[Este texto não faz sentido para quem não tenha conhecimentos mínimos de inglês, posto que é, precisamente, sobre algum vocabulário dessa língua. Ponho, no entanto, os significados em português das várias expressões e frases, para o caso de o leitor não as conhecer todas.]
Dizia-me há pouco tempo um amigo que uma das coisas que achava mais difíceis em inglês — e que acreditava ser uma das riquezas da língua — eram os chamados phrasal verbs, as combinações de verbos com preposições ou advérbios cujo significado não se pode deduzir do significado dos elementos que as compõem, como put out («apagar», «incomodar», «disponibilizar», «editar», «emitir», «produzir» e mais), put up with («suportar», «aguentar», «aturar») ou put off («adiar», «desencorajar», «desagradar» e mais) — que não se podem deduzir do significado de put, que basicamente significa «pôr». Mas serão os phrasal verbs algo assim tão especial e algo tão idiossincraticamente inglês?
Quero notar, antes de mais, que phrasal verbs é uma designação muito típica da tradição de ensino de inglês como língua segunda e não tanto da literatura científica, embora haja trabalhos de linguística que abordem o conceito. O dicionário Cambridge define phrasal verb como «um sintagma composto por um verbo com uma preposição ou advérbio ou ambos, cujo significado é diferente do significado das partes separadamente» e dá como exemplos pay for[1] («pagar (por)»), work out («calcular», «resolver», «elaborar», «esgotar», «fazer exercício» e mais) e make up («inventar», «formar», «constituir», «maquilhar», «recuperar», «fazer as pazes» e mais).
Na secção de gramática que se segue à definição, no entanto, o Cambridge desdiz-se e explica mais em pormenor que (como na sua própria definição acima) a designação se usa muitas vezes para três tipos diferentes de «verbos polilexicais», mas que, com rigor, apenas devia referir um desses tipos, os verbos polilexicais compostos de um verbo principal e uma partícula adverbial, as mais comuns das quais são around, away, down, in, off, on, out, over, round e up[2]. Os verbos preposicionais que selecionam obrigatoriamente uma preposição que os ligue a um objeto não seriam, pois, phrasal verbs em sentido estrito[3]. Exemplos destes «falsos» phrasal verbs são (verbos a itálico e negrito; preposições a itálico e negrito e sublinhadas; e objetos só em itálico) break into (a house), «assaltar (uma casa)»; cope with (a difficult situation), «enfrentar/lidar com (uma situação difícil)»; deal with (a problem), «lidar com (um problema)»; depend on, «depender de», do without, «passar sem», look after (a child), «tomar conta de (uma criança»); look at, «olhar para», look for, «procurar»; look forward to, «ansiar por, aguardar com expetativa», etc. Nestes casos, a preposição vem forçosamente antes do objeto e nunca depois. Tem de se dizer
Could you look after my bag while I go and buy the tickets? («Pode tomar-me conta da mala enquanto eu vou ali comprar os bilhetes?»)
e nunca
*Could you look my bag after …,
ao passo que os «verdadeiros» phrasal verbs podem ter ou não um objeto e a partícula não verbal do verbo polilexical pode vir antes ou depois do objeto[3]. Eis alguns exemplos, também do Dicionário Cambridge:
She brought up three kids all alone («Criou três filhos sozinha»)
ou
I brought my children up to be polite («Ensinei os meus filhos a serem bem-educados»).
Normalmente, quando o objeto é longo, vem depois da partícula não verbal:
Many couples do not want to take on the responsibility of bringing up a large family of three or four children. («Muitos casais não querem assumir a responsabilidade de criar uma grande família de três ou quatro filhos»)
Há outras propostas que, seguindo esta ideia, dão definições mais completas e mais restritas de phrasal verb, algumas delas tão completas e tão restritas que excluem da definição uma grande parte das expressões verbais que costumam figurar nas listas comuns destas expressões[4]. A questão não é, pois, nada simples e não tenho vontade nem competência para a desenvolver aqui. Muitas listas de phrasal verbs que por aí circulam, porém, misturam os legítimos e os bastardos sem grande problema — e aceitemos que está muito bem assim…
Agora, o que me parece interessante nas definições mais rigorosas aqui referidas é que são essencialmente morfossintáticas e não semânticas — exceto a definição inicial de que o significado de um phrasal verb «é diferente do significado das partes separadamente». Esta questão interessa-me e quero analisá-la aqui um pouco mais em pormenor, até porque muitos dos exemplos que o Cambridge dá de phrasal verbs não encaixam bem nesta definição.
