A Karen, a minha mulher, está com paludismo – ou malária, como é aqui mais conhecida a doença. Já é a segunda vez, aliás, que ela apanha essa porcaria. E há aqui um mistério…
Bom, que ela apanhe a doença não tem nada de misterioso. A malária é endémica na região, toda a gente apanha malária… ou quase. Os miúdos e eu, por exemplo, felizmente ainda não apanhámos. Em parte, por sorte, provavelmente; em parte porque eu tenho muito cuidado em não deixar entrar mosquitos aqui em casa; e em parte porque vivemos num ambiente relativamente protegido. Os mosquitos que transportam o parasita da malária não voam muito alto e esta espécie de fortaleza onde nós vivemos está separada por muros altos do resto do bairro, que é donde eles têm mais possibilidades de nos trazer as detestáveis bichezas. O mistério é, então: por que é que a Karen apanha malária e nós não?
O plasmódio que causa a malária tem um período de incubação de cerca de duas semanas e, quando fazemos as contas, de ambas as vezes é quase certo que ela a apanhou aqui. E é isso que é estranho. Por alguma razão que eu não sei explicar, os mosquitos preferem sempre, sempre preferiram, o meu sangue ao dela. Onde há mosquitos, sou sempre muito mais picado do que ela. Se houvesse mosquitos a esconderem-se no quarto à espera de a gente estar a dormir para nos ferrarem, haviam de me picar mais a mim do que a ela, com toda a certeza. Além disso, já desde Outubro, que é quando começa aqui o calor, que dormimos sempre com o ar condicionado ligado, e os mosquitos não costumam gostar de ar condicionado... O facto é que ela foi picada. Porque sentiu as picadas, mas, sobretudo, porque está com malária, e a malária não se apanha a comer carne de porco mal lavada, como dizia um empregado que nós tivemos na Alta Zambézia…
A partir das 7:30 ou 8:00 da noite, que é quando os miúdos vão para a cama, fechamos sempre a porta que divide a parte da casa onde estão os quartos e o meu escritório da cozinha e da sala de estar, precisamente para não se perder o fresquinho do ar condicionado nos quartos. Muitas noites, enquanto eu fico aqui a escrever, a Karen vai para a sala ver televisão. A televisão é uma coisa nova cá em casa, e é coisa nova na nossa família – tanto para os miúdos como para mim e para a Karen. Nunca nenhum de nós teve televisão em solteiro, e, depois de casados, também nos recusámos sempre a ter televisão. Há uns três ou quatro anos, em Copenhaga, os tipos da televisão não nos acreditaram quando, ao exigirem-nos uma pipa de massa em taxas de televisão atrasadas, nós lhes respondemos que não víamos razão para pagar taxa por uma coisa que não tínhamos. “Não têm televisão?!”, disse o homem das taxas à Karen, ao telefone. “Não pode ser, não há ninguém que não tenha televisão…” E tinha razão. É só uma questão de esperar o suficiente. Agora, sim, já temos televisão, como toda a gente… E o resultado é este:
O mais provável é que seja lá em baixo que os mosquitos lhe injectem a doença, enquanto ela está a ver televisão. E eu, na minha escrita, aqui em cima no escritório, estou protegido. O que prova que a escrita, afinal, não é uma actividade tão malsã como se julga; e que a televisão, como se sabe há muito tempo, só faz mal às pessoas. Pode até ser responsável da transmissão de malária!
É claro, agora que descobri como a televisão contribui para a propagação do paludismo, a principal causa de morte do planeta, tenho de revelar ao mundo a minha fantástica descoberta. O melhor é mandar um artigo para o Lancet. Os gajos eram capazes de aceitar. Lembro-me de que há uns anos um amigo me mandou um artigo de um tal Kesteloot, publicado nessa revista, em que este investigador, para explicar o mistério da elevada taxa de mortalidade das mulheres dinamarquesas, de que o vício do tabaco não deve ser a menor das causas, dizia que a altíssima percentagem de fumadoras na Dinamarca se devia à (má) influência da rainha “como modelo de comportamento”. Hão-de concordar que a minha tese sobre a influência da televisão na propagação da malária não tem de modo nenhum menos cientificidade do que a teoria de Kesteloot – e tem seguramente mais interesse para o futuro da humanidade.
Agora um aparte, baixinho: Eu fiquei todo contente quando li o tal artigo no Lancet. A sério. Republicano empedernido que sou, a única ocasião em que não exijo rigor a um artigo científico é quando é para dizer mal de um(a) monarca…
23/02/08
21/02/08
O corrector horto gráfico
O corrector horto gráfico
Que vinha comeu PC
Ele em contra os erros todos
Que uma pessoa não vê
Soca rego num sinal
E ele em segui da medis
Noteis tu que eu escrevi
Os erros todos que eu fixe
E pás palavras e radas*
Ele propõe mãe geral
Formas correctas que eus colho
E cu rijas que tão mal
Das muitas Grã desajudas
Que o computa dor me dá
A de corri giros erros
É das maiores que à.
[O poema inspira-se (a primeira quadra é quase uma tradução, se se pode traduzir um poema assim...) em “The Spell-Checker Poem, Candidate for a Pullet Surprise” de Mark Eckman e Jerrold H. Zar)
_____________
*Eu confesso que antes de escrever este texto não fazia ideia que a palavra rada existia em português. Conhecia rade, em francês, que é a sua palavra mãe, mas não fazia ideia que se podia também chamar assim em português a um “porto abrigado por terras mais ou menos altas”, como explica o meu dicionário...
Que vinha comeu PC
Ele em contra os erros todos
Que uma pessoa não vê
Soca rego num sinal
E ele em segui da medis
Noteis tu que eu escrevi
Os erros todos que eu fixe
E pás palavras e radas*
Ele propõe mãe geral
Formas correctas que eus colho
E cu rijas que tão mal
Das muitas Grã desajudas
Que o computa dor me dá
A de corri giros erros
É das maiores que à.
[O poema inspira-se (a primeira quadra é quase uma tradução, se se pode traduzir um poema assim...) em “The Spell-Checker Poem, Candidate for a Pullet Surprise” de Mark Eckman e Jerrold H. Zar)
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*Eu confesso que antes de escrever este texto não fazia ideia que a palavra rada existia em português. Conhecia rade, em francês, que é a sua palavra mãe, mas não fazia ideia que se podia também chamar assim em português a um “porto abrigado por terras mais ou menos altas”, como explica o meu dicionário...
20/02/08
Blasfémia, disse voss’ mercê? (Mais um panfleto anti-religioso. O último, prometo…)
Por incrível que possa parecer, há, em pleno ano 8º do século 21, uma quantidade de países com religião de estado. Na Dinamarca, por exemplo, o §4 da constituição consagra a igreja luterana-evangélica como religião da nação, que é, “nessa condição, apoiada pelo Estado”. Quer dizer, se fosse só a Dinamarca… Há 20 países que reconhecem o cristianismo como religião oficial, 27 países oficialmente muçulmanos, 6 onde o budismo é religião de estado. Como saberão também, há vários países em que a blasfémia é um crime – na Alemanha, para não ir mais longe, o parágrafo 166 do código penal sanciona a blasfémia.
Pelo amor de Deus! Valham-me os anjinhos todos do céu! Então mas isto admite-se? Admitir que alguém possa ser processado por ofensas a uma divindade ou às crenças de outra pessoa é, por Zeus!, meter-se num labirinto muito mais escuro do que o breu e sem saída absolutamente nenhuma. É que, se se parte do princípio de que o que é proibido é ofender a divindade e de que, à falta de melhor, chega a fé do crente para identificar a supernatural criatura, bom, a partir daí qualquer pessoa pode levar outra a tribunal por ofender os gnomos, os duendes ou os leprechauns; e se a ofensa não é encarada como sendo ao incomprovado criador, mas antes à fé daquele que nele crê, continuamos desgraçados, porque fés há tantas como há chapéus de palermas... Além de que falta sempre definir o que é ofensa e o que não é, o que também não é nada fácil…
“Está bem”, pode argumentar-se, “mas não compliques demasiado a questão: trata-se apenas de não dizer mal de nenhuma religião” – ou, numa formulação ainda mais imprecisa mas mais divulgada, “respeitar todas as religiões”.
Fixe! Digam-me lá então o que é, onde começa, o respeito por uma religião? E o que é, onde começa, o respeito por todas as religiões? Apesar de tudo é mais fácil respeitar apenas uma desrespeitando todas as outras, que é o que, sobretudo em privado, mas também muitas vezes em público, fazem todas as pessoas que professam uma religião… Não, a sério: o que é ofender Deus ou os que nele crêem? Dizer ou escrever que Deus é gordo, como Jorge Amado, naquele curioso diálogo de Dona Flor com Vadinho:
- E a terra, vista de lá de cima, como é, Vadinho?
- É toda azul, meu bem. (...)
- E Deus, como ele é?
- Deus é gordo.
Ou é antes dizer que Deus não existe?; que Deus é o ópio do povo?; que Deus é o resultado da ignorância?; que Deus é a manifestação simbólica de certos instintos inatos do ser humano?; que Deus morreu? Vamos tentar ordenar estas injuriosas afirmações por grandeza de blasfémia. É difícil, hem? Mas acho que dizer Deus não existe deve ser, ainda assim, a pior de todas. Eu, pessoalmente, ficava mais ofendido se me negassem a existência do que se me chamassem gordo. Mas não sei… Nem eu nem ninguém! Louvado seja o grande Manitu!
A biologia evolutiva (de facto, toda a biologia!), por exemplo, é uma blasfémia objectiva contra a fé cristã! É irreconciliável o saber que penosa e laboriosamente foi acumulando esta fascinante área de estudos e os irredimíveis disparates que dão conta da criação do mundo na maior parte das religiões (a adjectivação algo barroca mostra claramente a minha parcialidade, não é?). É mais blasfemo o Porque não sou cristão de Russell, o O mestre e Margarita de Bulgakov, os Versículos satânicos de Rushdie, Deus e o Estado, de Bakunine ou O fanatismo, ou Maomé, o profeta, de Voltaire? O Mein Kampf é obviamente contra as leis e as crenças da maior parte dos Europeus. Está proibido? Deve proibir-se? O que é se vai aceitar e o que é que se vai proibir por “atentado à fé de cada um”? O imperador Toyotomi Hideyoshi proibiu o cristianismo em 1587, por blasfemo, porque os missionários europeus andavam a ensinar aos japoneses que Deus era o Bem: “A nossa terra”, explicou ele na carta em que anunciava a proibição, “é a terra de Deus, e Deus é espírito. Tudo na natureza existe pelo espírito. Sem Deus, não há espiritualidade. Sem Deus, não há caminho. Deus reina em tempos de prosperidade como em tempos de declínio. Deus é positivo e negativo e incompreensível. Por isso, Deus é a origem de toda a existência.” Ora toma! Também afirmar que é o Criador que rege a vida dos homens é blasfemo, para quem acredite que são demiurgos e não o Criador que o fazem, como os iezídis. Muito provavelmente, é impossível fazer seja lá que afirmação for sobre Deus sem ferir os sentimentos de alguém. Donde que o tal respeito parece impossível, pelo menos se não guardarmos um rigoroso voto de silêncio. Ora francamente, que venha Wicca em meu auxílio, que já não sei mais a quem pedir ajuda!
Agora imaginem que eu, que não quero guardar votos de silêncio, digo que acreditar em Deus não tem ponta por onde se lhe pegue. Como qualquer outra afirmação sobre a divindade, isto fere, com certeza, muita gente. Pode ser. Mas é que isto é a minha convicção! Peço então estatuto de igualdade para o ateísmo relativamente às religiões todas e começo a levar a tribunal quem quer que diga que Deus existe, porque isso me ofende profundamente – e sabe Deus que é verdade!
Blasfémias? Ofensas? Que me acuda Malak Ta’us, o Anjo Pavão! Está tudo maluco! Ofende-se a Virgem Maria, ofende-se o profeta Maomé, Zoroastro provavelmente também, e ofende-se a Bíblia, o Corão e os Vedas. E A evolução das espécies, ninguém a ofende? Ora valham-nos Ceres e Minerva, senão quem é que nos pode valer?
Não sou contra as pessoas que professam as religiões, só contra as religiões que elas professam. As pessoas, essas, que o Pai do Céu lhes perdoe, porque não sabem o que fazem, e respeitar as convicções daqueles que nos rodeiam no nosso relacionamento directo com eles é uma questão elementar de bom senso. Ofender, provocar, não, não gosto disso. Ou então só em circunstâncias muito especiais… Mesmo os professores primários da terceira república francesa, que são a personificação mítica do anticlericalismo, tinham alguma noção de estratégia… Percebem? Não vou começar a dizer a todas as pessoas que eu conheço e que são religiosas que são parvas. Mal feito fora… Também não ponho a tocar Ornette Coleman quando a minha sogra vem cá a casa – pela mesmíssima razão!
