[Continuação daqui]
Álvaro Barrios e a arte pop a brincar com a arte
O ponto de partida deste longo devaneio foi o ready-made. E foi a obra de Álvaro Barrios, um artista colombiano, que me chamou a atenção para a relação entre o ready-made e a arte pop — que agora já vi referida, mas em que antes nunca tinha atentado.
Álvaro de Barrios pode ser visto como um discípulo de Lichtenstein, pelo menos nas obras em que se apropria de quadros de banda desenhada[4] — e é sobretudo disso que aqui se trata. Mas o uso que Barrios faz da BD é muito diferente daquele que Lichtenstein normalmente faz.
A primeira diferença entre as obras dos dois artistas é a escolha de referências. Se Lichtenstein prefere as séries de romance e de guerra dos anos 50 e 60 (ilustradas por desenhadores famosos como Joe Kubert e John Romita Sr., ou por outros menos conhecidos[5]), Barrios prefere os grandes heróis dos anos 30 e 40, como Dick Tracy, de Chester Gould, Fantasma e Mandrake, de Lee Falk, Red Ryder, de Fred Harman, Super-Homem, de Joe Shuster, Terry and the Pirates, de Milton Caniff, Tintin, de Hergé, etc.
Barrios pode não ter a técnica de um grande desenhador ou pintor, mas consegue fazer funcionar as suas ideias — e aqui temos mais um caso em que a ideia é tão importante como a sua execução, se não mais. E, ao contrário de Lichtenstein que unifica com um traço incaracterístico os traços dos ilustradores que «cita» (não se pode ver num quadro de Lichtenstein se se baseia em Kubert ou Romita…), Barrios insiste, na maioria das suas obras em que há apropriação de outros artistas, em preservar o traço de cada um dos ilustradores apropriados e, nos seus quadros, vê-se bem que a imagem foi tirada de (ou se baseia em) Shuster, Falk, Harman ou Caniff, por exemplo.
Outra diferença é, precisamente, o uso do texto. Nas obras de Barrios, o texto é uma parte tão importante da obra como a imagem. Mas os textos das pinturas baseadas em BD não são textos de quadros de BD. E isto é diferente do que Lichtenstein fazia. Na grande maioria dos casos, Lichtenstein conserva exatamente o texto do quadro de BD «apropriado», ou introduz modificações mínimas, como, por exemplo, acrescentar apenas o nome Brad[6]. Essa «fidelidade» à obra «apropriada» pode ser entendido como um modo de criar ironia — uma crítica implícita ao universo do romance popular ou da aventura de massas... Mas revela também, como referi na primeira parte deste texto, um processo de criação muito próximo do ready-made de Duchamp: agarrar num objeto preexistente e elevá-lo a obra de arte (quase) só pela sua vontade — e por uma ampliação feita com uma técnica artística muito limitada. Uma das raras exceções, na obra de Lichtenstein, à preservação do texto da BD original é uma pintura de 1964, Masterpiece, que aponta para o que Barrios viria a desenvolver de outra forma: a referência à pintura. A imagem é tirada de uma BD de Ted Galindo e um pouco mais modificada do que o habitual, também ao nível gráfico: a janela do automóvel é transformada numa tela de pintura vista de trás. É aliás, um dos quadros de Lichtenstein mais aceitáveis do ponto de vista gráfico, embora a omnipresente falta de dinamismo do traço ressalte em vários pormenores — especialmente quando comparado com o traço — banal, talvez, mas escorreito e profissional — de Ted Galindo. Quanto ao texto, é completamente modificado: no original, a rapariga diz: «But someday the bitterness will pass and maybe I'll be the girl to change your heart! But for now at least I can be near you!» («Mas algum dia a amargura há de passar e talvez eu venha a ser a rapariga que te faça sentir de outra maneira. Mas, por agora, pelo menos posso estar perto de ti»); no quadro de Lichtenstein, a rapariga diz antes «Why, Brad darling, this painting is a masterpiece! My, soon you’ll have all of New York clamoring for your work!» («Bem, querido Brad, esta pintura é uma obra-prima. Ena, em breve terás Nova Iorque inteira a aclamar o teu trabalho!») O demonstrativo this é ambíguo: refere a obra vista de costas