17/12/24

A verdade crua e outras obras nuas


Já aqui o disse aqui uma vez: Tenho a ideia de que, nas artes plásticas, a tão comum personificação feminina de ideais e conceitos abstratos tem sido um pretexto apenas para mostrar corpos femininos nus — e seios, principalmente seios. Creio que era mais fácil despir abstrações que duquesas, burguesas ou camponesas.  É claro, o género gramatical de certas palavras nas línguas românicas justificar uma personificação feminina da República, da Justiça, da Liberdade, da Fortuna, etc. Mas por que razão é que a República, a Liberdade, a Justiça, a Fortuna e outras abstrações hão de aparecer de seios nus? Até nos cemitérios há estátuas de mulheres — anjos fêmeas e figuras alegóricas indeterminadas  — de seios descobertos*

Mas não só em figuras alegóricas, também noutros tipos de imagens. Por exemplo, no quadro abaixo, que razão haverá para estarem nuas as duas futuras mártires cristãs que serão lançadas às feras, a não ser, precisamente, isso mesmo — a vontade de as mostrar nuas?…

Tirando isso, gosto da obra. Gosto, sobretudo das indefinidas feras que, lá do fundo, cristianizam os nus, se se pode dizer assim...

Saint George Hare: A vitória da fé («The victory of faith»), 1891. Óleo sobre tela, Galeria Nacional de  Victoria, Melbourne, daqui
Há quem consiga ver na obra o que o autor provavelmente dizia que nela se devia ver, duas mártires cristãs numa abraço fraternal, esperando serem atiradas às feras que as observam do fundo esbatido da cena. Outros, porém, veem na tela duas amantes adormecidas depois de um ato de amor. A artista Laura Olenska tem um texto sobre o quadro no seu site Éffluves, em que, além de outras informações interessantes, nos diz que fez sobre ele um breve inquérito justo dos seus contactos do Instagram, em que lhes pedia para darem a sua opinião sobre o quadro, sem pensarem muito e sem fazerem pesquisas na Internet: «O número de pessoas que participaram foi suficiente para se obter uma estatística realista». O resultado foi que 95% [escolheram] «descanso depois do prazer» e só 5% viram no quadro «um abraço fraternal»... E que dizem as/os leitoras/es deste blogue?



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* [Longa nota de rodapé, maior, afinal, que o próprio texto...]

O caso das personalizações nuas da Verdade é um pouco mais complicado: a expressão «verdade nua [e crua]» existe em várias línguas, mas não consigo encontrar uma explicação inequívoca da sua origem. 

Há uma história conhecida que diz que, de uma vez que a Verdade se banhava num rio, passou por lá a Mentira, que lhe roubou a roupa que ela deixara na margem. A história ocorre com pelo menos duas conclusões. Nalguns textos, diz-se que a Mentira lá deixou as suas roupas, mas a Verdade preferiu ir nua que vestir a roupa de Mentira. Noutros, diz-se que a Mentira não deixou lá roupa nenhuma e que, daí em diante, aparece às pessoas vestida como se fosse a Verdade, ao passo que esta última não pode senão aparecer nua e que, por isso, muitas pessoas recusam olhar olhar para ela. 

Esta história é muita vezes dada como sendo uma fábula da antiguidade, mas não consigo encontrar dela versões antigas. O que consigo encontrar, isso sim, é uma famosa citação de Demócrito, que diz que «na realidade, não sabemos nada, porque a verdade está no fundo de um poço». Segundo algumas traduções, seria antes «Da realidade, não sabemos nada...», ) e, em vez de poço, tratar-se-ia de um abismo».... Como não sei grego antigo, não posso tomar partido por nenhuma das traduções, mas o certo é que há toda uma tradição pictórica de representar a Verdade saindo nua de um poço — muitas vezes com uma espelho na mão, que é também uma forma clássica da sua representação. A mais conhecida destas obras é a pintura de Jean-Léon Gérôme «A Verdade saindo do poço armada do seu chicote para castigar a humanidade». Este quadro é de 1896, mas há vários anteriores, a partir de 1879, pelo menos

Pode pensar-se que, mais uma vez, é a vontade de mostrar mulheres nuas que justifica este motivo pictórico. O facto de  Demócrito ter posto a Verdade nas profundezas da terra não pode justificar, por si, a sua nudez: porque não haveria ela de estar num poço e vestida? 

Já em 1838, porém, podia ler-se, num conto em verso de Jean-Pierre Claris de Florian:

«A Verdade, toda nua, / Saiu do seu poço um dia. / Já despojada, p'lo tempo, / dos encantos que tivera.»

Pode então a origem da nudez ser literária e não pictórica... 


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