Mas quero ter o direito a escrever seja onde for que Jesus, se é que alguma vez existiu, não nasceu com certeza de uma virgem, porque não havia fecundação artificial naquela época; nem ressuscitou ao terceiro dia, porque três dias após a cessação das funções vitais não é possível reanimar uma pessoa, muito menos há dois mil anos, em que, pura e simplesmente, não existiam conhecimentos nem para reanimar quem tivesse morrido há dois minutos; e que muito menos subiu ao céu, porque naquela época não havia naves espaciais. Quero ter o direito a escrever seja onde for que a religião sempre trouxe ao mundo mais mal do que bem. Quero, numa palavra, ter o direito a escrever seja lá onde for que Deus não existe e que nos compete a nós, humanos, resolver os nossos problemas sem o divino a atrapalhar. Quero ter o direito a deixar bem claro que, para mim, bispos, muftis e gurus, é tudo a mesma camarilha; que quero uma república efectivamente laica, sem concordatas com autoridades religiosas absolutamente nenhumas, em que toda a gente pague os mesmos impostos sobre edifícios, sejam eles para fins de culto ou para armazenar batatas; e em que não se metam Krishna, Deus e Odin na legislação e nas campanhas eleitorais!
Sam Harris diz, num excelente texto, que, “embora a tolerância religiosa seja com certeza melhor do que a guerra religiosa, a tolerância também não deixa de ter os seus pontos fracos. O nosso medo de provocar ódio religioso tornou-nos incapazes de criticar ideias que são agora obviamente absurdas e cada vez mais maladptativas. E obrigou-nos também a mentir-nos a nós próprios – repetidamente e aos mais altos níveis – quanto à compatibilidade da fé religiosa com a racionalidade científica”.
É verdade que as tentativas de conciliar as duas, por exemplo atribuindo a cada uma um “departamento” diferente, como fez Stephen Jay Gould, desculpem lá, mas não funcionam – até porque, como tem sobejamente sido apontado, nem a religião pode abdicar de pronunciar-se sobre matérias de facto, nem se vê porque é que a ciência não tem a mesma capacidade e o mesmo dever que a religião de pronunciar-se sobre questões morais…
E então eu, como sou um bocadinho mais bruto, digo a mesma coisa que Sam Harris diz, mas de outra maneira – a religião, de cada vez que ela sai do seu lugar para se vir meter na vida pública, é nosso dever devolvê-la a onde ela pertence, que é o interior de cada um. Se é blasfémia insistir que Deus não existe e que as religiões não nos servem para nada a não ser para arranjar mais problemas, se isto é blasfémia, digo eu, então já nem é o direito à blasfémia o que eu defendo – é o dever de blasfémia!
Mas então, pá, está tudo maluco? Que nos acudam bhagat Kabir e os bhagats todos do Guru Granth Sahib!
Pelo amor de Deus! Valham-me os anjinhos todos do céu! Então mas isto admite-se? Admitir que alguém possa ser processado por ofensas a uma divindade ou às crenças de outra pessoa é, por Zeus!, meter-se num labirinto muito mais escuro do que o breu e sem saída absolutamente nenhuma. É que, se se parte do princípio de que o que é proibido é ofender a divindade e de que, à falta de melhor, chega a fé do crente para identificar a supernatural criatura, bom, a partir daí qualquer pessoa pode levar outra a tribunal por ofender os gnomos, os duendes ou os leprechauns; e se a ofensa não é encarada como sendo ao incomprovado criador, mas antes à fé daquele que nele crê, continuamos desgraçados, porque fés há tantas como há chapéus de palermas... Além de que falta sempre definir o que é ofensa e o que não é, o que também não é nada fácil…
“Está bem”, pode argumentar-se, “mas não compliques demasiado a questão: trata-se apenas de não dizer mal de nenhuma religião” – ou, numa formulação ainda mais imprecisa mas mais divulgada, “respeitar todas as religiões”.
Fixe! Digam-me lá então o que é, onde começa, o respeito por uma religião? E o que é, onde começa, o respeito por todas as religiões? Apesar de tudo é mais fácil respeitar apenas uma desrespeitando todas as outras, que é o que, sobretudo em privado, mas também muitas vezes em público, fazem todas as pessoas que professam uma religião… Não, a sério: o que é ofender Deus ou os que nele crêem? Dizer ou escrever que Deus é gordo, como Jorge Amado, naquele curioso diálogo de Dona Flor com Vadinho:
- E a terra, vista de lá de cima, como é, Vadinho?
- É toda azul, meu bem. (...)
- E Deus, como ele é?
- Deus é gordo.
Ou é antes dizer que Deus não existe?; que Deus é o ópio do povo?; que Deus é o resultado da ignorância?; que Deus é a manifestação simbólica de certos instintos inatos do ser humano?; que Deus morreu? Vamos tentar ordenar estas injuriosas afirmações por grandeza de blasfémia. É difícil, hem? Mas acho que dizer Deus não existe deve ser, ainda assim, a pior de todas. Eu, pessoalmente, ficava mais ofendido se me negassem a existência do que se me chamassem gordo. Mas não sei… Nem eu nem ninguém! Louvado seja o grande Manitu!
A biologia evolutiva (de facto, toda a biologia!), por exemplo, é uma blasfémia objectiva contra a fé cristã! É irreconciliável o saber que penosa e laboriosamente foi acumulando esta fascinante área de estudos e os irredimíveis disparates que dão conta da criação do mundo na maior parte das religiões (a adjectivação algo barroca mostra claramente a minha parcialidade, não é?). É mais blasfemo o Porque não sou cristão de Russell, o O mestre e Margarita de Bulgakov, os Versículos satânicos de Rushdie, Deus e o Estado, de Bakunine ou O fanatismo, ou Maomé, o profeta, de Voltaire? O Mein Kampf é obviamente contra as leis e as crenças da maior parte dos Europeus. Está proibido? Deve proibir-se? O que é se vai aceitar e o que é que se vai proibir por “atentado à fé de cada um”? O imperador Toyotomi Hideyoshi proibiu o cristianismo em 1587, por blasfemo, porque os missionários europeus andavam a ensinar aos japoneses que Deus era o Bem: “A nossa terra”, explicou ele na carta em que anunciava a proibição, “é a terra de Deus, e Deus é espírito. Tudo na natureza existe pelo espírito. Sem Deus, não há espiritualidade. Sem Deus, não há caminho. Deus reina em tempos de prosperidade como em tempos de declínio. Deus é positivo e negativo e incompreensível. Por isso, Deus é a origem de toda a existência.” Ora toma! Também afirmar que é o Criador que rege a vida dos homens é blasfemo, para quem acredite que são demiurgos e não o Criador que o fazem, como os iezídis. Muito provavelmente, é impossível fazer seja lá que afirmação for sobre Deus sem ferir os sentimentos de alguém. Donde que o tal respeito parece impossível, pelo menos se não guardarmos um rigoroso voto de silêncio. Ora francamente, que venha Wicca em meu auxílio, que já não sei mais a quem pedir ajuda!
Agora imaginem que eu, que não quero guardar votos de silêncio, digo que acreditar em Deus não tem ponta por onde se lhe pegue. Como qualquer outra afirmação sobre a divindade, isto fere, com certeza, muita gente. Pode ser. Mas é que isto é a minha convicção! Peço então estatuto de igualdade para o ateísmo relativamente às religiões todas e começo a levar a tribunal quem quer que diga que Deus existe, porque isso me ofende profundamente – e sabe Deus que é verdade!
Blasfémias? Ofensas? Que me acuda Malak Ta’us, o Anjo Pavão! Está tudo maluco! Ofende-se a Virgem Maria, ofende-se o profeta Maomé, Zoroastro provavelmente também, e ofende-se a Bíblia, o Corão e os Vedas. E A evolução das espécies, ninguém a ofende? Ora valham-nos Ceres e Minerva, senão quem é que nos pode valer?
Não sou contra as pessoas que professam as religiões, só contra as religiões que elas professam. As pessoas, essas, que o Pai do Céu lhes perdoe, porque não sabem o que fazem, e respeitar as convicções daqueles que nos rodeiam no nosso relacionamento directo com eles é uma questão elementar de bom senso. Ofender, provocar, não, não gosto disso. Ou então só em circunstâncias muito especiais… Mesmo os professores primários da terceira república francesa, que são a personificação mítica do anticlericalismo, tinham alguma noção de estratégia… Percebem? Não vou começar a dizer a todas as pessoas que eu conheço e que são religiosas que são parvas. Mal feito fora… Também não ponho a tocar Ornette Coleman quando a minha sogra vem cá a casa – pela mesmíssima razão!
Mas quero ter o direito a escrever seja onde for que Jesus, se é que alguma vez existiu, não nasceu com certeza de uma virgem, porque não havia fecundação artificial naquela época; nem ressuscitou ao terceiro dia, porque três dias após a cessação das funções vitais não é possível reanimar uma pessoa, muito menos há dois mil anos, em que, pura e simplesmente, não existiam conhecimentos nem para reanimar quem tivesse morrido há dois minutos; e que muito menos subiu ao céu, porque naquela época não havia naves espaciais. Quero ter o direito a escrever seja onde for que a religião sempre trouxe ao mundo mais mal do que bem. Quero, numa palavra, ter o direito a escrever seja lá onde for que Deus não existe e que nos compete a nós, humanos, resolver os nossos problemas sem o divino a atrapalhar. Quero ter o direito a deixar bem claro que, para mim, bispos, muftis e gurus, é tudo a mesma camarilha; que quero uma república efectivamente laica, sem concordatas com autoridades religiosas absolutamente nenhumas, em que toda a gente pague os mesmos impostos sobre edifícios, sejam eles para fins de culto ou para armazenar batatas; e em que não se metam Krishna, Deus e Odin na legislação e nas campanhas eleitorais!
Sam Harris diz, num excelente texto, que, “embora a tolerância religiosa seja com certeza melhor do que a guerra religiosa, a tolerância também não deixa de ter os seus pontos fracos. O nosso medo de provocar ódio religioso tornou-nos incapazes de criticar ideias que são agora obviamente absurdas e cada vez mais maladptativas. E obrigou-nos também a mentir-nos a nós próprios – repetidamente e aos mais altos níveis – quanto à compatibilidade da fé religiosa com a racionalidade científica”.
É verdade que as tentativas de conciliar as duas, por exemplo atribuindo a cada uma um “departamento” diferente, como fez Stephen Jay Gould, desculpem lá, mas não funcionam – até porque, como tem sobejamente sido apontado, nem a religião pode abdicar de pronunciar-se sobre matérias de facto, nem se vê porque é que a ciência não tem a mesma capacidade e o mesmo dever que a religião de pronunciar-se sobre questões morais…
E então eu, como sou um bocadinho mais bruto, digo a mesma coisa que Sam Harris diz, mas de outra maneira – a religião, de cada vez que ela sai do seu lugar para se vir meter na vida pública, é nosso dever devolvê-la a onde ela pertence, que é o interior de cada um. Se é blasfémia insistir que Deus não existe e que as religiões não nos servem para nada a não ser para arranjar mais problemas, se isto é blasfémia, digo eu, então já nem é o direito à blasfémia o que eu defendo – é o dever de blasfémia!
Mas então, pá, está tudo maluco? Que nos acudam bhagat Kabir e os bhagats todos do Guru Granth Sahib!
Cavalo verde, cibório e cancro: Não seja malcriado, está bem?
Um tipo de expressões curiosas e às vezes intraduzíveis literalmente (mas nunca literalmente intraduzíveis, note‑se) são as palavras tabus. O que é considerado ordinarice ou palavrão pode variar bastante não só de língua para língua, como de variante para variante da mesma língua. Em francês do Canadá, cavalo verde é um palavrão; tanto em francês do Canadá como em castelhano de Espanha, cibório (o vaso grande onde se guarda o santíssimo sacramento) também é uma bojarda; e em dinamarquês, cancro é uma palavra mesmo muito feia!
Trocando por miúdos: Joual* vert!, em francês do Québec, é uma palavrão leve, rural e antigo, que se pode usar como exclamação ou nas expressões mettre quelqu’un en beau joual vert ou être en beau joual vert, que significam, respectivamente” “arreliar alguém” ou “estar arreliado”; ciboire (pronunciado [cibuerre]) já é, também no francês do Canadá, um palavrão mais forte e copón, a palavra que lhe corresponde em castelhano, é um quantificador pouco cortês em Espanha, onde se diz que uma coisa é del copón como nós dizemos que é “do caralho” (pode dizer-se, por exemplo, sei lá, que “se armó una bronca del copón”); e kræft, “cancro” em dinamarquês (pronunciar [crraft]), é uma das poucas palavras “feias” que expressam fortemente, nesta língua, raiva, indignação, zanga em geral...
Não tenho ideia de como serão os palavrões em línguas distantes, mas é muito provável que venham, em todas as línguas das três áreas de vocabulário que os fornecem na nossa língua e nas que lhe são mais próximas: a sexualidade, a religião e a excreção**– com muito poucas excepções como o kræft dinamarquês...
