22/02/24

Mangas e tangas: mais uma conversa sobre a origem de termos de calão

 

Mangas…

No português que eu falo (no meu dialeto e no meu socioleto, se assim o preferirem), mangas, nome masculino de dois números, significa «malandro», «atrevido», «pinta(s)», «moinante». É natural que, a partir deste significado inicial, tenha evoluído para significar apenas «indivíduo, fulano, sujeito», sem mais, como o propõe o dicionário Porto Editora em linha. É pena que falte à entrada o outro significado que eu referi; e surpreende-me que se considere a palavra de dois géneros, a não ser que seja coisa recente: nunca na minha vida ouvi nada como «A Fernanda é uma ganda mangas!» ou «A Paula? Ui, essa mangas…». Mas é louvável que a entrada mangas exista, já que os outros dicionários a que tenho acesso simplesmente não registam o termo. 

O Porto Editora propõe como etimologia a palavra portuguesa manga, simplesmente, acrescentada de um S. Não é que seja etimologia mal pensada, já que o aparente plural de nomes é construção prolífica, no registo a que mangas pertence, para designar pessoas específicas ou tipos de pessoas. E as partes do vestuário ou do corpo são, precisamente. material comum para essas construções. Além do sinistro ditador que todos conhecem como «o Botas», muitos de vocês deverão ter topado, ao longo da vida, com alcunhas como «o Pantufas» ou «o Calcinhas», ou «o Vidrinhos», (para alguém que usasse óculos), «o Mãozinhas», «o Pezinhos», «o Orelhas» ou «o Monas» (se se achasse que sobressaíam na pessoa algumas partes do corpo) ou «o Barbas», «o Bigodes» ou «o Patilhas» (para referir quem não rapasse o pelo em toda a face ou parte dela). Quanto a nomes genéricos, diz-se, por exemplo, «um conas» ou «um coninhas» de alguém com pouco expediente — atado, como também se diz —, que facilmente se deixe embaraçar, enganar ou amedrontar, ou «um tretas» de alguém que cultive a mentira ou o exagero. Talvez uma alcunha «o Mangas», devida a qualquer particularidade do vestuário de um determinado moinante, tenha tido tanta fortuna que, de designar um indivíduo, tenha passado a designar o seu tipo. 

Mas há outra hipótese etimológica que me parece possível, e talvez até mais lógica, embora não me atreva a dá-la como quase certa — que é o mais que se pode fazer quando se fala destas coisas —, por falta de informação sobre as datas de primeiras atestações de mangas com este significado em português e por desconhecer por que vias possa ter chegado a Portugal o termo que proponho: o grego μάγκας, pronunciado [máŋgas].

A definição de um dicionário grego coincide em grande parte com a definição que eu gostaria de ver nos dicionário portugueses. (Notem que a palavra mangas, na definição que se segue, é a palavra mangas em grego, não em português. A tradução é do senhor Google, eu apenas a tentei tornar mais elegante.) 

Mangas: pessoa do povo caracterizada por excesso de autoconfiança ou arrogância, e com uma aparência ou um comportamento (vestuário, movimentos, vocabulário, tom de voz, etc.) diferente do habitual: Stavrakas, o tipo que representa o malandro nas histórias de Karagiozis [teatro de sombras], é um mangas e um vadio. || (por extensão) tipo de homem comum que se porta como um rapazola e se arma em forte: Aqueles estão armados em mangas e viajam sem cinto de segurança.[1] 

Mas o mais interessante é que, na origem, mangas é um tipo histórico específico, o tal que Stavrakas representa no teatro de sombras. E é essa designação dos membros de um grupo social de finais do séc. XIX e inícios do séc. XX que está na origem das aceções posteriores; e é essa aceção primeira que eu penso que pode ter chegado a Portugal no princípio do século XX, como chegou a outros países. Os mangas estão intimamente ligados à cultura do rebético, a canção urbana grega surgida na segunda metade do século XIX e eram facilmente reconhecíveis pela sua indumentária: chapéu de feltro, casaco vestido só numa manga, longa faixa à cintura, calça riscada e sapato de bico[2]. Se aceitarmos que o rebético está para Atenas ou Salónica como o fado para Lisboa, o tango para Buenos Aires, ou a valse musette para Paris, então o mangas é o faia, o tanguero e o marlou.

