Num artigo de 2 de fevereiro do blogue 2 Dedos de Conversa, Helena Araújo propõe o seguinte dilema: «Se uma casa estivesse a arder, e lá dentro estivesse um cão e o Hitler, e você só pudesse salvar um deles, qual deles salvava?» A sua própria resposta (que, diz ela, lhe veio «rápida e segura») é que o Hitler era muito pesado.
O Tintim, esse, não hesitou e salvou mesmo o Hitler de morrer afogado. Bom, como o Milou tinha desaparecido, não se lhe pôs o problema da escolha entre Hitler e um cão.
Esta imagem é d'O caso Girassol (1956) e, claro, não é Hitler que Tintim salva – mas parece, o que faz com que esta imagem circule na Internet com intenções humorísticas.
Isto fez-me pensar em John Suart Mill — mais concretamente, numa nota de rodapé de Utilitarianism. Escreve J. S. Mill a certo passo [traduzo eu do original]:
Cabe à ética dizer-nos quais são os nossos deveres, ou por que teste podemos conhecê-los; mas nenhum sistema de ética exige que o único motivo de tudo o que fazemos seja um sentimento de dever; pelo contrário, noventa e nove por cento de todas as nossas ações são realizadas por outros motivos, e está muito bem que o sejam, se a regra do dever não as condenar. É ainda mais injusto para com o utilitarismo que este equívoco específico se torne motivo de objeção, na medida em que os moralistas utilitaristas foram mais longe que quase todos os outros ao afirmar que o motivo nada tem a ver com a moralidade da ação, embora muito com o valor de quem age. Quem salva um semelhante de morrer afogado faz o que é moralmente correto, quer o seu motivo seja o dever ou a esperança de ser pago pelo trabalho a que deu; e quem trai o amigo que nele confia é culpado de crime, mesmo que o seu objetivo seja servir outro amigo com quem tem maiores obrigações.
A passagem não tem relação nenhuma com o dilema moral atrás apresentado, nem com o quadradinho de Hergé com que aqui brinco. Mas J. S. Mill faz uma interessante nota de rodapé a esta passagem do seu texto, em que responde a uma objeção à ideia acima apresentada:
Um oponente, cuja honestidade intelectual e moral reconheço com prazer (o Rev. J. Llewellyn Davis), objetou a esta passagem, dizendo: «É claro que o há de certo ou errado em salvar um homem de morrer afogado depende muito do motivo com que se o faz. Suponhamos que um tirano, quando um inimigo seu se lança ao mar para lhe escapar, o salva de morrer afogado apenas para poder infligir-lhe torturas mais requintadas — seria sensato descrever esse salvamento como “uma ação moralmente correta”? (…)»
Eu digo que uma pessoa que salve outra de morrer afogado para depois a torturar até à morte não difere apenas no motivo de outra pessoa que faz a mesma coisa por dever ou benevolência; é o próprio ato que é diferente. O salvamento do homem é, no caso em apreço, apenas o início necessário de um ato muito mais atroz do que seria deixá-lo afogar-se. Se o Sr. Davis tivesse dito: «O que há de certo ou errado em salvar um homem de morrer afogado depende muito — não do motivo, mas sim — da intenção», nenhum utilitarista discordaria dele. (…) A moralidade da ação depende inteiramente da intenção — isto é, do que quem age quer fazer. Mas o motivo, isto é, o sentimento que o leva a querer realizá-la, quando não faz diferença no ato, também não altera de modo nenhum a sua moralidade (…).
Não me adianto na discussão da relevância do motivo de uma ação para a moralidade da mesma e da distinção milliana entre motivo e intenção. Proponho antes modificar um pouco a reflexão proposta por Llewellyn Davis: imaginemos que, em vez de um tirano que salva um oponente de morrer afogado para depois lhe infligir horríveis torturas, se trata antes do adversário de um tirano que o salva para ele poder ser julgado e condenado pelos crimes que cometeu. Como avaliar agora o salvamento?
Quando publicou o dilema e a sua resposta no Facebook, a Helena teve, é claro, muitos comentários. Algumas das pessoas que comentaram o post da Helena defenderam o princípio ético fundamental de que, quando se trata de escolher quem deve viver e quem deve morrer, mesmo o pior humano tem prioridade em relação a um animal não humano — a estranha solidariedade da espécie, como dizia já não me lembro quem. Mas não é essa a única razão possível para decidir salvar Hitler: pode-se salvá-lo «para o entregar directamente num tribunal», como a Helena sugeria numa resposta a um comentário à sua publicação.