Antes de mais quero constatar que o significado de muitos phrasal verbs em sentido estrito decorre muito diretamente do significado do verbo ou do verbo e da preposição ou advérbio que o constitui — mesmo quando isso não possibilita que se os compreenda sem os ter aprendido antes. Mas mesmo esta compreensão é muitas vezes possível. É certo que give up não decorre do sentido de give nem de up, que make out não decorre de make nem de out, mas come out, em qualquer um dos seus sentidos, decorre dos significados de come e de out. O mesmo em relação a go ahead, go after (something), go against (somebody), por exemplo. Take off, no sentido de «despir» decorre também muito naturalmente dos significados dos dois constituintes da expressão – e até no sentido de «descolar» se pode ver uma relação clara do significado da expressão com o significado dos seus elementos constitutivos. Também é duvidoso que o significado de break down, tanto na aceção de «avariar-se» como na aceção de «decompor(-se)», não se possa deduzir do significado dos seus elementos. Na expressão look forward to, embora não se possa deduzir o seu significado dos constituintes, como a definição acima apresentada prescreve, pode claramente ver-se como o seu significado se forma a partir dos seus constituintes. E há muitos mais exemplos.
A questão é também, obviamente, definir o significado de maneira suficientemente abstrata. Os phrasal verbs nasceram muito provavelmente de um significado inicial abstrato dos elementos que os compõem. Isto, aplica-se, aliás, a todos os sentidos «desviantes» de qualquer verbo: uma definição de comer como «ingerir alimentos sólidos» não explica os muitos usos da palavra, mas uma definição mais abstrata como «ser recipiente de» já pode explicar alguns deles. Se se usar antes uma ideia ainda mais abstrata de incorporação, que implique a posse daquilo de que se é recipiente, mais significados podem ainda ser explicados. Mas isto também não é questão que queira tratar de passagem aqui no meio de um texto sobre phrasal verbs… Voltemos a estes.
Muitas vezes, as partículas não verbais dos phrasal verbs parecem funcionar como marcadores de aspeto e modo de processo: não é o significado que muda, é a «temporalidade» (em sentido lato) que se altera[5]. Alguns deles, sobretudo muitos com up, marcam uma conclusão da ação (perfetividade) e outros, com on, marcam a sua continuação (imperfetividade). Poder-se-ia até argumentar que, em certas situações, certas posposições/advérbios parecem funcionar antes como partícula aspetuais/temporais independentes, livres de se aplicar a certos verbos: como se diz go on ou move on, «continuar, prosseguir», também se pode construir livremente jam on, «continuar a improvisar [música]» ou dream on, «continuar a sonhar» e muito mais seguindo este modelo. Também a partícula around pode ser uma marca iterativa que parece ser independente, usando-se para significar que a ação se repete muitas vezes, normalmente com muitas pessoas, como em call around, «telefonar a um grupo de amigos, clientes, etc., (conforme a situação)», ou sleep around, «ir para a cama com muita gente». É certo que estas palavras não se podem usar livremente com todos os verbos e haveria que definir com rigor quando podem ser usadas desta forma, mas isso é trabalho para especialistas da língua inglesa — uma coisa que eu não sou.
Até agora, falei só do inglês. Mas é importante notar que, com algumas diferenças estruturais e sem um nome específico, existem também phrasal verbs nas outras línguas germânicas. O dinamarquês, que é a única destas línguas que conheço bem, tem muitos, provavelmente mais que o inglês. Não me vou aqui, porém, adiantar na comparação dos phrasal verbs do inglês com os do dinamarquês ou de outras línguas germânicas que a grande maioria dos leitores do blogue não conhece, por interessante que essa comparação possa ser. Mas podemos assentar nisto: por muito que normalmente só se fale de phrasal verbs quando se fala do inglês, eles estão longe de existir só nesta língua.