No fundo, o que eu proponho é que se tenha passado com o grego mangas o mesmo que, por exemplo, se passou na mesma altura com o francês apache, que, começando por designar um grupo social específico da ralé parisiense, ganhou depois um sentido genérico e extravasou do francês para outras línguas, entre as quais o português (conheci o termo pela minha avó, nascida em 1919, e há até uma valsa portuguesa de 1915 com esse nome [3]). Como já disse, não sei como é que a designação pode ter chegado a Portugal (através de marinheiros?), mas parece-me certo que a fama dos mangas não se ficou pela Grécia.

Deixo-vos, para terminar as páginas sobre mangas na Wikipédia em inglês e em espanhol e um bonito rebético sobre os mangas de Votanikós, um bairro de Atenas.

Ζαχαριασ Κασιματησ: Ο Μαγκασ του Βοτανικου, 1934, (Zaharias Kasimatis, “Mangas de Votanikós”)


… e tangas

O dicionário Porto Editora em linha regista a expressão «coloquial» dar tanga a (alguém) com o significado de «divertir-se à custa de (alguém)» e o verbo «popular» tanguear com o significado de «troçar de (alguém) com aparente seriedade; dar tanga a». É uma definição que não me satisfaz, porque a tanga (de conversa) não existe só na expressão dar tanga, mas é antes um nome relativamente livre que se pode usar em frases como «Ele está na tanga, não vás nisso.», «Ena, aquele gajo é só tangas», «Grande tanga que ela te pregou!», etc. E, em vez de «troça», significa também (ou sobretudo) «patranha, ardil, intrujice» ou «conversa de chacha». Tanguear é «enganar, aldrabar, baratinar» — dar tanga, sim, senhor, mas com este significado. Já o dicionário da Academia de Ciência de Lisboa acrescenta este significado de «mentira» na expressão dar uma tanga, mas, como o Porto Editora, não tem para esta tanga uma entrada separada, nem lhe encontra uma etimologia diferente da palavra que eu creio apenas convergente e que refere uma diminuta peça de roupa[4].

Melhor está o Priberam, que separa a tanga-mentira da tanga-calção e a define como termo «informal» que significa «história fictícia e enganosa (ex.: isso é tudo uma grande tanga). = aldrabice, mentira, peta, treta.» Tenho muitas dúvidas, porém, que se deva juntar, como o Priberam o faz, esta tanga com a tanga que refere uma «moeda asiática de pequeno valor, usada na antiga Índia Portuguesa» e que vem de uma língua indiana (o sânscrito tangka, segundo o Priberam e o Porto Editora, ou o concani tang, segundo o dicionário da Academia de Ciências de Lisboa). 

Parece-me muito difícil explicar como se passa da peça de vestuário a mentira (mas percebe-se bem estar/ficar/deixar alguém de tanga no sentido de «miserável, sem vintém»). Já a deriva semântica da moeda para a converseta parece fazer mais sentido (dar tanga como «dar algo [conversa, neste caso] sem valor»), mas há pelo menos uma coisa fundamental que fica por explicar com esta etimologia: a coincidência com o calão de Buenos Aires, o lunfardo. Acho provável (mais uma vez, sem ter certeza nenhuma) que esta tanga tenha uma origem diferente da tanga-peça de vestuário e da tanga-moeda indiana. Como já aqui referi uma vez, «o calão português partilha com o calão espanhol vários termos, nomeadamente os oriundos do caló (que dá a palavra calão, aliás) e tem também vários termos em comum com o lunfardo rioplatense». Não encontro referência a tanga no sentido de «mentira» nem de «troça» no dicionário da Real Academia Espanhola, mas encontro-a em dicionários online de lunfardo, entre os quais o do site Todo Tango. Eis as várias aceções de tanga em lunfardo (escuso-me aqui de traduzir):