Se é moralmente mais correto ficar a olhar para a morte por afogamento dos hitleres deste mundo ou ir buscá-los à água para responderem em tribunal pelos seus crimes, eis uma boa discussão moral — tanto numa perspetiva deontológica (há um princípio ético universal de base que o justifique?) como numa perspetiva utilitária (condená-lo tem consequências mais positivas para a maior parte das pessoas que deixá-lo morrer?). Que opinais?
Lembro-me de alguém me contar — já não me lembro é quem foi… — que a sua mãe, quando estava grávida, tinha desejos de fígado cru — o que, segundo essa pessoa, nem devia espantar ninguém, porque o fígado era dos alimentos mais saudáveis que se podia comer. Mas cru? Porque não?
Ficou-me sempre na memória o louvor de um repasto de fígado cru de antílope que Rider Haggard faz em As Minas de Salomão, pela voz de Allan Quatermain, narrador e protagonista desse matricial romance de aventuras (deixo aqui a tradução de Eça de Queirós, com grafia original[1], para dar ainda mais exotismo a tão exótica passagem):
Andada uma milha, que nos levou muito tempo, chegámos emfim á extremidade do planalto do monte sobre o qual assentava o «bico do peito». E foi uma grande emoção. Por baixo de nós, adiante de nós, estava (devia estar) emfim essa região mysteriosa para além das serras, que nós vinhamos demandando:—mas toda ella se occultava sob um denso nevoeiro. Alli ficámos pois repousando, esperando. Pouco a pouco, as camadas mais altas da nevoa foram-se desfazendo. Avistámos então um pendor da serra, muito dôce e todo coberto de neve. Depois outras camadas de nevoeiro mais abaixo clarearam; e appareceu aos nossos olhos famintos uma campina de herva verde, um regato correndo através, e á beira d’agua, deitados ou pastando, uns dez ou doze animaes que nos pareceram antilopes.
A nossa alegria foi como a d’uma resurreição. Caça! Alli estava caça para comer, e deliciosa! Era a salvação, era a vida! A difficuldade era caçar—essa caça!... Lembro-me que no nosso immenso alvoroço tivemos uma rapida e atarantada discussão, em voz baixa e tremula—se deviamos aproximar-nos da caça ou fazer fogo d’alli, se deviamos usar as carabinas Winchester ou a «Express»! Indecisão terrivel—porque de acertar ou falhar dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentassemos atravessar o pendor de neve, podiamos espantar o rebanho. E a carabina «Express», apesar d’um alcance inferior, era preferivel—porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antilopes.
Emfim fizemos fogo, todos a um tempo, com um estampido que rolou tremendamente nas quebradas dos montes. O fumo clareou. E eis que, alegria sem par! —vemos um dos animaes por terra esperneando furiosamente. Berrámos de puro gozo. Estavamos salvos! Salvos! De fome já não morriamos! Corremos aos trambulhões pela neve abaixo—e em poucos momentos tinhamos nas mãos os figados e o coração do animal, quentes e fumegando!
Mas surgia uma difficuldade. Sem lenha, sem lume, como assar a caça?
— Gente faminta não tem exigencias! Gritou excitadamente o capitão John. A ella, e crúa!
Não restava outra solução—e não nos pareceu repugnante. Arrefecemos as visceras na neve, lavámol-as na agua corrente—e devorámol-as com voracidade! Parece horrivel—mas confesso que aquella carne crúa me soube divinamente! D’ahi a um quarto de hora, que mudança! Voltára-nos a vida, o vigor! O pulso batia outra vez, forte e regular. Eu por mim sentia positivamente o sangue degelar-se, correr-me dentro das veias!
Ao que parece, o consumo de fígado cru tornou-se uma moda nos últimos tempos, devido, sobretudo, à promoção que dele fazem alguns influencers, mas, se é verdade que o fígado é um alimento rico em vitaminas e minerais que não se encontram frequentemente em muitas dietas, também é verdade que o seu consumo regular pode resultar em perigos para a saúde — e não só os que advêm do consumo de qualquer carne crua (ver o que explica sobre o tema uma dietista [em inglês]). Em geral, os médicos aconselham moderação no consumo de fígado.