A preponderância da sexualidade sobre a religião ou vice-versa varia de país para país, podendo até acontecer que haja países onde um desses campos de vocabulário não dê nunca origem a palavrões – que é o caso de Portugal, onde, como sabem, não há palavras feias relacionadas com a religião. Más notícias, portanto, para quem quer sempre ver na língua, em todos os seus aspectos, um reflexo da sociedade. Eu não acredito, sinceramente, que Portugal seja assim tão radicalmente menos religioso do que os outros países latinos. Mas basta atravessar a fronteira e já temos a hostia, o copón e mais umas quantas expressões menos limpas sobre a Virgem e Deus. Se continuarmos a atravessar fronteiras e formos até Itália, o número de expressões tabus que têm Deus ou a Virgem Maria como protagonista aumenta ainda mais. No francês europeu, em geral é mais como em português, e o sexo volta a predominar, embora em certas zonas seja também considerado tabu invocar em fúria (mais do que apenas em vão) o santo nome de Deus. O francês canadiano bate, no entanto, todos os recordes de palavrões de origem religiosa – para vos dar aqui a lista completa das correspondentes portuguesas das palavras mais descorteses em francês canadiano, temos, para além do já referido cibório, Cristo, virgem, baptismo, (santo) sacramento, hóstia (como em Espanha!) e cálice (o da missa, claro). Imaginem! Já os anglófonos, se é de exprimir arrelias que se trata, preferem, como nós, palavras relacionadas com sexo, mas também pode não ser bonito pronunciar o nome de Cristo, em certos contexto e com certas entoações...
E depois há também, como eu dizia, a excreção, que, nas línguas mais próximas, é uma área de expressões tabu mais consensual. Merda, por exemplo, é uma palavra tabu em todas as línguas que conheço – se bem que nunca seja um dos palavrões mais fortes.
Agora, da mesma maneira que variam as palavras tabu de país para país, também varia muito a atitude relativamente a essas palavras e a censura a que elas, mais ou menos oficialmente, são sujeitas nos meios de comunicação social. Portugal ou a Grã-Bretanha, por exemplo, têm ainda uma atitude muito conservadora no que diz respeito a palavrões e a melhor maneira de não ver uma canção difundida na rádio ou na televisão é pôr uma ou duas bojardas na letra... Já em França, nada de semelhante se passa, e muitos dos grandes autores de canções fizeram e fazem canções com palavrões, sem que isso choque seja lá quem for.
Além de predominar na rádio e na televisão, a atitude conservadora que referi acima reflecte‑se também em dicionários e correctores ortográficos. Não deixa de ser curioso que muitos dicionários e correctores ortográficos de português não tragam palavras tabus. O meu dicionário da Porto Editora de 2004 é o primeiro que tenho a trazer todas essas palavras, o que já é um avanço em relação à edição que eu tinha antes, de 2000, se não me engano, que ainda não as trazia. Aliás, traz até, como deve, sentidos tabus de palavras que não são palavrões, como tomates, por exemplo. A entrada cona é um bocado limitada, porque indica apenas o sentido de “vagina” e se esquece de expressões como ser um conas (ou um coninhas, ou um conas de sabão) ou ter uma cona muito funda, mas enfim, a próxima edição será com certeza melhor… O dicionário Priberam online conhece cu, vá lá mas, dos outros palavrões mais comuns, nem sombras…O meu corrector ortográfico, que é o Proofing Tools da Microsoft, de pudibundo que é, também não conhece essas palavras portuguesas. Curiosamente, reconhece as palavras tabus espanholas e francesas, mas desconhece, por exemplo, o inglês cunt, o que é muito estranho, porque as “palavras de quatro letras” inglesas há muito que se encontram em qualquer dicionário… O que irá na cabeça destes gajos da Microsoft?
Na minha, porém, sei eu bem o que vai… A relação que eu tenho (que muitas pessoas têm…) com estas palavras é tão estranha que eu juro que me fartei de discutir comigo mesmo sobre se seria ou não “apropriado” pôr este texto no meu blogue…
Atualização a 15 de Abril de 2013:
Trocando por miúdos: Joual* vert!, em francês do Québec, é uma palavrão leve, rural e antigo, que se pode usar como exclamação ou nas expressões mettre quelqu’un en beau joual vert ou être en beau joual vert, que significam, respectivamente” “arreliar alguém” ou “estar arreliado”; ciboire (pronunciado [cibuerre]) já é, também no francês do Canadá, um palavrão mais forte e copón, a palavra que lhe corresponde em castelhano, é um quantificador pouco cortês em Espanha, onde se diz que uma coisa é del copón como nós dizemos que é “do caralho” (pode dizer-se, por exemplo, sei lá, que “se armó una bronca del copón”); e kræft, “cancro” em dinamarquês (pronunciar [crraft]), é uma das poucas palavras “feias” que expressam fortemente, nesta língua, raiva, indignação, zanga em geral...
Não tenho ideia de como serão os palavrões em línguas distantes, mas é muito provável que venham, em todas as línguas das três áreas de vocabulário que os fornecem na nossa língua e nas que lhe são mais próximas: a sexualidade, a religião e a excreção**– com muito poucas excepções como o kræft dinamarquês...
A preponderância da sexualidade sobre a religião ou vice-versa varia de país para país, podendo até acontecer que haja países onde um desses campos de vocabulário não dê nunca origem a palavrões – que é o caso de Portugal, onde, como sabem, não há palavras feias relacionadas com a religião. Más notícias, portanto, para quem quer sempre ver na língua, em todos os seus aspectos, um reflexo da sociedade. Eu não acredito, sinceramente, que Portugal seja assim tão radicalmente menos religioso do que os outros países latinos. Mas basta atravessar a fronteira e já temos a hostia, o copón e mais umas quantas expressões menos limpas sobre a Virgem e Deus. Se continuarmos a atravessar fronteiras e formos até Itália, o número de expressões tabus que têm Deus ou a Virgem Maria como protagonista aumenta ainda mais. No francês europeu, em geral é mais como em português, e o sexo volta a predominar, embora em certas zonas seja também considerado tabu invocar em fúria (mais do que apenas em vão) o santo nome de Deus. O francês canadiano bate, no entanto, todos os recordes de palavrões de origem religiosa – para vos dar aqui a lista completa das correspondentes portuguesas das palavras mais descorteses em francês canadiano, temos, para além do já referido cibório, Cristo, virgem, baptismo, (santo) sacramento, hóstia (como em Espanha!) e cálice (o da missa, claro). Imaginem! Já os anglófonos, se é de exprimir arrelias que se trata, preferem, como nós, palavras relacionadas com sexo, mas também pode não ser bonito pronunciar o nome de Cristo, em certos contexto e com certas entoações...
E depois há também, como eu dizia, a excreção, que, nas línguas mais próximas, é uma área de expressões tabu mais consensual. Merda, por exemplo, é uma palavra tabu em todas as línguas que conheço – se bem que nunca seja um dos palavrões mais fortes.
Agora, da mesma maneira que variam as palavras tabu de país para país, também varia muito a atitude relativamente a essas palavras e a censura a que elas, mais ou menos oficialmente, são sujeitas nos meios de comunicação social. Portugal ou a Grã-Bretanha, por exemplo, têm ainda uma atitude muito conservadora no que diz respeito a palavrões e a melhor maneira de não ver uma canção difundida na rádio ou na televisão é pôr uma ou duas bojardas na letra... Já em França, nada de semelhante se passa, e muitos dos grandes autores de canções fizeram e fazem canções com palavrões, sem que isso choque seja lá quem for.
Além de predominar na rádio e na televisão, a atitude conservadora que referi acima reflecte‑se também em dicionários e correctores ortográficos. Não deixa de ser curioso que muitos dicionários e correctores ortográficos de português não tragam palavras tabus. O meu dicionário da Porto Editora de 2004 é o primeiro que tenho a trazer todas essas palavras, o que já é um avanço em relação à edição que eu tinha antes, de 2000, se não me engano, que ainda não as trazia. Aliás, traz até, como deve, sentidos tabus de palavras que não são palavrões, como tomates, por exemplo. A entrada cona é um bocado limitada, porque indica apenas o sentido de “vagina” e se esquece de expressões como ser um conas (ou um coninhas, ou um conas de sabão) ou ter uma cona muito funda, mas enfim, a próxima edição será com certeza melhor… O dicionário Priberam online conhece cu, vá lá mas, dos outros palavrões mais comuns, nem sombras…O meu corrector ortográfico, que é o Proofing Tools da Microsoft, de pudibundo que é, também não conhece essas palavras portuguesas. Curiosamente, reconhece as palavras tabus espanholas e francesas, mas desconhece, por exemplo, o inglês cunt, o que é muito estranho, porque as “palavras de quatro letras” inglesas há muito que se encontram em qualquer dicionário… O que irá na cabeça destes gajos da Microsoft?
Na minha, porém, sei eu bem o que vai… A relação que eu tenho (que muitas pessoas têm…) com estas palavras é tão estranha que eu juro que me fartei de discutir comigo mesmo sobre se seria ou não “apropriado” pôr este texto no meu blogue…
O dicionário Priberam em linha mudou muito desde 2008: agora conhece muitos palavrões! Tanto no Priberam como no Porto Editora em linha, porém, cona continua a ser apenas a vagina.
Atualização a 13 de maio de 2023:
O dicionário Priberam em linha tem agora as entradas conas e coninhas, embora não acrescente outros significados a cona. O meu Proofing Tools da Microsoft reconhece agora muito palavrões. Há evolução nos dicionários.
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*Joual é uma deformação canadiana de cheval. Por ser tão estranha e tão marcadamente canadiana, é esta palavra que dá, precisamente, o nome à variante dialectal canadiana: quando se fala um francês que se afasta do francês standard, marcado por expressões e uma pronúncia tão diferentes que muitos francófonos europeus não compreendem, diz‑se que se fala joual.
**Para um apanhado da questão, sem nada de muito surpreendente mas com bastante informação interessante sobre estudos concretos desta problemática, podem ler o artigo de Steven Pinker de 2007 “Why we curse. What the F***?”. Sei que o assunto é tratado também no seu último livro, The Stuff of Thought: Language as a Window Into Human Nature (Nova Iorque: Viking, 2007 ) mas não sei como, porque ainda não o li. Aqui em Chimoio, não se apanha, como dizem os moçambicanos.
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*Joual é uma deformação canadiana de cheval. Por ser tão estranha e tão marcadamente canadiana, é esta palavra que dá, precisamente, o nome à variante dialectal canadiana: quando se fala um francês que se afasta do francês standard, marcado por expressões e uma pronúncia tão diferentes que muitos francófonos europeus não compreendem, diz‑se que se fala joual.
**Para um apanhado da questão, sem nada de muito surpreendente mas com bastante informação interessante sobre estudos concretos desta problemática, podem ler o artigo de Steven Pinker de 2007 “Why we curse. What the F***?”. Sei que o assunto é tratado também no seu último livro, The Stuff of Thought: Language as a Window Into Human Nature (Nova Iorque: Viking, 2007 ) mas não sei como, porque ainda não o li. Aqui em Chimoio, não se apanha, como dizem os moçambicanos.
Do suicídio: nem a morte mata a vida…
A constatação de que a prática do suicídio é uma constante de todas as sociedades de todos os tempos parece constituir uma objecção óbvia ao carácter absoluto da pulsão de sobrevivência. Foi com base nesse facto simples que um amigo meu, uma vez, em animada conversa nocturna, rebateu a minha afirmação de que, seja lá onde e quando for, ninguém em seu perfeito juízo prefere a morte à vida.
“Não aceito!”, disse ele. “E quem prefere morrer para salvar um ente querido, se tem de fazer essa escolha? E quem, por razões de honra ou de dever, dá a vida pelo que considera mais importante do que ela – a sua pátria ou os seus valores, por exemplo? E quem acha tão miserável a sua existência que prefere, pura e simplesmente, acabar com ela?”
Fiquei sem saber que boa resposta lhe dar. O argumento imediato foi que o suicídio é um fenómeno tão marginal nas coisas humanas que não pode ser considerado uma prática humana essencial – ao contrário da vontade de preservar a vida. Mas foi uma resposta que não me satisfez. Nunca fui adepto de regras que, para funcionarem, admitem a excepção. Bom, desprezar o que é muito periférico numa verdade genérica, digamos assim, não é completamente desprovido de sentido. Dizer que os seres humanos preferem sempre a morte à vida por muito que alguns se suicidem é como dizer que os cães são sempre quadrúpedes, mesmo quando um acidente qualquer, ou uma malformação, deixa um cão sem uma das patas. Mas eu intuía, sem o conseguir racionalizar, que o suicídio é, nos seres humanos, um fenómeno de um tipo diferente da deformidade congénita ou da amputação – por um lado, porque extremamente mais persistente e, por outro, porque é uma escolha em vez de um acidente. E foi isso, precisamente, que o meu amigo argumentou:
“O suicídio, meu amigo, não é uma doença. É um acto voluntário!”
Tentei então argumentar que os suicídios que ele invocava não chegavam a ser uma escolha da morte relativamente à vida:
“Tens de ver que, no caso de alguém dar a vida por outrem, não é de escolher a morte que se trata – mas antes de uma escolha de que vidas preservar. Continua a ser a vida que se prefere à morte. E isto é ainda mais verdade se alguém aceitar morrer para salvar mais do que uma pessoa.”