Tanga (lunf.) Arreglo de un asunto; artilugio para obtener ventajas; componenda; negociado; estratagema // empleado de parque de diversiones que simula ser público y participa de los juegos acertando, para animar a otros a también hacerlo// (pop.) bíkini muy reducida en la pieza inferior// (delinc.) ayudante de un estafador o de un ladrón carterista// estafa, fraude; ventaja que se obtiene mediante ardid o engaño. ir de tanga (delinc.) Acompañar a un punguista en el momento que comete sustraccíones.  

Como se vê, a definição de tanga coincide com a que proponho em português e acrescenta-lhe ainda outros significados que tanto podem derivar da aceção de «engano, ardil» como, pelo contrário, estar na sua origem: os de «falso membro do público dos parques de diversões» e de «ajudante de vigarista ou carteirista». 

Agora, tendo em conta a maior riqueza semântica de tanga no calão de Buenos Aires que no calão português[5], não será de supor que o termo é originário do lunfardo e que está antes diretamente relacionado com tango, que é, na origem, música dos bairros populares, e com os tangueros, que são — ou foram — a malevaje (malandragem) de Buenos Aires? Não é por acaso que lunfardo, o nome do calão local, significa «ladrão». Note-se que, em português, tanguista tanto significa «mentiroso» como «bailarino de tango» e tanguear tanto quer dizer «dançar o tango» como «endrominar».

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Notas

[1] O dicionário grego acrescenta uma segunda aceção, que corresponde ao português barra, e que mangas não tem em português: «uma pessoa experiente com competências reconhecidas e aplaudidas»: Ele é mangas no seu trabalho.

[2] É importante referir aqui um outro grupo de rufias gregos, os koutsavakia (singular koutsavaki). Embora muitas vezes se apresente mangas como sinónimo de koutsavaki, há quem distinga os dois grupos e afirme que, com rigor, a descrição da estranha indumentária da malandragem urbana acima descrita é dos koutsavakia, que são imediatamente anteriores aos mangas e estão na sua origem. Ver por exemplo este artigo, ilustrado com «talvez a única foto de um autêntico koutsavaki [em 1880]» (em grego, terão de usar um tradutor automático)  ou este (em inglês). A verdade é que, nas fotos de ambientes de rebético dos anos 1930, os mangas parecem antes… faias!

[3] Esta valsa foi suficientemente conhecida para ter sido regravada e reeditada nos anos 70 ou 80, num disco da série Melodias de Sempre, pelo qual a conheci. Não deixa de ser curioso que a pessoa que carregou a música para o YouTube confunda os apaches, rufiões da época, com os índios apaches (embora o nome da tribo esteja, ao que parece, na origem do nome do gangue). Obviamente, o termo depressa foi esquecido em português.

[4] Curiosamente, os dicionários não se entendem sobre a origem da tanga-vestuário: o Porto Editora, o dicionário da Academia de Ciências de Lisboa, o Priberam, o Michaelis e o Aulete (ou seja, os dicionários portugueses) dão como étimo o quimbundo (n)ganga, «pano», mas outros dicionários propõem antes o tupi tanga, «tanga» — é o caso do Dicionário da Real Academia Espanhola e do alemão Duden.

[5] Alguns acusar-me-ão de estar a aplicar às línguas um princípio da genética evolutiva, segundo o qual a diversidade genética é maior na zona de origem de uma espécie, mas juro que não era essa a minha ideia. Se bem que, agora que falam nisso, não deixa de ser uma ideia a explorar… (Mais uma tanga, dizem vocês e provavelmente com toda a razão…)

[Ambas as imagens da Wikipedia, autores desconhecidos e domínio público.]






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