Na Dinamarca, come-se muita pasta de fígado, como aliás nos outros países do norte da Europa. A pasta de fígado foi introduzida na Dinamarca em meados do séc. XIX, inicialmente como manjar de luxo, a que só as famílias muito ricas tinham acesso. No início do século XX, porém, com o aumento da produção de suínos para exportação de bacon, o preço do fígado desceu muito e a pasta de fígado tornou-se mais acessível e foi passando cada vez mais a fazer parte dos lanches dos operários dinamarqueses, até acabar por se tornar no produto de grande consumo que atualmente é, um dos condutos mais usados nas sandes abertas de pão de centeio que praticamente todos os dinamarqueses almoçam. Mas é praticamente só em pasta que se come o fígado na Dinamarca. Ainda se encontra às vezes fígado e coração nos supermercados, mas é comida que só algumas pessoas mais velhas comem muito de vez em quando: as novas gerações nunca provaram vísceras, nem querem provar.
Tenho, aliás, a ideia — perfeitamente incomprovada, note-se — que, à medida que uma sociedade vai enriquecendo, as gorduras e as vísceras dos animais vão progressivamente sendo substituídas por carne limpa. Talvez seja só uma impressão minha, mas não me parece que seja só aqui na Dinamarca que as gerações mais jovens que a minha deixaram de comer vísceras e toucinhos. Creio que se passa o mesmo em todos os países mais ricos. Os pratos tradicionais com vísceras, que existem em todo o lado, comem-se cada vez menos. Em Portugal, quem — e onde — come hoje coiratos, rins e fressura? Quem é que come iscas hoje em dia, mesmo em Lisboa, onde podem ser consideradas um dos poucos pratos típicos da cidade?
E eis-nos chegados às iscas lisboetas, que foram a motivação primeira deste texto, antes de ele, por sua própria vontade, se ter alargado, e muito, a outros fígados. E a ideia de explorar o tema das iscas veio- me de um fado: o «Fado das Iscas», que conheço desde miúdo e que me veio no outro dia à memória:
No tempo das patuscadas
Das guitarras e touradas
Das hortas, do carrascão
Eram as iscas o prato
De mais consumo e barato
Na vida dum cidadão
E ninguém se envergonhava
Toda a gente que passava
Entrava nessas vielas
Sentia-se a gente bem
Sendo simples, um vintém
Trinta réis se eram com elas
Se ao longe vinha um parceiro
E o cheirinho lhes sentia
Até mesmo apetecia
Comê-las só p'lo cheiro
E a sua fama foi tal;
O povo então era vê-lo:
Travessa do Cotovelo
E Rua do Arsenal
Hoje tudo isso mudou
A taberninha acabou
Desapareceram os becos
Os cocheiros são choferes
Vigaristas suteneres
E os casqueiros papo-secos
Se os meninos odaliscas
Comessem um prato d'iscas
Daquelas bem temperadas
Morriam de indigestão
Não bebendo um garrafão
D'água das Pedras Salgadas
É claro, não sabia a letra toda de cor. Ao procurá-la na internet, descobri, num blogue indispensável a quem se interesse pelo fado clássico, que este «Fado das Iscas» tem letra de José de Oliveira Cosme e música de Jaime Mendes e foi criação de Álvaro Pereira na revista Coração Português em 1928. Aqui fica uma gravação de Álvaro Pereira de 1962.
Ao pesquisar este fado, encontrei no mesmo blogue outro fado com o mesmo tema — e o mesmo título. Trata-se de um fado de Lourenço Rodrigues e Raúl Ferrão, cantado por Hermínia Silva, que o estreou na revista Iscas com Elas, precisamente, em 1938 (aqui, numa gravação de 1957).
Noutros tempos da ramboia
Metia sempre tipoia
Os tascos tinham beleza
Davam gosto as berzundelas
Com conserva à portuguesa
E as belas iscas com elas
As iscas sabiam bem
Sem elas era um vintém
Quando metia batatas
Trinta reis era um pratinho;
E um tipo nessas frescatas
Enchia sempre o papinho
Belas iscas do Alfaia
E da Rua da Atalaia
Era um petisco burguês
Tinha um sabor sem igual
Comido no Alvarez
Da Rua do Arsenal
Uma isquinha a preceito
Chega a fazer bem ao peito
Aquele cheirinho a isca
Até regala os mortais
A gente quando a petisca
Ai, no fim chora por mais
Como veem, este fado faz também referência à Rua do Arsenal, referindo até o nome de um restaurante — ou do seu proprietário: o Alvarez. Mas, segundo este fado, as iscas não se comiam só no Cais do Sodré — também no Bairro Alto, na Rua da Atalaia — e na Travessa da Queimada, se o Alfaia daquela altura era o mesmo que há hoje. A informação sobre o preço das iscas coincide, no fado da Hermínia, com a do fado de Álvaro Pereira: um vintém só as iscas, 30 réis com batatas. Pelos vistos, os preços mantiveram-se estáveis nos dez anos que separam os dois fados.