Nas línguas latinas, tudo é um bocado diferente. As preposições colaram-se aos verbos ainda em latim e nem nos damos conta de que apreender (e aprender), compreender, depreender e empreender[6] são, originalmente, um mesmo verbo com várias preposições, como admitir, cometer, demitir e permitir, ou consistir, desistir, existir, insistir ou persistir — e dezenas de outros casos. Note-se que o mesmo processo de formação existe nas línguas germânicas, em que a preposição se colou ao verbo que a segue. Nalguns casos, como no inglês outbargain («ficar a ganhar numa negociação ou num contrato») parecerá óbvio aos falantes da língua que se trata de bargain («negociar») antecedido de out, mas ninguém pensa em understand («compreender») como o verbo stand (preposicionado — até porque stand under tem outro significado («erguer-se, estar situado debaixo de») — e, evidentemente, estes verbos não são considerados phrasal verbs[7].
«Comer fora» James Tissot: La multiplication des pains («A multiplicação dos pães»), 1886-1896. Brooklyn Museum, daqui. |
Mas há outros casos mais curiosos, a que parece poder aplicar-se uma definição mais restrita de phrasal verb — desde que não se a limite à presença de um advérbio: estar para («ter vontade de», passar por («ser tomado por»), levar com («ser atingido por; ser alvo/vítima de; ter de aturar, aguentar»), olhar por («vigiar, tomar conta de») ou sair a («herdar características dos progenitores»), para dar alguns exemplos óbvios, mas há mais. Vejamos o caso de dar, que é, creio, o mais prolífico em português. Assim, (ir/vir) dar a é «conduzir a», dar com é «encontrar, descobrir», dar em é «tornar-se» (restrito a predicações de caráter negativo), dar para pode significar «servir para», «ser suficiente para» ou «ser possível», dar + dativo + com pode significar muitas coisas desde «bater» (deu-lhe com um pau) a «ingerir» (dei-lhe com uma bela feijoada), dar + dativo + para indica o surgimento de uma vontade, estado de espírito ou hábito e dar por significa «notar, aperceber-se de» ou «considerar».
Mas, mesmo que nos atenhamos à definição restrita de phrasal verb com uma partícula adverbial, ainda somos capazes de encontrar casos em português, além do já referido comer fora: por exemplo (mas há mais), deitar/mandar abaixo, «derrubar» ou «dizer mal de»; ir atrás de, «acreditar em alguém; obedecer a alguém», andar atrás de, «tentar seduzir»; ficar atrás de, «ser de qualidade inferior»; andar em cima de, «vigiar de perto» ou «perseguir, controlar insistente e abusivamente», estar/ficar por dentro, «ficar a saber/saber de algo»; ir dentro, «ser preso», botar/deitar/mandar fora, «desfazer-se de», ir/chegar longe, «ter sucesso»; e ir-se abaixo, «perder forças, físicas ou psíquicas», «deixar de trabalhar (um motor)».
Conclusões? Não há. Isto era mais a gente a conversar como quem conversa à mesa do café, sem preocupações de chegar a algo de muito definitivo… A não ser que os tais phrasal verbs ingleses não parecem ser, afinal, nada de tão idiossincrático como os querem, às vezes, fazer parecer…
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Eis um link para uma lista abrangente de phrasal verbs, uma das muitas que se encontram na Internet.:
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[1] Se vos parece estranho que pay for seja exemplo de phrasal verb, agradar-vos-á saber que pay for não faz parte da lista de phrasal verbs da entrada pay do dicionário Cambridge. Note-se que a minha intenção não é de modo algum apontar as incoerências deste dicionário, que escolhi ao acaso, mas antes apontar as naturais incoerências de um conceito vago como phrasal verb.
[2] A categoria advérbio é difícil de definir. De facto, não conheço nenhuma definição abrangente, a não ser talvez «palavra invariável que não introduza um sintagma» e, mesmo essa, é pouco clara. Alguns dos advérbios que formam phrasal verbs têm as mesma forma que preposições: around, away, down, in, off, on, out, over, round e up (embora a designação de down, off e up como preposições seja muito discutível).