O problema desta argumentação é que descentra a questão da preservação da vida: eu teria então de admitir, retorquiu o meu amigo, que a pulsão da sobrevivência que eu defendia ser comum a todos os seres humanos não dizia respeito à sobrevivência de cada um dos indivíduos que, pretensamente, a traz em si, mas antes a algo mais vasto – ao grupo, à família, à humanidade no seu todo.
“E nota que isto tem implicações importantes ao nível moral – se, em cada um de nós, a pulsão de preservação do grupo prevalece sobre a pulsão de preservação do indivíduo, então por que não admitir que o grupo imponha o sacrifício de um indivíduo quando acha que esse sacrifício é necessário ao bem comum?”
Ora esta era precisamente uma das ideias contra as quais eu achava que a universalidade do instinto de autopreservação poderia vir a servir de argumento, se eu conseguisse arquitectar, a partir dela, uma teoria moral suficientemente sólida…
Durante vários dias, preocupou-me o aparente fracasso da minha tão nobre certeza da omnipresença entre as pessoas da vontade de viver. Tentei arranjar argumentos sólidos contra as objecções que o meu amigo me tinha levantado. E acabei por me censurar a mim próprio por procurar esses argumentos:
“Quer dizer, o que mais me preocupa é como justificar racionalmente uma postura tão dogmática que me recuso a abandoná-la mesmo quando me são apresentados contra ela argumentos que eu não consigo rebater! Não se pode chamar bem a isto a procura da verdade!”
E decidi dar por infirmada a minha hipótese.
Como se encontra sempre quando não se procura, um dia lembrei-me de repente de que alguém* tinha definido vida como “a negação permanente da morte”. A definição, por simplista que possa parecer à primeira vista, é rigorosa e desfaz a importância do suicídio como objecção fundamental à universalidade da pulsão da vida: mesmo um suicida, o que faz toda a vida, excepto num ínfimo momento apenas em que se mata, é preservar essa mesma vida, opor-se constantemente à morte.
Mais tarde, um outro amigo disse-me que parecia haver bastantes indícios de que os suicidas se arrependem do que fazem.
“Bom, é claro que quem se mata de facto não tem grande possibilidade de se arrepender do que faz”, explicou ele, “mas estudos de casos de suicídios fracassados mostram que o suicídio não é muito diferente de muitos homicídios e outros actos violentos: é algo que as pessoas fazem de cabeça quente e de que, acalmadas as paixões, se arrependem.”
A ser verdade o que ele me dizia, esse facto não faria senão corroborar a minha ideia. Mas nunca encontrei os estudos que ele referia. Não faço ideia se existem ou não… Vim a encontrar, isso sim, outras ideias muito interessantes sobre a questão. Por exemplo: Michael Cholbi, no seu artigo “Suicide” da Stanford Encyclopedia of Philosophy, diz, citando estudiosos do assunto, que “não se pode dizer que os indivíduos suicidas procurem a morte per se, mas a morte é antes percebida, com ou sem razão, como meio de alcançar outro objectivo do agente. Resumindo, não parece haver exemplos convincentes de suicídio não-instrumental em que a intenção última é simplesmente acabar com a vida e não há outro objectivo distinto dessa acção”.
Mesmo quando se procura a morte, não é a morte que se procura, mas, através dela, algum bocado da vida. Ou, dito de outra maneira, pouco rigorosa talvez, mas mais espectacular: nem a morte mata a pulsão fundamental da vida.
__________
* Desculpem, mas não me lembro quem... Descobri agora que Marie François Xavier Bichat, um célebre biólogo francês, na sua obra Recherches physiologiques sur la vie et la mort (publicada pela primeira vez em 1800 e de que podem ver online um facsimile da 4ª edição (Paris: Béchet jeune et Gabon) de 1822) escreveu que (traduzo eu) “a vida é o conjunto das funções que resistem à morte”, que é perfeitamente coincidente com a definição com assinatura ilegível que me veio de súbito à mente, mas não pode ter sido da definição de Xavier Bichat que me lembrei, porque eu não conhecia Xavier Bichat… Pensei que fosse uma frase de J. Krishnamurti, mas é um engano da minha memória, simplesmente porque J. Krishnamurti nunca poderia ter dito nem escrito uma coisa assim…
“Não aceito!”, disse ele. “E quem prefere morrer para salvar um ente querido, se tem de fazer essa escolha? E quem, por razões de honra ou de dever, dá a vida pelo que considera mais importante do que ela – a sua pátria ou os seus valores, por exemplo? E quem acha tão miserável a sua existência que prefere, pura e simplesmente, acabar com ela?”
Fiquei sem saber que boa resposta lhe dar. O argumento imediato foi que o suicídio é um fenómeno tão marginal nas coisas humanas que não pode ser considerado uma prática humana essencial – ao contrário da vontade de preservar a vida. Mas foi uma resposta que não me satisfez. Nunca fui adepto de regras que, para funcionarem, admitem a excepção. Bom, desprezar o que é muito periférico numa verdade genérica, digamos assim, não é completamente desprovido de sentido. Dizer que os seres humanos preferem sempre a morte à vida por muito que alguns se suicidem é como dizer que os cães são sempre quadrúpedes, mesmo quando um acidente qualquer, ou uma malformação, deixa um cão sem uma das patas. Mas eu intuía, sem o conseguir racionalizar, que o suicídio é, nos seres humanos, um fenómeno de um tipo diferente da deformidade congénita ou da amputação – por um lado, porque extremamente mais persistente e, por outro, porque é uma escolha em vez de um acidente. E foi isso, precisamente, que o meu amigo argumentou:
“O suicídio, meu amigo, não é uma doença. É um acto voluntário!”
Tentei então argumentar que os suicídios que ele invocava não chegavam a ser uma escolha da morte relativamente à vida:
“Tens de ver que, no caso de alguém dar a vida por outrem, não é de escolher a morte que se trata – mas antes de uma escolha de que vidas preservar. Continua a ser a vida que se prefere à morte. E isto é ainda mais verdade se alguém aceitar morrer para salvar mais do que uma pessoa.”
O problema desta argumentação é que descentra a questão da preservação da vida: eu teria então de admitir, retorquiu o meu amigo, que a pulsão da sobrevivência que eu defendia ser comum a todos os seres humanos não dizia respeito à sobrevivência de cada um dos indivíduos que, pretensamente, a traz em si, mas antes a algo mais vasto – ao grupo, à família, à humanidade no seu todo.
“E nota que isto tem implicações importantes ao nível moral – se, em cada um de nós, a pulsão de preservação do grupo prevalece sobre a pulsão de preservação do indivíduo, então por que não admitir que o grupo imponha o sacrifício de um indivíduo quando acha que esse sacrifício é necessário ao bem comum?”
Ora esta era precisamente uma das ideias contra as quais eu achava que a universalidade do instinto de autopreservação poderia vir a servir de argumento, se eu conseguisse arquitectar, a partir dela, uma teoria moral suficientemente sólida…
Durante vários dias, preocupou-me o aparente fracasso da minha tão nobre certeza da omnipresença entre as pessoas da vontade de viver. Tentei arranjar argumentos sólidos contra as objecções que o meu amigo me tinha levantado. E acabei por me censurar a mim próprio por procurar esses argumentos:
“Quer dizer, o que mais me preocupa é como justificar racionalmente uma postura tão dogmática que me recuso a abandoná-la mesmo quando me são apresentados contra ela argumentos que eu não consigo rebater! Não se pode chamar bem a isto a procura da verdade!”
E decidi dar por infirmada a minha hipótese.
Como se encontra sempre quando não se procura, um dia lembrei-me de repente de que alguém* tinha definido vida como “a negação permanente da morte”. A definição, por simplista que possa parecer à primeira vista, é rigorosa e desfaz a importância do suicídio como objecção fundamental à universalidade da pulsão da vida: mesmo um suicida, o que faz toda a vida, excepto num ínfimo momento apenas em que se mata, é preservar essa mesma vida, opor-se constantemente à morte.
Mais tarde, um outro amigo disse-me que parecia haver bastantes indícios de que os suicidas se arrependem do que fazem.
“Bom, é claro que quem se mata de facto não tem grande possibilidade de se arrepender do que faz”, explicou ele, “mas estudos de casos de suicídios fracassados mostram que o suicídio não é muito diferente de muitos homicídios e outros actos violentos: é algo que as pessoas fazem de cabeça quente e de que, acalmadas as paixões, se arrependem.”
A ser verdade o que ele me dizia, esse facto não faria senão corroborar a minha ideia. Mas nunca encontrei os estudos que ele referia. Não faço ideia se existem ou não… Vim a encontrar, isso sim, outras ideias muito interessantes sobre a questão. Por exemplo: Michael Cholbi, no seu artigo “Suicide” da Stanford Encyclopedia of Philosophy, diz, citando estudiosos do assunto, que “não se pode dizer que os indivíduos suicidas procurem a morte per se, mas a morte é antes percebida, com ou sem razão, como meio de alcançar outro objectivo do agente. Resumindo, não parece haver exemplos convincentes de suicídio não-instrumental em que a intenção última é simplesmente acabar com a vida e não há outro objectivo distinto dessa acção”.
Mesmo quando se procura a morte, não é a morte que se procura, mas, através dela, algum bocado da vida. Ou, dito de outra maneira, pouco rigorosa talvez, mas mais espectacular: nem a morte mata a pulsão fundamental da vida.
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* Desculpem, mas não me lembro quem... Descobri agora que Marie François Xavier Bichat, um célebre biólogo francês, na sua obra Recherches physiologiques sur la vie et la mort (publicada pela primeira vez em 1800 e de que podem ver online um facsimile da 4ª edição (Paris: Béchet jeune et Gabon) de 1822) escreveu que (traduzo eu) “a vida é o conjunto das funções que resistem à morte”, que é perfeitamente coincidente com a definição com assinatura ilegível que me veio de súbito à mente, mas não pode ter sido da definição de Xavier Bichat que me lembrei, porque eu não conhecia Xavier Bichat… Pensei que fosse uma frase de J. Krishnamurti, mas é um engano da minha memória, simplesmente porque J. Krishnamurti nunca poderia ter dito nem escrito uma coisa assim…
19/02/08
A História repete-se ou não? Se há erro que podemos esperar não voltar a cometer…
Algumas pessoas defendem que o caminho para o progresso social e o bem-estar material não tem forçosamente de ser o mesmo em todo o lado e propõem, por isso, para os países em vias de desenvolvimento, um rumo diferente daquele que seguiram os países agora desenvolvidos. E é difícil argumentar contra esta recusa da universalidade de um modelo de desenvolvimento – tão difícil, de facto, como provar a sua pertinência… Há, então, outras pessoas, que defendem precisamente o contrário: a ineficácia das muitas experiências que foram feitas de desenvolvimento “de outra maneira” só mostra que não podemos queimar etapas; que o desenvolvimento terá de seguir os mesmos passos em todo o lado. Parece razoável acreditar que, do que já aconteceu, podemos, pelo menos, ter a certeza de que pode acontecer outra vez… Mas só exactamente nas mesmas condições. E provavelmente as condições nunca serão exactamente as mesmas. Não bastará umas quantas diferenças, pequenas que sejam, para que nada do que foi se volte a repetir?
Isto de teorias da evolução das sociedades é muito complicado… Muito vago, muito volumoso, demasiado complexo… Agora, se passarmos da teoria geral do desenvolvimento para a minha modesta filosofia de vida, que não pretende aplicar-se a mais ninguém que não seja este pobre de mim, digo-vos que acredito mesmo que se há erro que tenho esperança de não vir a cometer é algum que não tenha ainda cometido; dos muitos que já fiz, tenho a certeza de que sou capaz, em qualquer ocasião, de vir a repeti-los...
Isto de teorias da evolução das sociedades é muito complicado… Muito vago, muito volumoso, demasiado complexo… Agora, se passarmos da teoria geral do desenvolvimento para a minha modesta filosofia de vida, que não pretende aplicar-se a mais ninguém que não seja este pobre de mim, digo-vos que acredito mesmo que se há erro que tenho esperança de não vir a cometer é algum que não tenha ainda cometido; dos muitos que já fiz, tenho a certeza de que sou capaz, em qualquer ocasião, de vir a repeti-los...
17/02/08
One hit wonders: dois Cornelius originais
Queria propor-vos duas pinturas por que me apaixonei à primeira vista de dois Cornelius pouco conhecidos, um flamengo e outro alemão.
O outro Cornelius não é bem um Cornelius, porque Cornelius é o seu segundo nome e ele é de facto mais conhecido como Gabriel von Max, mas tratá-lo por Cornelius foi o artifício retórico que me permitiu juntá-lo aqui a mestre Gysbrechts. Gabriel von Max é um pintor perfeitamente do seu tempo, mas tem, no meio de várias obras relativamente banais, uma obra-prima tão surpreendente como o quadro que se representa a si próprio de costas. Trata-se de uma pintura de 1889 em que nos são apresentados Macacos como críticos de arte (Neue Pinakothek, Munique). Quem sabe, apreciando o próprio quadro que os retrata, para imaginarmos a continuação do jogo de espelhos…
O primeiro, Cornelius Gysbrechts (ou Gijsbrechts), trabalhou na corte dinamarquesa de 1668 a 72, e tem uma sala que lhe é dedicada no Museu Nacional de Arte, em Copenhaga. O quadro de Cornelius Gysbrechts que chama imediatamente a atenção a qualquer pessoa que visite o museu – e que é, penso eu, o seu quadro mais famoso – chama-se Parte de trás de um quadro. E é isso mesmo, a parte de trás de um quadro! Acho que a maior parte das pessoas o toma por um quadro do século XX, mas é, de facto, de 1670.