Ouvi falar várias vezes de restaurantes de iscas do Bairro Alto, e, por curiosidade, resolvi investigar se era verdade o que me tinham contado: que os pratos estava pregados às mesas e os talheres também presos com correntes; e que o empregado vinha com um balde de água e um pano para os lavar e depois com uma panela de iscas para o encher para o cliente seguinte — uma história que me sempre me pareceu algo fantasiosa.
Começarei pelas iscas, as saborosas iscas com elas e semelas. Semelas porque, em certas tascas, o letreiro que as anunciava juntava as palavras sem e elas numa só. Custavam um vintém sem elas, e trinta réis com elas, ou seja com batatas cozidas e cortadas às rodas, que lhes davam um sabor particular (…) O galego que confeccionava o fígado (…) de que se faziam as iscas, armado de uma faca enorme e espalmada como as que os judeus empregam para imolar as reses no matadouro, sabia cortá-lo em folhas de uma espessura transparente, com grande perícia e habilidade, espalmando a mão esquerda sobre o fígado sanguinolento e abrindo-o finamente com o facalhão. As iscas transitavam deste para um alguidarão onde tinham previamente feito o escabeche, ou salmoura de vinagre, raspas de baço, alho, louro, sal e pimenta e outros ingredientes e temperos, ficando ali a aboborar largo tempo, tapado o alguidar com uma tampa de madeira e movido o seu conteúdo, de quando em quando, com um enorme e comprido garfo de ferro, que servia para arremessar depois as iscas à frigideira sobre a banha de porco que fervia. A banha, tinha-a o galego perto, em grandes boiões de barro, de onde a extraía com uma monstruosa colher de pau, às vezes até só com os dedos, e a frigideira só lá de tempos a tempos se lavava, acumulando os resíduos das iscas de muitos meses, que vinham a dar o seu particular às iscas que começavam a ferver e eram, depois passadas no riquíssimo e apetitoso molho, estiradas com o citado garfo no pratinho, depois de reduzidas na frigideira, com o mesmo garfo, a exíguas dimensões. As batatas estavam cortadas à parte, no tacho onde haviam sido cozidas, e eram espalhadas à mão sobre o pratinho.
- Mais uma com elas! Bai um de conserva! - Gritava o criado, no meio dos fregueses, em mangas de camisa, grandes sapatorros, sem gravata e com um barretinho de cores enfiado no alto da cabeça.
- Bai! Bai! - Respondia o cozinheiro retirando as iscas do alguidar para as levar à frigideira (…).
Ninguém as comia em família com mais gosto, e só os galegos lhes davam aquele precioso tique saboroso que apenas tinha como rival o cheiro particular do petisco, o qual atulhava as ventas do freguês e o atraía ao antro, lá de longe, visto que as vizinhanças da tasca se impregnavam do mágico odor a que ninguém resistia. A casa das iscas era manhosa e acanhada, com os seus bancos corridos e mesas de madeira, às vezes sem toalha, e os garfos pendiam, em algumas delas, de correntes que os ligavam às mesas, não fossem os fregueses safar-se com eles após o repasto.
Parece então que os pratos pregados à mesa lavados in loco surgem do exagero próprio dos mitos, mas os talheres presos com correntes são históricos. Pedro Manuel Pereira da Silva dá também informação mais detalhada sobre a localização dessas casas das iscas:
Na esmagadora maioria dos casos, as ditas Casas das Iscas estavam dispersas por toda a cidade (...). Algumas destas casas tornaram-se muito afamadas, como é o caso do Marreco das Iscas ao Salitre, junto ao Teatro Variedades, a Magina, às Portas de Santo Antão, ou a da Travessa do Cotovelo na esquina com a Rua do Arsenal, onde as Iscas (também designadas em calão de pelintras como «bifes de cabeça chata» ou «bifes sombrios») eram comidas de pé ao balcão e sem garfo, à maneira do moderno prego ou bifana, ou a da Travessa de S. Domingos e da Travessa da Queimada no Bairro Alto e eram geridas por trabalhadores da Galiza. Os galegos, com seu ar rústico, o seu estilo despachado e a sua pronúncia carregada, eram conhecidos por serem de entre as comunidades da capital aquela que se dedicava aos trabalhos mais pesados como moços de fretes, aguadeiros ou proprietários e empregados das denominadas Casas das Iscas. De acordo com o jornal Diário de Lisboa de 22 de Abril de 1944, a última Casa das Iscas a funcionar em Lisboa, na Travessa da Água em Flor nº 165, no Bairro Alto, fechou as portas em 1943, tendo o edifício sido posteriormente demolido.