no quadro ou o próprio quadro de Liechtenstein? Seja como for, haja ou não autorreferência da obra (um motivo tão em voga nas artes na segunda metade do séc. XX) é difícil não ver no quadro uma alusão (irónica?) à consagração que Lichtenstein começava a ter no mundo das artes plásticas. A haver alguma filiação em Lichtenstein (Barrios recusa-a), é no raro Lichtenstein do Masterpiece.Barros cria sempre os textos das suas obras. E estes textos são uma componente tão essencial dessas obras que se pode dizer que, por muito que a sua estética seja inequivocamente pop, Barrios é, de facto, um artista conceptual mais que um artista pop. Mas é um conceptualismo desopilante, de paródia. Barrios brinca com tudo: com a sua relação com os seus mestres, com as teorias da arte, com a própria arte moderna. E faz muitas vezes alusões mordazes e divertidas ao mundo das artes. Como diz Elías Doria, «As vítimas da sua sofisticada ironia parecem ter sido trazidas de volta da década de 1940 numa implacável máquina do tempo, mas os problemas que aborda estão ancorados no decadente presente legitimado pelas bienais, pelas casas de leilões, pelas poderosas galerias internacionais, pelas socialites de todos os tempos e um interminável etecetera».Por fim, a diferença mais significativa entre Lichtenstein e Barrios é que este muitas vezes não se limita a recriar pedaços de BD, transformando-os noutro «tipo de arte»[7]. Introduz elementos de estranhamento — referências intelectuais, todos eles — que são outro aspeto fundamental da produção do efeito de pastiche humorístico que referi acima.
É uma recriação-recreação, se se pode dizer assim, em que Duchamp e os seus ready-mades têm muitas vezes um papel de destaque. Não há dúvida de constituem fontes fundamentais da obra de Barrios. Sobretudo a sua «Fonte»: essa é mais importante das fontes…
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[4] Lichtenstein foi o pintor pop que mais se «apropriou» de bandas desenhadas, mas não foi o único.
Andy Wharol fez pelo menos dois quadros que são também apropriações de quadros de BD: Superman Puff, de 1961, e Dick Tracy, de 1963 — este último com alguma desconstrução da imagem original, que desconheço. Pode ver-se aqui a imagem original do Super-Homem de 1961, mas não há, infelizmente, referência ao artista (Curt Swan?). David Barsalou refere (ver link anterior) que este Super-Homem de Warhol é mais de seis meses anterior ao primeiro trabalho de Lichtenstein usando a mesma «técnica», se se pode dizer assim, pelo que «Andy Warhol sempre pensou que Roy Lichtenstein viu as suas pinturas no Bonwit Teller..., roubando as suas ideias e conceitos originais». Uma pessoa pode, pois, apropriar-se da ideia de apropriação…
Outros artistas mais ou menos pop têm obras baseadas em BD. Sharon Moody é um bom exemplo, embora o trabalho dela se possa considerar talvez mais hiper-realismo neobarroco…
[5] Como Tony Abruzzo, Ross Andru, Hy Eisman, Myron Fass, Ted Galindo, Jerry Grandenetti, Irv Novick, Arthur Peddy, Jay Scott (Jim) Pike e Mike Sekowsky, entre outros.
[6] Curiosamente, o nome Brad parece também ser uma apropriação do nome de uma personagem de um dos autores de que Lichtenstein mais se apropria, Tony Galindo.[7] É agora fácil saber de que BDs específicas Lichtenstein se apropriou para os seus quadros, devido ao trabalho de pesquisa de David Barsalou, entre outros; mas não consigo saber de que histórias concretas é que Barrios tirou os desenhos em que as suas obras se baseiam, nem sequer se são tirados de histórias concretas ou são antes colagens de várias fontes. Parece-me improvável que sejam criações suas usando apenas personagens conhecidas, porque o traço dos autores de que se apropria está demasiado presente nas obras. Parece-me evidente, por exemplo, que a série de quadros baseados em Terry e os Piratas, nos anos 2010, é construída com cópias exatas de quadros das BDs, apenas com uma cor de fundo e um texto diferentes (podem ver aqui alguns deles).
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