O outro Cornelius não é bem um Cornelius, porque Cornelius é o seu segundo nome e ele é de facto mais conhecido como Gabriel von Max, mas tratá-lo por Cornelius foi o artifício retórico que me permitiu juntá-lo aqui a mestre Gysbrechts. Gabriel von Max é um pintor perfeitamente do seu tempo, mas tem, no meio de várias obras relativamente banais, uma obra-prima tão surpreendente como o quadro que se representa a si próprio de costas. Trata-se de uma pintura de 1889 em que nos são apresentados Macacos como críticos de arte (Neue Pinakothek, Munique). Quem sabe, apreciando o próprio quadro que os retrata, para imaginarmos a continuação do jogo de espelhos…
Aqui ficam, já agora os links para mais obras de Cornelius Gysbrechts e de Gabriel von Max nas suas respectivas galerias da WikiCommons. Nada do calibre das duas pinturas que exponho neste post, mas podem ir dar uma vista de olhos.
12/02/08
Português de Lisboa: ao que isto chegou…
Duas ideias que há, a primeira muito estranha, a segunda um bocadinho menos:
Muitas pessoas de Lisboa pensam que não têm sotaque. Toda a gente do Porto sabe que fala à Porto, mas muitas pessoas de Lisboa pensam que não têm um sotaque específico, que falam “um português neutro”… Ora o sotaque de Lisboa é um sotaque como outro qualquer. Como o de Beja ou de Portimão ou da Malveira da Serra. Sotaques neutros, só se forem as maneiras de falar artificiais, criadas precisamente para não serem de sítio nenhum nem de nenhuma classe, como a received pronunciation dos locutores da BBC; ou então o sotaque dos filhos de emigrantes, que não têm sotaque estrangeiro mas também não têm sotaque de nenhuma região. Tirando isso, o mais próximo de neutro é muito misturado. Mas o dialectologista perfeito, a existir, deveria ainda assim ser capaz de fazer avarias como as do Henry Higgins de Bernard Shaw, mal ouvisse alguém enunciar uma frase simples: “Ah, ah, já estou a ver, meu amigo: você nasceu na Moita, de uma mãe alentejana e pai estremenho, mudou-se no fim da infância para Pero Pinheiro, mas fez os estudos em Sintra, e, quando acabou o liceu, foi morar para Vila Real de Santo António*…”
Há muitas pessoas (sobretudo de fora de Lisboa, naturalmente) que pensam que, sobretudo com a força uniformizadora da televisão, o português de Lisboa está a ser imposto ao resto do país e a dar cabo dos falares regionais. É verdade até certo ponto. É verdade que a variante do português que se está a espalhar é o falar das classes “cultas” da capital e não há nisso nada de extraordinário: normalmente o falar “culto” da cidade ou da zona mais importante é o que se impõe. É assim a vida…
Lisboa era uma ilha linguística, no meio dos falares meridionais, que, curiosamente, começam não a sul do Tejo, como seria talvez de prever, mas um bocadinho a norte, não sei porquê (ou começavam, seja, isto agora está tudo muito esbatido…). A única característica do sotaque lisboeta que tenho a certeza que se está a propagar bem é o chamado r gutural. Mas é de notar que não é um fenómeno oriundo só de Lisboa, mas também do Porto e das ilhas. Não sei até que ponto é que outra característica do sotaque lisboeta que é pronunciarem-se da mesma maneira os sons correspondentes às grafias -ãe e -em estará também a espalhar-se. E também não posso dizer se o pronunciar-se -io como -iu (rio como riu, por exemplo), que era o traço mais caricato do falar da capital para ouvidos não lisboetas (o que eu fui gozado por causa disso!...) também não se estará a difundir… De resto, as demais características daquilo a que eu chamo, sem grande rigor técnico, mas com o coração inflado de bairrismo (ai, credo, ‘tadinho…) “o verdadeiro sotaque da Lísbia” não têm tido, de certeza, a mesma fortuna. E estão, acho eu, tão ameaçadas como as dos outros falares regionais...
Uma característica daquilo a que eu chamo o “verdadeiro sotaque da Lísbia” é a abertura de certos oo: não se diz tourada, mas sim tòrada; nem se diz ourives, mas sim òrives; não se diz chouriço, mas sim chòriço; não se diz ouvir, mas sim òvir; etc. E não são só os -ou- que se pronunciam ó – também au- e até al-, às vezes: “Vais ó Ògueirão? Òguenta aí, qu’eu vou contigo!”
Há também muitos ii que não se pronunciam. Se alguém me disser que é “de Lisboa”, eu acho esquisito, porque em Lisboa diz-se L’sboa, não se diz Lisboa… E nem é esquisito que eu acho, é ‘squ’sito.
Aliás, às vezes nem é ‘squ’sito que se diz, é chq’sito, depende. Ora aí têm mais uma característica do sotaque de Lisboa: pronunciar os ss em fim de sílaba como ss explosivos de início de sílaba. Por outras palavras, pronunciar da mesma maneira chefia e esfia.
Outra coisa típica é o desaparecimento de muitos rr. Por exemplo, os que vêm em final de palavra costumam desaparecer: “Tavas a falá’ c’a Dona Luísa?” “Não, ‘tava a falá’ c’uma mulhé’ que tu não conheces…” Mas não só, também noutros contextos: “Não comp’s isso aqui! Quat’centos paus? Atão s’eu ‘inda ontem vi isso mais barato nout’ lado. Os gajos aqui são semp’ careiros, pá!”
Mas, por outro lado, também pode, às vezes, ouvir-se o r seguido de uma vogal que não aparece na escrita e que pode variar um bocado: “Estás a perceber?” pode ser “‘Tás a ‘cê’ere?” ou, mais rufia ainda, “‘Tàs a cê’erim?”. Neste aspecto, o sotaque de Lisboa é mesmo um sotaque do Sul, não haja dúvida.
Como nos outros sotaques do Sul, também se transforma, em Lisboa, o ditongo -ei- numa vogal só. Só que, em vez de se o reduzir a ê, como nos sotaques saloio, alentejano ou algarvio, transforma-se-o antes em â: peixe diz-se pâxe, madeira diz madâra e assim sucessivamente…
Há também palavras isoladas que têm uma pronúncia especial. Não existe o advérbio muito mas só uma variação bizarra desse advérbio, muita (muitas vezes pronunciado m’ta): muita grande, muita pequeno, muita giro, etc. E o mesmo se passa com o quantificador de nome: muita peso, muita dinheiro, sempre muita... Também não existe também, mas sempre e só tamém (quase como em asturiano, não é?). E não se diz mesmo, mas antes memo. O adjectivo grande, quando vem anteposto a um nome, pronuncia-se sempre ganda: ganda pinta, ganda problema, etc.
Bom, e deve haver muitas mais que agora não me vêm à cabeça. Mas ‘tá-s’a perdê’ ist’tudo… ‘Gora, a malta fala como escreve, é uma tr’steza. Quat’centchinquenta agora pronuncia-se quatrocentos e cinquenta, vâjam lá vocês ó qu’ist’chegou… E depois, as palavras q’agora s’usam, um gaj’inté fica azul… Uma drofa agora chama-se porta e umas galdinas agora são calças… Até já há quem chame esófago ao canal da sopa…
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* Estou a reinar, claro está, uma coisa assim é impossível mesmo para o dialectologista perfeito que não há. A passagem da peça Pygmalion a que me refiro é aquela em que o foneticista conhece o pai de Liza, Alfred Doolittle:
DOOLITTLE. [à porta, sem saber qual dos dois cavalheiros é o homem que ele procura] Professor Higgins?
HIGGINS. Sou eu. Bom dia. Sente-se.
DOOLITTLE. ‘Dia, chefe. [Senta-se com ar emproado] É um assunto bem sério que aqui me traz, chefe.
HIGGINS [para Pickering] Cresceu em Hounslow. Mãe galesa, acho eu. [Doolittle abre a boca de espanto e Higgins continua] O que é que você quer, Doolittle?
Muitas pessoas de Lisboa pensam que não têm sotaque. Toda a gente do Porto sabe que fala à Porto, mas muitas pessoas de Lisboa pensam que não têm um sotaque específico, que falam “um português neutro”… Ora o sotaque de Lisboa é um sotaque como outro qualquer. Como o de Beja ou de Portimão ou da Malveira da Serra. Sotaques neutros, só se forem as maneiras de falar artificiais, criadas precisamente para não serem de sítio nenhum nem de nenhuma classe, como a received pronunciation dos locutores da BBC; ou então o sotaque dos filhos de emigrantes, que não têm sotaque estrangeiro mas também não têm sotaque de nenhuma região. Tirando isso, o mais próximo de neutro é muito misturado. Mas o dialectologista perfeito, a existir, deveria ainda assim ser capaz de fazer avarias como as do Henry Higgins de Bernard Shaw, mal ouvisse alguém enunciar uma frase simples: “Ah, ah, já estou a ver, meu amigo: você nasceu na Moita, de uma mãe alentejana e pai estremenho, mudou-se no fim da infância para Pero Pinheiro, mas fez os estudos em Sintra, e, quando acabou o liceu, foi morar para Vila Real de Santo António*…”
Há muitas pessoas (sobretudo de fora de Lisboa, naturalmente) que pensam que, sobretudo com a força uniformizadora da televisão, o português de Lisboa está a ser imposto ao resto do país e a dar cabo dos falares regionais. É verdade até certo ponto. É verdade que a variante do português que se está a espalhar é o falar das classes “cultas” da capital e não há nisso nada de extraordinário: normalmente o falar “culto” da cidade ou da zona mais importante é o que se impõe. É assim a vida…
Lisboa era uma ilha linguística, no meio dos falares meridionais, que, curiosamente, começam não a sul do Tejo, como seria talvez de prever, mas um bocadinho a norte, não sei porquê (ou começavam, seja, isto agora está tudo muito esbatido…). A única característica do sotaque lisboeta que tenho a certeza que se está a propagar bem é o chamado r gutural. Mas é de notar que não é um fenómeno oriundo só de Lisboa, mas também do Porto e das ilhas. Não sei até que ponto é que outra característica do sotaque lisboeta que é pronunciarem-se da mesma maneira os sons correspondentes às grafias -ãe e -em estará também a espalhar-se. E também não posso dizer se o pronunciar-se -io como -iu (rio como riu, por exemplo), que era o traço mais caricato do falar da capital para ouvidos não lisboetas (o que eu fui gozado por causa disso!...) também não se estará a difundir… De resto, as demais características daquilo a que eu chamo, sem grande rigor técnico, mas com o coração inflado de bairrismo (ai, credo, ‘tadinho…) “o verdadeiro sotaque da Lísbia” não têm tido, de certeza, a mesma fortuna. E estão, acho eu, tão ameaçadas como as dos outros falares regionais...
Uma característica daquilo a que eu chamo o “verdadeiro sotaque da Lísbia” é a abertura de certos oo: não se diz tourada, mas sim tòrada; nem se diz ourives, mas sim òrives; não se diz chouriço, mas sim chòriço; não se diz ouvir, mas sim òvir; etc. E não são só os -ou- que se pronunciam ó – também au- e até al-, às vezes: “Vais ó Ògueirão? Òguenta aí, qu’eu vou contigo!”
Há também muitos ii que não se pronunciam. Se alguém me disser que é “de Lisboa”, eu acho esquisito, porque em Lisboa diz-se L’sboa, não se diz Lisboa… E nem é esquisito que eu acho, é ‘squ’sito.
Aliás, às vezes nem é ‘squ’sito que se diz, é chq’sito, depende. Ora aí têm mais uma característica do sotaque de Lisboa: pronunciar os ss em fim de sílaba como ss explosivos de início de sílaba. Por outras palavras, pronunciar da mesma maneira chefia e esfia.
Outra coisa típica é o desaparecimento de muitos rr. Por exemplo, os que vêm em final de palavra costumam desaparecer: “Tavas a falá’ c’a Dona Luísa?” “Não, ‘tava a falá’ c’uma mulhé’ que tu não conheces…” Mas não só, também noutros contextos: “Não comp’s isso aqui! Quat’centos paus? Atão s’eu ‘inda ontem vi isso mais barato nout’ lado. Os gajos aqui são semp’ careiros, pá!”
Mas, por outro lado, também pode, às vezes, ouvir-se o r seguido de uma vogal que não aparece na escrita e que pode variar um bocado: “Estás a perceber?” pode ser “‘Tás a ‘cê’ere?” ou, mais rufia ainda, “‘Tàs a cê’erim?”. Neste aspecto, o sotaque de Lisboa é mesmo um sotaque do Sul, não haja dúvida.
