Tracy para designar uma ciência que teria por objeto o estudo das ideias, «a análise do pensamento, simplesmente», e que ele propõe que venha substituir a metafísica. Não só a idea grega original não é tido em conta na cunhagem do termo idéologie, como este termo não tem, na origem, relação direta com o seu significado atual. A noção moderna de ideologia (ou as noções modernas de ideologia, porque há algumas nuances no uso do termo em diferentes contextos*) só aparece no século XIX e é só no séc. XX que ganha ampla difusão.
Dou-vos só mais uns exemplos, que encontrei por acaso nos últimos tempos, do que muitas vezes se faz. Neste vídeo, por exemplo, põe-se a etimologia a corroborar uma certa perspetiva da didática: Afirma-se que «a etimologia[…] sempre nos ajuda a descobrir nas palavras sentidos mais ou menos ocultos que nos possibilitam entender melhor a própria realidade», mas há algum viés na descrição etimológica. Dos cinco termos referidos no vídeo, comento três, para não tornar o texto demasiado longo.
Dizer que laboratório vem de labor, «que é trabalho, tarefa» e «mais especificamente um trabalho ligado à tarefas agrícolas» e que «o laboratório tem muito a ver (…) com o esforço dos alunos em fazerem descobertas como se estivessem cultivando a terra do conhecimento» é uma forma mais poética que rigorosa de dizer as coisas. É certo que a palavra laboratório está relacionada com labor, já que foi criada a partir de uma forma do verbo laborare. Mas laborare é bem mais em latim, que trabalhar a terra: é trabalhar, esforçar-se, labutar; sofrer, ser oprimido, ser afligido por, estar perturbado com; elaborar, desenvolver, formar, fazer, preparar. A palavra francesa laboratoire, porém, de que deriva a nossa, surge no séc. XVII e alguns dos seus significados registados nesse século e no século seguinte são o de «parte da farmácia onde se preparam os remédios», «oficina de trabalhos manuais (de um pintor de esmalte)», « parte de um forno de revérbero onde se põe a matéria sobre a qual age o combustível» e «gabinete de um homem de letras».
Dizer que estagiário vem de stagium, que «significa o lugar onde a pessoa está, mas é um lugar de passagem» e que, portanto, «o estagiário (…) está num lugar que é apenas (…) provisório para algo», que ele «está ali aprendendo, vendo, observando, mas em vista de um progresso», além de não acrescentar muito à ideia que todos têm do termo estágio, também foge um pouco ao rigor etimológico. De facto, a palavra latina stagium, que significava «moradia» (normalmente, uma moradia associada a uma função laboral/social) vem do francês, ao contrário do que costume: é uma latinização medieval (!) do francês antigo estage (deverbal do francês antigo ester, «estar de pé, encontrar-se», que mais tarde também veio a significar «estado, posição, situação» e deu o atual étage). Os primeiros significados de stage em francês são já muito próximos do seu significado atual em português.
E dizer que «a palavra professor, professora vem de profiter, que tem a ver com a apresentação de uma pessoa estar diante de alguém», já que «pro- é estar à frente de alguém» e que, -fiter, por seu turno «vem de fateri, um outro verbo latino que significa "apresentar, falar, expor"», pelo que «o professor então é aquele que se expõe diante dos alunos», é também torcer a etimologia para a obrigar a dizer algo. Na realidade, professor/a vem do latim professōr, que é «aquele/a que se declara perito numa arte ou ciência». O nome deriva do verbo profiteri, que significa «defender, declarar publicamente, reconhcer(-se); professar; declarar-se, confessar». É certo que a origem última é per- «para a frente», e fateri, «reconhecer, confessar» (da família de fari, «falar», da raiz preindo-europeia*bha- «falar, dizer»); mas isto mostra que, conforme dá jeito a quem usa desta forma a etimologia, se pode ir mais ou menos longe na história das formas — com diferenças de muitos milhares de anos — para as pôr a dizer o que se quer. De facto, quando se dá uma palavra grega ou latina como étimo da palavra atual, há também que pensar que estas palavras também tinham étimos em línguas anteriores e que, se «primeiro é mais verdadeiro», porque não se vai antes ao protoindo-europeu?
Adão cavando a terra, vitral da Catedral de Cantuária. (Da página oficial da Catedral no Facebook) |
É certo que às vezes o desenrolar das relações etimológicas resulta num discurso engraçado e sedutor, como neste caso, em que se relaciona corretamente humano, humanidade e homem — e Adão — com húmus, humildade e humilhar — mas as conclusões morais retiradas dessas relações (que a etimologia convida o humano à humildade, a encontrar o seu lugar na terra sem a humilhar, com respeito e humildade) não derivam, obviamente, da etimologia em sentido estrito.
A conclusão de tudo isto são que, quando se insiste na maior pureza de um determinado significado etimológico de uma palavra ou na descoberta de sentidos escondidos na etimologia que definem melhor o que uma palavra quer dizer, o que se faz de facto é puxar a brasa à sua sardinha, quer dizer, pôr a etimologia a corroborar uma aceção de uma palavra para dar força a um argumento — para se chegar, enfim, onde se quer chegar. É possível, sem grande esforço, aliás, estabelecer relações entre palavras que, atualmente, não têm relação semântica entre si a partir uma manipuladora referência à sua etimologia. Para voltar a um exemplo dado atrás, se alguém quiser que há atualmente uma idolatria do vídeo, acho que deve apresente argumentos mais sólidos do que referir a sua relação etimológica… Aqui estou a brincar, é óbvio, mas há quem se entretenha a fazer relações deste tipo...
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