Fiquei também a saber, à leitura do texto de Pedro Manuel Pereira da Silva, que as iscas vieram substituir a anterior chanfana, que não era o que hoje se conhece com esse nome na Beira, mas antes fressura preparada sensivelmente como as iscas vieram depois a ser preparadas e que era, no séc. XVIII, um prato muito consumido em Lisboa. Eis como Nicolau Tolentino descreve essa chanfana[2]:
«Perguntando o Príncipe do Brasil D. José — Que cousa era chanfana?»
Comprada em asqueroso matadoiro
Sanguinosa forçura, quente, e inteira,
E cortada por gorda taverneira,
Cujo cachaço adorna um cordão d'oiro;
Cabeças de alho com vinagre e loiro,
E alguns carvões, que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira,
C'os indigestos figados de touro;
Suavissimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o dêmo o atura;
Isto é chanfana, e sei quanto ella custa;
Deu-me o berço, dar-me-hia a sepultura,
A não valer-me a vossa mão augusta.
Mas deixemos esse sarapatel e voltemos aos fígados. A minha experiência é que não há maneira de tirar ao fígado o sabor a fígado, a não ser misturando-o com tanto toucinho ou carne de porco e outros ingredientes que o fígado se torne minoritário, como nos pâtés e terrinas. E mesmo assim… Cá em casa, ninguém, tirando eu, gosta de fígado; e têm sido bastante vãos os meus esforços de lhe disfarçar o sabor do fígado com caris e molhos... Pessoalmente, se o fígado é bom, nem é preparado à portuguesa que mais gosto dele: prefiro-o cortado em fatias de uns dois centímetros de largura, só temperadas com sal e pimenta e salteadas em manteiga — tendo o cuidado de deixar a carne rosada no meio! — e salpicadas no fim com alho picado muito fininho (espremido no espremedor de alho) e umas gotas de vinho da Madeira só um meio minutinho antes de as tirar do lume.
E sobre fígado, por agora é tudo.
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[1] De facto, é uma tradução tão livre que talvez seja melhor chamar-lhe reescrita. Não sofre, pelo menos, de um mal comum das traduções, o excesso de «apego» ao original — e nem de deselegância. Um exemplo, só para verem onde quero chegar:
Here again was a question. The Winchester repeaters—of which we had two, Umbopa carrying poor Ventvögel’s as well as his own—were sighted up to a thousand yards, whereas the expresses were only sighted to three hundred and fifty, beyond which distance shooting with them was more or less guess-work. On the other hand, if they did hit, the express bullets, being “expanding,” were much more likely to bring the game down. It was a knotty point, but I made up my mind that we must risk it and use the expresses.
Lembro-me que no nosso immenso alvoroço tivemos uma rapida e atarantada discussão, em voz baixa e tremula—se deviamos aproximar-nos da caça ou fazer fogo d’alli, se deviamos usar as carabinas Winchester ou a «Express»! Indecisão terrivel—porque de acertar ou falhar dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentassemos atravessar o pendor de neve, podiamos espantar o rebanho. E a carabina «Express», apesar d’um alcance inferior, era preferivel—porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antilopes.
[2] Podem ler aqui outras descrições dessa mesma chanfana por Bocage e outros poetas da época.
Em 1966, Wilson Picket lançou “634-5789 (Soulsville, U.S.A.)”, de Eddie Floyd e Steve Cropper. Mais tarde, tanto Eddie Floyd (em 1967) como Steve Cropper (em 1982) gravaram também as suas próprias versões; e Steve Cropper toca guitarra em todas elas, claro está.
Agora, este número de telefone (ou quase – sem os dois primeiros algarismos, pronto...) tinha já sido utilizado no título e na letra de outra canção de soul telefónica, se se pode dizer assim: o tema "Beechwood 4-5789", de Marvin Gaye, Mickey Stevenson e George Gordy, que as Marvelettes tinham gravado em 1962.