Como nos outros sotaques do Sul, também se transforma, em Lisboa, o ditongo -ei- numa vogal só. Só que, em vez de se o reduzir a ê, como nos sotaques saloio, alentejano ou algarvio, transforma-se-o antes em â: peixe diz-se pâxe, madeira diz madâra e assim sucessivamente…
Há também palavras isoladas que têm uma pronúncia especial. Não existe o advérbio muito mas só uma variação bizarra desse advérbio, muita (muitas vezes pronunciado m’ta): muita grande, muita pequeno, muita giro, etc. E o mesmo se passa com o quantificador de nome: muita peso, muita dinheiro, sempre muita... Também não existe também, mas sempre e só tamém (quase como em asturiano, não é?). E não se diz mesmo, mas antes memo. O adjectivo grande, quando vem anteposto a um nome, pronuncia-se sempre ganda: ganda pinta, ganda problema, etc.
Bom, e deve haver muitas mais que agora não me vêm à cabeça. Mas ‘tá-s’a perdê’ ist’tudo… ‘Gora, a malta fala como escreve, é uma tr’steza. Quat’centchinquenta agora pronuncia-se quatrocentos e cinquenta, vâjam lá vocês ó qu’ist’chegou… E depois, as palavras q’agora s’usam, um gaj’inté fica azul… Uma drofa agora chama-se porta e umas galdinas agora são calças… Até já há quem chame esófago ao canal da sopa…
__________
* Estou a reinar, claro está, uma coisa assim é impossível mesmo para o dialectologista perfeito que não há. A passagem da peça Pygmalion a que me refiro é aquela em que o foneticista conhece o pai de Liza, Alfred Doolittle:
DOOLITTLE. [à porta, sem saber qual dos dois cavalheiros é o homem que ele procura] Professor Higgins?
HIGGINS. Sou eu. Bom dia. Sente-se.
DOOLITTLE. ‘Dia, chefe. [Senta-se com ar emproado] É um assunto bem sério que aqui me traz, chefe.
HIGGINS [para Pickering] Cresceu em Hounslow. Mãe galesa, acho eu. [Doolittle abre a boca de espanto e Higgins continua] O que é que você quer, Doolittle?
11/02/08
Dois minitextos sobre democracia
1. O menos mau dos sistemas?
Parece que quando Churchill disse, num discurso na Casa dos Comuns, que “a democracia é a pior forma de governo tirando todas aquelas que foram sendo experimentadas de vez em quando” não apresentou o aforismo como seu, mas também não indicou a fonte exacta. “Já foi afirmado…”, disse ele. Talvez muita gente tivesse afirmado a mesma coisa antes dele, mas um dos que o fez foi William Ralph Inge, que escreveu, concretamente, que “a democracia é uma forma de governo que pode ser racionalmente defendida, não como sendo boa, mas como sendo menos má que qualquer outra”.
A história da frase tem pouco interesse a não ser para os estudiosos de Churchill, que eu não sou nem quero ser. O que me importa aqui é assinalar que a ideia é, por um lado, altamente discutível, mas que, por outro, é mais que de uma simples pirueta de raciocínio. É discutível porque a democracia pode ser efectivamente defendida pela positiva, como forma ideal de governo, se se a definir de uma forma suficientemente abstracta para que essa definição não se possa nunca confundir com as tentativas práticas da sua aplicação; e é ainda assim pertinente porque, embora de maneira abusiva, põe a tónica nos problemas que qualquer definição de democracia, mesmo uma definição muito abstracta, nunca deixa de colocar.
Evidentemente, a primeira questão que se coloca é a da definição de democracia. E espero que não tomem o que vou dizer a seguir como sinal de vaidade, mas antes como sinal de ignorância: das várias definições que conheço de democracia, a que me agrada mais é a minha:
Democracia é a estrutura de práticas tendentes a concretizar o princípio ético segundo o qual todos os adultos em pleno uso das suas faculdades mentais têm o direito a participar ao mesmo nível na escolha do código de comportamentos, definidos ou não na letra da lei, da sociedade em que se inserem.
Este princípio ético ideal é, evidentemente, inexequível na prática, a não ser em comunidades bastante pequenas, o que lhe confere o carácter (necessário, como defendi atrás) de princípio orientador inatingível de todas as formas de organização específica de que, na prática, a democracia se possa valer. Definida desta maneira, ou seja, como ideal absoluto de justiça, vê-se mal como é que a democracia é um mal menor – a não ser para quem ache que há outros fundamentos para a justiça que não a igualdade de direitos de todos. Ora, para quem ache isso, ela também não parece poder ser o mal menor, porque quem não aceite a igualdade defenderá sistemas não democráticos que considera melhores que a democracia.
Mas, e aos igualitaristas como eu, que problemas coloca uma definição assim de democracia? Bom, o problema é que as práticas tendentes a concretizar o princípio de igualdade de direito na definição das normas sociais em sentido lato podem não conduzir a essa igualdade de direito. Já os filósofos especularam muito sobre a possibilidade de práticas irrepreensivelmente democráticas poderem levaram à exclusão ou à repressão de membros de uma comunidade, contanto que haja acordo entre as maiorias a esse respeito. Também os economistas debateram e experimentaram a possibilidade, que é real, de sistemas altamente democráticos permitirem que, numa comunidade hipotética de pessoas com as mesmas posses à partida, uns enriqueçam mais do que outros. Uma questão fundamental é, então, a seguinte: Das “práticas tendentes a concretizar o princípio ético segundo o qual todos os adultos em pleno uso das suas faculdades mentais têm o direito a participar ao mesmo nível na escolha do código de comportamentos de uma comunidade”, quais são as que o fazem de uma forma mais eficaz?
2. A vida familiar como laboratório de democracia
Mas eu não sou filósofo nem economista, sou só homem de família, e a reflexão que trago aqui é, muito concretamente, sobre como a observação do funcionamento de famílias pode contribuir para a discussão da democracia.
Comecemos pelos casais. Passei uma grande parte da minha vida a afirmar que uma das coisas interessantes nestes grupos de duas pessoas que têm frequentemente de tomar decisões sobre a sua vida conjunta era a impossibilidade de democracia e a necessidade de arranjar formas outras de os fazer funcionar. Se tradicionalmente o funcionamento de um casal era sem conflitos, era só porque a mulher não punha em causa ser o marido a mandar. Mas, e agora, quando essa dominação já não é aceite? Pode propor-se que a relação a dois é, pela impossibilidade da decisão da maioria, um espaço privilegiado da aprendizagem da negação de si; ou que o casal é o melhor exemplo da necessidade absoluta de hábitos e rotinas nas relações com os outros, porque ninguém aguenta o peso de poder sempre fazer uma escolha que pode iniciar um conflito; etc. Tudo muito bonito, mas não parece funcionar por aí além. Poder-se-ia até argumentar que tem sido a impossibilidade de encontrar essa forma alternativa e democrática de funcionamento que tem determinado o fracasso da instituição casamento – ou mesmo da instituição vida a dois – nos países menos tradicionalistas…
Pode ser. Mas não tenho hoje tanta certeza como tinha ainda há bem pouco tempo de que não haja mesmo formas democráticas de um grupo de dois tomar decisões. Uma possibilidade (tão óbvia na teoria como pesada na prática…) é a regra de consenso – só as decisões consensuais se aplicam aos dois. Se ele quer pintar a sala de cor-de-rosa e ela de azul, a sala não se pinta. Além de pesada, é uma regra que não se pode aplicar nos casos em que o desacordo é entre um fazer e um não-fazer que não tenham fronteira entre eles: se ele quer sair e ela quer ficar em casa… o quê? Não há acordo, por isso não se faz nada – fica-se em casa, como se está. Mas é precisamente isso que ela quer…
Mais produtiva parece ser a possibilidade de definir à partida áreas de responsabilidade para cada um dos membros do casal ou assentar a priori num sistema de decisões alternadas. Nenhum destes sistemas é sem problemas, mas não são problemas maiores que os da decisão por maioria.
No caso da divisão em áreas de responsabilidade, uma questão óbvia é o da importância relativa dessas áreas, importância essa que pode, além do mais, ir mudando com o tempo. Além disso, pode não haver consenso sobre que área atribuir a cada um…
Quanto à alternância de decisões, o problema é que, por puro acaso, pode acontecer que um decida, na sua vez, o que o outro também quer, sem que o outro, na vez seguinte, decida o que ele quer, pelo que há um que fica a perder… Mas na decisão por maioria também uma pessoa pode votar sempre vencido, participar toda a vida nas tomadas de decisões sem nunca decidir nada.
Parece até mais justa a alternância – se as decisões tomadas contrariam mais um dos membros do casal que o outro, é a um acaso que isso se deve e não à limitação dos seus direitos; ao passo que, num sistema de decisão da maioria, a maioria pode efectivamente conluiar para que o aparente direito de participar nas decisões não seja mesmo mais do que isso – um direito aparente. Eu arranjo já, na minha família, um exemplo claro desta problemática. Quando vou buscar os miúdos à escola, é frequente a Joana e o Alexander não estarem de acordo sobre o caminho a seguir. Como eu e o Alexander preferimos sempre o caminho mais curto e a Joana prefere sempre o caminho com menos lixo (é exactamente assim!), se decidirmos de cada vez por maioria, nunca a Joana verá satisfeito o seu desejo de ir só por ruas sem lixo, coitada dela… Se decidirmos, porém, que de cada vez decide um, ela, por ser minoria, não perde o direito a escolher também o caminho, fá-lo é só de três em três vezes. Qual é a solução mais justa?
Nós preferimos que de cada vez decida um, até porque é assim que os miúdos estão habituados a fazer com a escolha dos filmes que vêem todos os dias, enquanto eu e a Karen fazemos o jantar. Se votassem todos os dias que filme queriam ver, estou convencido de que haveria muito mais problemas. Como o número de filmes em que se pode votar é maior do que o de votantes, ia ser difícil chegar a uma decisão por maioria, cada um a puxar a brasa à sua sardinha. Podia também acontecer que dois deles se começassem a aliar contra o terceiro, para terem a vantagem de escolher de dois em dois dias em vez de de três em três dia. Bom, provavelmente eles não têm ainda esta capacidade estratégica, mas é pelo menos uma possibilidade e, como a discussão não é tanto sobre os meus filhos mas mais sobre a maior ou menor democraticidade das práticas democráticas, esta possibilidade de perversão da democracia que já referi é uma das que mais importa discutir. Outra alternativa seria estabelecer o consenso como forma de decisão. Eu não considero o consenso um modo de decisão democrático, mas há muito quem assim o considere – e até uma espécie de forma superior da democracia… O que havia de acontecer, digo eu, porque foi sempre assim que vi funcionar a necessidade de consenso, é que quem tivesse a boca maior é que se safava, como se costuma dizer. Por outras palavras, alguém havia de impor aos outros a sua vontade e os mais fracos, conscientes de que sem consenso não haveria filme, haviam de preferir dar o braço a torcer do que não ver filme nenhum…
Conclusões? Conclusões, não há. Quer dizer, não há outras que não sejam aquelas que fui tirando durante esta divagação. Que algumas destas observações triviais sobre tomada de decisões numa família ou noutro grupo pequeno são de interesse para a reflexão do funcionamento da democracia em círculos maiores, parece-me claro. A questão da alternância nas decisões versus tomada de decisão por maioria em cada caso é difícil de aplicar à vida política de um país, mas não é sem interesse reflectir sobre a questão de fundo que lhe subjaz e que vale, essa, para a discussão da democracia no âmbito de uma nação ou até em âmbitos mais alargados: o que importa é montar um sistema justo à partida e em abstracto, independentemente das questões concretas com que ele venha a lidar e das situações em que lide com elas. Mas, e como é se garante a todos o acesso real a alguma decisão – inclusive aos que têm sempre opiniões minoritárias? E, questão anterior a essa: é mesmo imprescindível fazê-lo?
Parece que quando Churchill disse, num discurso na Casa dos Comuns, que “a democracia é a pior forma de governo tirando todas aquelas que foram sendo experimentadas de vez em quando” não apresentou o aforismo como seu, mas também não indicou a fonte exacta. “Já foi afirmado…”, disse ele. Talvez muita gente tivesse afirmado a mesma coisa antes dele, mas um dos que o fez foi William Ralph Inge, que escreveu, concretamente, que “a democracia é uma forma de governo que pode ser racionalmente defendida, não como sendo boa, mas como sendo menos má que qualquer outra”.
A história da frase tem pouco interesse a não ser para os estudiosos de Churchill, que eu não sou nem quero ser. O que me importa aqui é assinalar que a ideia é, por um lado, altamente discutível, mas que, por outro, é mais que de uma simples pirueta de raciocínio. É discutível porque a democracia pode ser efectivamente defendida pela positiva, como forma ideal de governo, se se a definir de uma forma suficientemente abstracta para que essa definição não se possa nunca confundir com as tentativas práticas da sua aplicação; e é ainda assim pertinente porque, embora de maneira abusiva, põe a tónica nos problemas que qualquer definição de democracia, mesmo uma definição muito abstracta, nunca deixa de colocar.