Outra questão é como definir verbos polilexicais. Se se considerar polilexical um verbo quando seleciona como complemento um sintagma preposicional, o mundo está cheio de verbos polilexicais… Por exemplo: olhar, ao contrário de ver, seleciona sempre um complemento introduzido por uma preposição — embora às vezes ele não seja expresso. Há alguma diferença fundamental das sequências look after a bag e look at a bag, por exemplo, relativamente às sequências correspondentes em português, olhar por uma mala e olhar para uma mala? Devem considerar-se look at/olhar para e look after/olhar por verbos polilexicais?
[3] Quando o objeto é pronominalizado, porém, vem sempre depois do verbo e antes da preposição/advérbio.
I’ve made some copies. Would you like me to hand them out? («Tirei cópias. Quer que as distribua?»)
e não
*Would you like me to hand out them?
[4] Numa tese de mestrado de 2004, em que analisa os phrasal verbs em inglês, dinamarquês e alemão, Elisabeth Ingeborg Kaalund lista «as características definidoras de um phrasal verb que se aplicam aos três idiomas», que incluem, entre outras, a possibilidade de nominalização, de passivização e de mobilidade da partícula adverbial, podendo esta ser colocada à direita do verbo (uma questão também referida, como indiquei, na definição mais estrita do dicionário Cambridge). É uma definição de muito maior rigor e que reduz muito o número de phrasal verbs. Redu-lo tanto que, segundo esta definição, algumas combinações normalmente consideradas phrasal verbs não o seriam de facto.
Vejamos a questão da nominalização. Se analisarmos alguns exemplos de phrasal verbs referidos neste texto, é certo que de bring up se pode fazer upbringing e de put out se pode fazer output apenas num dos muitos sentidos da expressão, tal como make-up só se refere a maquilhagem e nunca a invenção. De make up não se faz *upmaking, nem de take on se faz *ontaking (embora existam intake e outtake).
Além disso, a possibilidade de passivização não parece ser um bom teste do facto de o phrasal verb ter as mesmas propriedades que um verbo simples, pelo menos em inglês: há verbos, como look after, que embora não sendo, como vimos, «verdadeiros» phrasal verbs, admitem passivização (frase daqui):
There are a number of reasons why a child may be looked after by the local authority.
A tese de Kaalund pode ser consultada em linha: Kaalund, E. I. (2004). Phrasal Verbs in English: a comparison with German and Danish. [Candidatus, Copenhagen Business School].
[5] Uma vez, li num fórum da internet um comentário de alguém que considerava que os chamados prefixos aspetuais das línguas eslavas eram como alguns phrasal verbs. Para explicar de uma forma muito simplificada o que são estes prefixos, dou-vos um exemplo do russo: há dois verbos читать e прочитать, pronunciados [tchitat] e [pratchitat], para dizer «ler» (muitas vezes, trata-se da mesma forma sem prefixo e com prefixo, como neste exemplo, mas nem sempre), conforme se fale de ocorrência de leitura sem referir o seu completamento («ontem, li/estive a ler depois do jantar») ou completamente de leitura («ontem, li um texto sobre Amelia Earhart»). Ora, de facto, muitas vezes a partícula up do inglês funciona como uma marca de perfectividade, ou seja, completamento: he didn’t eat entende-se como «ele não comeu», ao passo que he didn’t eat up não significa que não tenha comido, mas que não acabou de comer.
[6] Em surpreender, o sur- é o sobre francês, língua de que nos vem a palavra.
[7] Em dinamarquês, embora um verbo com uma preposição fixa muitas vezes signifique uma coisa completamente diferente do mesmo verbo com uma posposição solta (påtage, «assumir, comprometer-se» vs tage på, «engordar», ou opstå, «surgir» vs stå op, «levantar-se»), há também muitos verbos que podem ter uma preposição anteposta ao verbo e colada a ele ou a mesma preposição solta depois do verbo sem mudar de significado: underskrive ou skrive under significam ambos «assinar», medtage ou tage med signficam ambos «levar», etc. — podia aqui dar muitos mais exemplos. O único caso de que agora me consigo lembrar nas línguas latinas é o de sobrevoar em português (ou de survoler em francês, igual), que também pode ocorrer como voar sobre:
Estamos a sobrevoar Paris
ou
Estamos a voar sobre Paris
significam a mesma coisa.
[8] Já em francês não se pode dizer *manger dehors com o mesmo significado.
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