Na canção das Marvelettes, usa-se ainda o antigo sistema de «telephone exchange names», em que as duas primeiras letras de Beechwood fazem parte do número. Como se pode ver no disco aqui ao lado, BE correspondem a 23, pelo haveria que discar 234–5789. No início dos anos 60, as letras iniciais dos números de telefone foram substituídas pelos números correspondentes e o 63 da canção de Picket corresponde a ME, Memphis, onde se situavam a sede e os estúdios da editora discográfica Stax, para a qual gravaram todos os artistas mais famosos da chamada Southern Soul, numa área por isso mesmo conhecida como Soulsville.
If you need a little lovin'
Call on me...(alright)
If you want a little huggin'
Call on me baby...(mmhmm)
Oh I'll be right here at home.
All you gotta do is pick up the telephone and dial now
6-3-4-5-7-8-9 (that's my number!)
6-3-4-5-7-8-9
And if you need a little huggin'
Call on me...(that's all you gotta do now)
And if you want some kissin'
Call on me baby...(all right!)
No more lonely nights, when you'll be alone.
All you gotta do is pick up your telephone and dial now...
A canção das Marvelettes não é muito diferente no conteúdo: basicamente, dizem ambas «telefona-me quando quiseres, estou ao teu inteiro dispor». No entanto, se na canção de Picket nada esclarece que o apelo se dirige a uma pessoa específica (pode pensar-se nela até como uma oferta pública de serviços… românticos), já na canção das Marvelettes há referência a uma pessoa concreta que se conheceu (ou viu apenas) num baile e que fora demasiado tímido para tomar a iniciativa de se dirigir à protagonista da canção.
You can have this dance with me
You can hold my hand and
Whisper in my ear sweet words that I love to hear
Oh, baby
Don't be shy (don't be shy)
Just take your time (just take your time)
I'd like to get to know you (like to get to know you) I'd like to make you mine (like to make you mine)
«Na nossa profissão», disse-me uma vez uma enfermeira, quando comecei a trabalhar no setor da saúde, «aprende-se a encarar a morte como uma coisa natural, que é uma coisa que a maior parte das pessoas não faz, não consegue fazer. Mas corremos também o risco de nos tornar cínicos, de deixar de dar à morte a importância que tem, de chegar a galhofar com ela; e não se deve… Não se deve.»
Tentemos ter sempre presente: a morte é o acontecimento mais importante da vida de uma pessoa.
🙟🙞🙜🙝
Tanatopraxia é uma palavra demasiado pomposa, que tenho dificuldade em relacionar com o trabalho simples que eu conheço: talvez pôr uma fralda, talvez retirar uma algália, lavar o corpo, talvez barbear, pentear, vestir o corpo, talvez calçá-lo. Em dinamarquês, diz-se «gøre i stand» e nunca aprendi como se diz em português normal — ou em português de enfermagem — porque esse trabalho nunca fez parte da minha vida em Portugal. «Gøre i stand» traduz-se, em quase todos os contextos, por «arranjar» ou «preparar». É só isso.
🙟🙞🙜🙝
Tem-se pena das pessoas que padecem e mais ainda se se lhes acompanha de perto o sofrimento; e deixa-se de ter pena delas quando o termina o penar. Ouvi uma colega dizer de uma recém-falecida: «Estava mais bonita. Nunca lhe tido conhecido aquela expressão de sossego.»
🙟🙞🙜🙝
Mikhail Aleksandrovich Vrubel: Tamara no caixão, 1891 (excerto)
Já quis, mas já não quero, decidir o que quero que façam de mim quando eu morrer. Nunca pensei em escolher a roupa com que quero vestido o meu corpo, como há quem faça («calça, culote, paletó e almofadinha», pede a famosa canção de João de Aquino e Paulo César Pinheiro, e vesti uma vez um defunto de traje de gala, com casaca de abas de grilo…); mas pensei às vezes em escolher algum texto ou uma canção para o meu funeral; ou deixar insólitas indicações para a ocorrência, como Mário de Sá-Carneiro, que queria que lhe pusessem o caixão sobre um burro ajaezado à andaluza...
Ora!... O funeral é uma das cerimónias importantes da nossa vida, é certo, mas é uma cerimónia em que, infelizmente?, já não vamos a tempo de participar. Que escolha quem fica como o quer.