Evidentemente, a primeira questão que se coloca é a da definição de democracia. E espero que não tomem o que vou dizer a seguir como sinal de vaidade, mas antes como sinal de ignorância: das várias definições que conheço de democracia, a que me agrada mais é a minha:
Democracia é a estrutura de práticas tendentes a concretizar o princípio ético segundo o qual todos os adultos em pleno uso das suas faculdades mentais têm o direito a participar ao mesmo nível na escolha do código de comportamentos, definidos ou não na letra da lei, da sociedade em que se inserem.
Este princípio ético ideal é, evidentemente, inexequível na prática, a não ser em comunidades bastante pequenas, o que lhe confere o carácter (necessário, como defendi atrás) de princípio orientador inatingível de todas as formas de organização específica de que, na prática, a democracia se possa valer. Definida desta maneira, ou seja, como ideal absoluto de justiça, vê-se mal como é que a democracia é um mal menor – a não ser para quem ache que há outros fundamentos para a justiça que não a igualdade de direitos de todos. Ora, para quem ache isso, ela também não parece poder ser o mal menor, porque quem não aceite a igualdade defenderá sistemas não democráticos que considera melhores que a democracia.
Mas, e aos igualitaristas como eu, que problemas coloca uma definição assim de democracia? Bom, o problema é que as práticas tendentes a concretizar o princípio de igualdade de direito na definição das normas sociais em sentido lato podem não conduzir a essa igualdade de direito. Já os filósofos especularam muito sobre a possibilidade de práticas irrepreensivelmente democráticas poderem levaram à exclusão ou à repressão de membros de uma comunidade, contanto que haja acordo entre as maiorias a esse respeito. Também os economistas debateram e experimentaram a possibilidade, que é real, de sistemas altamente democráticos permitirem que, numa comunidade hipotética de pessoas com as mesmas posses à partida, uns enriqueçam mais do que outros. Uma questão fundamental é, então, a seguinte: Das “práticas tendentes a concretizar o princípio ético segundo o qual todos os adultos em pleno uso das suas faculdades mentais têm o direito a participar ao mesmo nível na escolha do código de comportamentos de uma comunidade”, quais são as que o fazem de uma forma mais eficaz?
2. A vida familiar como laboratório de democracia
Mas eu não sou filósofo nem economista, sou só homem de família, e a reflexão que trago aqui é, muito concretamente, sobre como a observação do funcionamento de famílias pode contribuir para a discussão da democracia.
Comecemos pelos casais. Passei uma grande parte da minha vida a afirmar que uma das coisas interessantes nestes grupos de duas pessoas que têm frequentemente de tomar decisões sobre a sua vida conjunta era a impossibilidade de democracia e a necessidade de arranjar formas outras de os fazer funcionar. Se tradicionalmente o funcionamento de um casal era sem conflitos, era só porque a mulher não punha em causa ser o marido a mandar. Mas, e agora, quando essa dominação já não é aceite? Pode propor-se que a relação a dois é, pela impossibilidade da decisão da maioria, um espaço privilegiado da aprendizagem da negação de si; ou que o casal é o melhor exemplo da necessidade absoluta de hábitos e rotinas nas relações com os outros, porque ninguém aguenta o peso de poder sempre fazer uma escolha que pode iniciar um conflito; etc. Tudo muito bonito, mas não parece funcionar por aí além. Poder-se-ia até argumentar que tem sido a impossibilidade de encontrar essa forma alternativa e democrática de funcionamento que tem determinado o fracasso da instituição casamento – ou mesmo da instituição vida a dois – nos países menos tradicionalistas…
Pode ser. Mas não tenho hoje tanta certeza como tinha ainda há bem pouco tempo de que não haja mesmo formas democráticas de um grupo de dois tomar decisões. Uma possibilidade (tão óbvia na teoria como pesada na prática…) é a regra de consenso – só as decisões consensuais se aplicam aos dois. Se ele quer pintar a sala de cor-de-rosa e ela de azul, a sala não se pinta. Além de pesada, é uma regra que não se pode aplicar nos casos em que o desacordo é entre um fazer e um não-fazer que não tenham fronteira entre eles: se ele quer sair e ela quer ficar em casa… o quê? Não há acordo, por isso não se faz nada – fica-se em casa, como se está. Mas é precisamente isso que ela quer…
Mais produtiva parece ser a possibilidade de definir à partida áreas de responsabilidade para cada um dos membros do casal ou assentar a priori num sistema de decisões alternadas. Nenhum destes sistemas é sem problemas, mas não são problemas maiores que os da decisão por maioria.
No caso da divisão em áreas de responsabilidade, uma questão óbvia é o da importância relativa dessas áreas, importância essa que pode, além do mais, ir mudando com o tempo. Além disso, pode não haver consenso sobre que área atribuir a cada um…
Quanto à alternância de decisões, o problema é que, por puro acaso, pode acontecer que um decida, na sua vez, o que o outro também quer, sem que o outro, na vez seguinte, decida o que ele quer, pelo que há um que fica a perder… Mas na decisão por maioria também uma pessoa pode votar sempre vencido, participar toda a vida nas tomadas de decisões sem nunca decidir nada.
Parece até mais justa a alternância – se as decisões tomadas contrariam mais um dos membros do casal que o outro, é a um acaso que isso se deve e não à limitação dos seus direitos; ao passo que, num sistema de decisão da maioria, a maioria pode efectivamente conluiar para que o aparente direito de participar nas decisões não seja mesmo mais do que isso – um direito aparente. Eu arranjo já, na minha família, um exemplo claro desta problemática. Quando vou buscar os miúdos à escola, é frequente a Joana e o Alexander não estarem de acordo sobre o caminho a seguir. Como eu e o Alexander preferimos sempre o caminho mais curto e a Joana prefere sempre o caminho com menos lixo (é exactamente assim!), se decidirmos de cada vez por maioria, nunca a Joana verá satisfeito o seu desejo de ir só por ruas sem lixo, coitada dela… Se decidirmos, porém, que de cada vez decide um, ela, por ser minoria, não perde o direito a escolher também o caminho, fá-lo é só de três em três vezes. Qual é a solução mais justa?
Nós preferimos que de cada vez decida um, até porque é assim que os miúdos estão habituados a fazer com a escolha dos filmes que vêem todos os dias, enquanto eu e a Karen fazemos o jantar. Se votassem todos os dias que filme queriam ver, estou convencido de que haveria muito mais problemas. Como o número de filmes em que se pode votar é maior do que o de votantes, ia ser difícil chegar a uma decisão por maioria, cada um a puxar a brasa à sua sardinha. Podia também acontecer que dois deles se começassem a aliar contra o terceiro, para terem a vantagem de escolher de dois em dois dias em vez de de três em três dia. Bom, provavelmente eles não têm ainda esta capacidade estratégica, mas é pelo menos uma possibilidade e, como a discussão não é tanto sobre os meus filhos mas mais sobre a maior ou menor democraticidade das práticas democráticas, esta possibilidade de perversão da democracia que já referi é uma das que mais importa discutir. Outra alternativa seria estabelecer o consenso como forma de decisão. Eu não considero o consenso um modo de decisão democrático, mas há muito quem assim o considere – e até uma espécie de forma superior da democracia… O que havia de acontecer, digo eu, porque foi sempre assim que vi funcionar a necessidade de consenso, é que quem tivesse a boca maior é que se safava, como se costuma dizer. Por outras palavras, alguém havia de impor aos outros a sua vontade e os mais fracos, conscientes de que sem consenso não haveria filme, haviam de preferir dar o braço a torcer do que não ver filme nenhum…
Conclusões? Conclusões, não há. Quer dizer, não há outras que não sejam aquelas que fui tirando durante esta divagação. Que algumas destas observações triviais sobre tomada de decisões numa família ou noutro grupo pequeno são de interesse para a reflexão do funcionamento da democracia em círculos maiores, parece-me claro. A questão da alternância nas decisões versus tomada de decisão por maioria em cada caso é difícil de aplicar à vida política de um país, mas não é sem interesse reflectir sobre a questão de fundo que lhe subjaz e que vale, essa, para a discussão da democracia no âmbito de uma nação ou até em âmbitos mais alargados: o que importa é montar um sistema justo à partida e em abstracto, independentemente das questões concretas com que ele venha a lidar e das situações em que lide com elas. Mas, e como é se garante a todos o acesso real a alguma decisão – inclusive aos que têm sempre opiniões minoritárias? E, questão anterior a essa: é mesmo imprescindível fazê-lo?
10/02/08
A pequena sereia e outras pequenas estátuas de Copenhaga
Copenhaga está cheia de estátuas pequenas de pessoas e seres parecidos com pessoas. Quando digo pequenas, quero dizer do tamanho de uma pessoa ou mais pequenas, sem pedestal ou com pedestal baixo. A mais conhecida é a sereiazinha de Edvard Eriksen, que se tornou símbolo da cidade e que, talvez pela importância do seu estatuto, tem tido uma vida difícil. Mas há muitas outras.
Era uma das minhas diversões em Copenhaga, quando não tinha nada que fazer: andar pela cidade à procura de estátuas, e estudar as que eu achasse que mereciam ser estudadas. A verdade é que, no meio de tantas estatuazinhas, há muitas que não têm o menor interesse, quando não são mesmo de bastante mau gosto – muitas cópias de estátuas clássicas, por exemplo, tanto gregas e latinas como do neoclassicismo europeu, que não se percebe o que ali estão a fazer, em versões normalmente bastante enfezadas. Mas há outras de que eu gosto.
Tomem lá algumas estatuazinhas de Copenhaga. Quando por lá passarem, se eu lá estiver, digam qualquer coisa que eu mostro-vos mais, ok?
1. En drukken faun, “Um fauno bêbedo”, de Andreas Kolberg, 1887 (é o ano que lá está escrito, mas tem de ser o ano em que a estátua lá foi posta, porque Kolberg morreu em 1869)
2. Drengen og Pindsvinet, “O rapaz e o ouriço”, de Ingeborg Plockross Irminger, 1899
3. Moderne Pige, “Rapariga moderna”, de Gerhard Henning, 1930
4. Fiskerkone, “Peixeira, de Charles Svejstrup Madsen, 1939
5. Hyldemor, “O espírito do sabugueiro”, de Hanne Varming, 1993
6. Pigerne i lufthavnen, “As raparigas no aeroporto”, de Hanne Varming, 1998
7. Mødet, “O encontro”, de Joachim Bang, 2003
Era uma das minhas diversões em Copenhaga, quando não tinha nada que fazer: andar pela cidade à procura de estátuas, e estudar as que eu achasse que mereciam ser estudadas. A verdade é que, no meio de tantas estatuazinhas, há muitas que não têm o menor interesse, quando não são mesmo de bastante mau gosto – muitas cópias de estátuas clássicas, por exemplo, tanto gregas e latinas como do neoclassicismo europeu, que não se percebe o que ali estão a fazer, em versões normalmente bastante enfezadas. Mas há outras de que eu gosto.
Tomem lá algumas estatuazinhas de Copenhaga. Quando por lá passarem, se eu lá estiver, digam qualquer coisa que eu mostro-vos mais, ok?
1. En drukken faun, “Um fauno bêbedo”, de Andreas Kolberg, 1887 (é o ano que lá está escrito, mas tem de ser o ano em que a estátua lá foi posta, porque Kolberg morreu em 1869)
2. Drengen og Pindsvinet, “O rapaz e o ouriço”, de Ingeborg Plockross Irminger, 1899
3. Moderne Pige, “Rapariga moderna”, de Gerhard Henning, 1930
4. Fiskerkone, “Peixeira, de Charles Svejstrup Madsen, 1939
5. Hyldemor, “O espírito do sabugueiro”, de Hanne Varming, 1993
6. Pigerne i lufthavnen, “As raparigas no aeroporto”, de Hanne Varming, 1998
7. Mødet, “O encontro”, de Joachim Bang, 2003
Tradução, mais uma vez: as reais dificuldades
É verdade que há coisas intraduzíveis e outras só parcialmente ou mal traduzíveis. Não palavras isoladas em abstracto, como saudade (e ele a dar-lhe!...), mas frases ou palavras em contextos específicos.
Alguém me contou uma vez que tinha tido um teste na universidade cujo enunciado era o seguinte: “«Esta frase está escrita em português». Traduza a frase para qualquer língua à sua escolha e justifique a sua tradução.” Neste caso, é preciso fazer uma escolha entre (digo assim para simplificar) traduzir a frase como tal ou a relação entre a frase e a língua em que está escrita. Sem contexto, parece que nenhuma das opções é satisfatória. Tenho a certeza de que, sem mais informação, muita gente acabaria por preferir traduzir a auto-referência da frase, por exemplo para inglês, como “This sentence is written in English”. Mas, se tivermos um contexto do tipo “Quando leu o papel, o Dr. Nobre exclamou: «Esta frase está escrita em português. Mas é português do séc. XVI…»”, a tradutora não hesita em traduzir, para inglês, “This sentence is written in Portuguese”.
