Chamemos as vacas e os bois pelo nome. E que nome lhes vamos dar?
Roy Lichtenstein não glosou (um eufemismo?...) só imagens de bandas desenhadas. Um caso curioso é o da série Bull Head Series, de 1973, que remete, à primeira vista, para duas séries anteriores, as composições Vaca, de Theo van Doesburg (1917) e O Touro, de Picasso (1947).
Quatro vacas da série de Theo van Doesburg. |
Para mim, é claro que a série de Lichtenstein tem uma relação mais direta com a de Van Doesburg que com a série de Picasso. E isto porque tudo leva a crer que tanto a série de Van Doesburg como a Lichtenstein se pretendem trabalhos de progressiva abstratização da imagem figurativa inicial. A sequência de Picasso, essa, tem um objetivo diferente: não abstrativização, mas antes simplificação[3].
É de notar, porém, que Lichtenstein nega o trabalho de progressiva abstrativização que me parece óbvio na sua série ao negar que haja figurativismo inicial. Diz ele:
«A série finge ser didática; estou a dar-vos lições de abstração. Mas, para mim, nenhum [boi] é mais abstrato que outro. O primeiro é abstrato; são todos abstratos».
Esta afirmação levanta-me imediatamente algumas questões:
A obra valeria sem a explicação ou é esta explicação que justifica a obra, que a cria? Se a afirmação de Lichtenstein fizesse parte da obra, se estivesse escrita na própria obra, poder-se-ia falar aqui de conceptualismo no sentido proposto por Sol LeWitt?
E que sentido tem uma afirmação destas? É algo que se diz apenas pela vontade de dizer algo bombástico? Uma pequena provocação? Na realidade, as primeiras imagens da série de Lichtenstein são figurativas e as outras abstratas — a não ser que se dê um significado novo, e por isso incompreensível, aos termos figurativo e abstrato... A experiência é fácil de fazer: pergunte-se a várias pessoas o que representam essas imagens e todos saberão responder, ao contrário do que acontece com as últimas figuras da série.
As primeiras imagens da série são figurativas, mas não são figurativamente interessantes, se se pode dizer assem. A primeira ainda é aceitável, embora revele a tal falta de dinamismo e de domínio da linha e das sombras próprios dos bons artistas plásticos. A segunda, porém, é claramente um trabalho de um desenhador inexperiente. As primeiras imagens das séries de Doesburg e Picasso podem não ser grandes obras, mas valem por si, sem a necessidade de explicação do que se pretende com a série. As de Lichtenstein, bom, não me parece. Acho que estão mais do lado dos sonetos de Degas que das suas bailarinas.Mas não desgosto das duas últimas obras da série, as completamente abstratas. Do que vi de Lichtenstein, são de facto das obras de que mais gosto... (Também não desgosto do seu Tríptico das Vacas (ver aqui), cujo primeiro quadro, figurativo, um pouco com uma estética de anúncio de produtos lácteos, é muito melhor que as pinturas figurativas da Bull Head Series.)
[Continua aqui]
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[3] As imagens da série de Picasso nunca deixam de ser figurativas, são apenas cada vez mais simples. Como diz o litógrafo Fernand Mourlot, que foi assistente de Picasso neste projeto, «para chegar ao touro de um só traço, teve de passar por todos os touros precedente. E quando vemos o seu touro número 11, não conseguimos imaginar o trabalho que esse touro lhe exigiu».
Gravuras nº 1, nº 6 e nº 11 (última) da série de Picasso. Podem apreciar aqui a série completa. |
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