Felizmente, problemas deste tipo não se colocam muitas vezes na prática. Mas é pena, porque são divertidos. Vejamos uma outra situação de impossibilidade de tradução satisfatória – uma tirada de um sketch humorístico dos argentinos Les Luthiers:
Alguém me contou uma vez que tinha tido um teste na universidade cujo enunciado era o seguinte: “«Esta frase está escrita em português». Traduza a frase para qualquer língua à sua escolha e justifique a sua tradução.” Neste caso, é preciso fazer uma escolha entre (digo assim para simplificar) traduzir a frase como tal ou a relação entre a frase e a língua em que está escrita. Sem contexto, parece que nenhuma das opções é satisfatória. Tenho a certeza de que, sem mais informação, muita gente acabaria por preferir traduzir a auto-referência da frase, por exemplo para inglês, como “This sentence is written in English”. Mas, se tivermos um contexto do tipo “Quando leu o papel, o Dr. Nobre exclamou: «Esta frase está escrita em português. Mas é português do séc. XVI…»”, a tradutora não hesita em traduzir, para inglês, “This sentence is written in Portuguese”.
Felizmente, problemas deste tipo não se colocam muitas vezes na prática. Mas é pena, porque são divertidos. Vejamos uma outra situação de impossibilidade de tradução satisfatória – uma tirada de um sketch humorístico dos argentinos Les Luthiers:
“Escena séptima del cuadro tercero del acto primero. El Rey Enrique Sexto ha rezado la novena en su cuarto y después de unos segundos atraviesa la quinta.”
Não há grande problema em traduzir a frase para português e conservar as intenções humorísticas dos autores, com a concatenação abusiva de numerais ordinais: “Cena sétima do quadro terceiro do primeiro acto. O Rei Enrique Sexto rezou a novena no seu quarto e, passados uns segundos, atravessa a quinta.” Mas já se perde alguma coisa: noveno, por muito que exista em português como ordinal, não é um sinónimo comum de nono, pelo que não vai ser imediatamente entendido por toda a gente como fazendo parte da sucessão de ordinais. Muito mais se perde, claro está, se se traduzir para outras línguas em que o jogo de palavras não se pode traduzir, como o inglês, por exemplo. Há que optar: ou se perde o jogo de palavras e se traduz o “sentido” da frase [se ponho sentido entre aspas é porque acho que aqui o sentido primeiro é, precisamente, o jogo de palavras], ou se mantém esse jogo, se se achar que é isso o fundamental, e abandona‑se a “literalidade” da tradução. Mas é difícil, porque ninth (“nono”), fourth (“quarto”) e fifth (“quinto”) não têm segundos significados com que possamos construir outro jogo de palavras. No caso de fourth, como se trata de um texto oral, seria fácil usar antes a palavra forth (“para fora; para a frente, adiante”), que se pronuncia da mesma maneira. Mas, e ninth e fifth? É difícil, deixo‑vos a tradução como trabalho para casa...
Outro caso difícil é aquele em que há que traduzir, juntamente com uma frase, uma referência cultural específica. Mais um exemplo de um texto do mesmo grupo argentino, também muito simples. No meio de uma canção em que se descreve uma batalha, ouve‑se uma voz gritar: “¡Defensa y Victoria, Libertad e Independencia, Triunvirato y Avenida de los Incas!” Acho que todos percebem que o efeito humorístico resulta de se passar abruptamente de exclamações patrióticas a nomes de avenidas de Buenos Aires. A tradução parece fácil, porque há em todo o lado avenidas com nomes que se prestam. Pensando num público português, poderia traduzir‑se, por exemplo: “Defesa e Vitória, Independência e Liberdade, Almirante Reis, Areeiro!” Mas em Lisboa não é comum dizer só Liberdade por Avenida da Liberdade (já Almirante Reis se diz sem dizer Avenida). E, mais importante do que isso, em Lisboa não há, como em Buenos Aires, carrinhas de transporte colectivo em que os cobradores gritam o destino para que as pessoas que esperam na paragem saibam para onde vai o autocarrinho.
Este problema das referências culturais põe-se também quando se trata de comparações e metáforas. É claro que estas imagens só fazem sentido quando se conhece o seu termo real, aquilo com que o que se descreve é directa ou indirectamente comparado: se eu disser que “Francisco esbugalhou os olhos. «Parece uma jágara», pensou Mariana”, a imagem não surte grande efeito num leitor que nunca tenha visto estes animais... Ou quando se faz apelo a conhecimentos comuns a um determinado público: se alguém escrever “uma dessas casas típicas do Sul” num texto que fala de Inglaterra, o mais normal é não vir nenhuma imagem à cabeça de alguém que leia o texto e não conheça o Sul de Inglaterra. Ou então, pior ainda, vem‑lhe à cabeça a imagem de uma casa de um Sul que conheça (uma casa algarvia, no caso de um português comum...).
Mas tudo isto já não são questões linguísticas, e o tradutor pouco pode fazer. Talvez pôr uma nota de rodapé com uma explicação, mas disso também não se pode abusar[1]...
[1] Porque é chato estar sempre a ir às notas de rodapé, não é?
Outro caso difícil é aquele em que há que traduzir, juntamente com uma frase, uma referência cultural específica. Mais um exemplo de um texto do mesmo grupo argentino, também muito simples. No meio de uma canção em que se descreve uma batalha, ouve‑se uma voz gritar: “¡Defensa y Victoria, Libertad e Independencia, Triunvirato y Avenida de los Incas!” Acho que todos percebem que o efeito humorístico resulta de se passar abruptamente de exclamações patrióticas a nomes de avenidas de Buenos Aires. A tradução parece fácil, porque há em todo o lado avenidas com nomes que se prestam. Pensando num público português, poderia traduzir‑se, por exemplo: “Defesa e Vitória, Independência e Liberdade, Almirante Reis, Areeiro!” Mas em Lisboa não é comum dizer só Liberdade por Avenida da Liberdade (já Almirante Reis se diz sem dizer Avenida). E, mais importante do que isso, em Lisboa não há, como em Buenos Aires, carrinhas de transporte colectivo em que os cobradores gritam o destino para que as pessoas que esperam na paragem saibam para onde vai o autocarrinho.
Este problema das referências culturais põe-se também quando se trata de comparações e metáforas. É claro que estas imagens só fazem sentido quando se conhece o seu termo real, aquilo com que o que se descreve é directa ou indirectamente comparado: se eu disser que “Francisco esbugalhou os olhos. «Parece uma jágara», pensou Mariana”, a imagem não surte grande efeito num leitor que nunca tenha visto estes animais... Ou quando se faz apelo a conhecimentos comuns a um determinado público: se alguém escrever “uma dessas casas típicas do Sul” num texto que fala de Inglaterra, o mais normal é não vir nenhuma imagem à cabeça de alguém que leia o texto e não conheça o Sul de Inglaterra. Ou então, pior ainda, vem‑lhe à cabeça a imagem de uma casa de um Sul que conheça (uma casa algarvia, no caso de um português comum...).
Mas tudo isto já não são questões linguísticas, e o tradutor pouco pode fazer. Talvez pôr uma nota de rodapé com uma explicação, mas disso também não se pode abusar[1]...
[1] Porque é chato estar sempre a ir às notas de rodapé, não é?
09/02/08
A morte de deus e outras questões morais
Dizia-me noutro dia um amigo que quando escrevo sobre religião sou panfletário. Suspeito, pelo tom em que ele o dizia, que ser panfletário não é nada que ele louve… Mas eu sim. Quando escrevo sobre religião, o que eu quero mesmo é ser panfletário. Mais um piqu’nino (sic) texto panfletário sobre religião:
Não tenho nada contra as pessoas quererem convencer-me da verdade da sua religião, desde que não me obriguem a aceitá-la. Vejam bem, eu até acho muito esquisito – e moralmente inaceitável – que se critiquem os monoteísmos oriundos do Médio Oriente por incluírem uma ideia de missão e se louve a ausência dessa ideia noutras religiões*. De facto, o que é que há de louvável em acreditar que se possui a verdade (todas as pessoas religiosas acreditam nisso, é uma condição da religião) e guardá-la apenas para os seus? “Desde que eu vá para o Céu (ou “desde que eu reencarne como monge”, para o caso tanto faz), os outros podem ir para o Inferno”. É como inventar a cura de uma doença e partilhá-la apenas entre os amigos… O que é inadmissível é a imposição de ideias, não o tentar convencer-se os outros da sua fé – a tentativa de convencer o outro do que achamos que é bom, essa, é a única atitude altruísta responsável, a base da democracia e a única maneira de o mundo ir melhorando alguma coisinha…
Mas o problema é que agora, pelo menos na Europa, é a soberba que impera. A maior parte dos cristãos, por exemplo, deixou de argumentar pela verdade da sua fé. Agora, já não se tenta provar a existência de deus. Agora, diz-se apenas: “Bom, tu dizes o que quiseres, mas isso não me interessa para nada, porque eu creio!” A atitude é de um paternalismo confrangedor. Há, neste sentido, algum retrocesso em relação à tradição de discussão racional da coisa divina. E eu tenho, ainda assim, mais respeito por Tomás de Aquino ou Santo Agostinho do que tenho pelos defensores do “cada um acredita no que quer e isso não se discute”. Uma ideia que nos vem logo à cabeça é a de que a culpa é de Lutero e da sua ideia estranha de que “só a fé salva”… Mas a verdadeira razão é outra: é que às pessoas religiosas já não resta senão fugir à discussão...
Em estados anteriores do conhecimento humano, a ideia de deus era uma boa hipótese de explicação do universo. Não era a única, mas não era pior do que as outras. Se recuarmos muito no tempo, até era possivelmente a melhor. O que se passou nos últimos séculos é que a religião perdeu claramente a sua batalha de ideias com a ciência. Por exemplo: não há ninguém que tenha conhecimentos científicos minimamente sólidos e possa acreditar no criacionismo. A não ser por cegueira, por uma cegueira instalada na sua mente antes de aprender ciência. É que, como tem sido argumentado muitas vezes, para quem tenha consciência das questões que se colocam quando se pretende explicar a origem do universo, torna-se óbvio que a hipótese de deus complica muitíssimo mais do que explica. A célebre frase de Nietzsche “Deus morreu” aplica-se, mais do que a qualquer outra coisa, à longa discussão racional entre crentes e não crentes que percorreu a história da Europa: a ciência matou deus.
No fundo, a atitude do “deixem-me em paz com as minhas crenças, não quero discutir” tem um paralelo na atitude daqueles racistas que, quando perderam a batalha científica, passaram a ser “racialistas”: “Está bem, não se pode provar a superioridade da nossa raça, mas podemos querer que, por muito que sejam todas iguais, as raças vivam separadas!”
Que respeito se há-de ter, digam-me lá, pela falta de respeito?
__________
* Até que ponto é que se trata de etno-romantismo e até que ponto é que há mesmo religiões sem a ideia de missão, eis uma discussão que não cabe agora aqui. Seria interessante averiguar se a ausência de missão não está sempre associada à ideia racista de que uma determinada religião é só para um povo ou à falta de poder (económico, militar) para divulgar ou impor essa religião…
Não tenho nada contra as pessoas quererem convencer-me da verdade da sua religião, desde que não me obriguem a aceitá-la. Vejam bem, eu até acho muito esquisito – e moralmente inaceitável – que se critiquem os monoteísmos oriundos do Médio Oriente por incluírem uma ideia de missão e se louve a ausência dessa ideia noutras religiões*. De facto, o que é que há de louvável em acreditar que se possui a verdade (todas as pessoas religiosas acreditam nisso, é uma condição da religião) e guardá-la apenas para os seus? “Desde que eu vá para o Céu (ou “desde que eu reencarne como monge”, para o caso tanto faz), os outros podem ir para o Inferno”. É como inventar a cura de uma doença e partilhá-la apenas entre os amigos… O que é inadmissível é a imposição de ideias, não o tentar convencer-se os outros da sua fé – a tentativa de convencer o outro do que achamos que é bom, essa, é a única atitude altruísta responsável, a base da democracia e a única maneira de o mundo ir melhorando alguma coisinha…
Mas o problema é que agora, pelo menos na Europa, é a soberba que impera. A maior parte dos cristãos, por exemplo, deixou de argumentar pela verdade da sua fé. Agora, já não se tenta provar a existência de deus. Agora, diz-se apenas: “Bom, tu dizes o que quiseres, mas isso não me interessa para nada, porque eu creio!” A atitude é de um paternalismo confrangedor. Há, neste sentido, algum retrocesso em relação à tradição de discussão racional da coisa divina. E eu tenho, ainda assim, mais respeito por Tomás de Aquino ou Santo Agostinho do que tenho pelos defensores do “cada um acredita no que quer e isso não se discute”. Uma ideia que nos vem logo à cabeça é a de que a culpa é de Lutero e da sua ideia estranha de que “só a fé salva”… Mas a verdadeira razão é outra: é que às pessoas religiosas já não resta senão fugir à discussão...
Em estados anteriores do conhecimento humano, a ideia de deus era uma boa hipótese de explicação do universo. Não era a única, mas não era pior do que as outras. Se recuarmos muito no tempo, até era possivelmente a melhor. O que se passou nos últimos séculos é que a religião perdeu claramente a sua batalha de ideias com a ciência. Por exemplo: não há ninguém que tenha conhecimentos científicos minimamente sólidos e possa acreditar no criacionismo. A não ser por cegueira, por uma cegueira instalada na sua mente antes de aprender ciência. É que, como tem sido argumentado muitas vezes, para quem tenha consciência das questões que se colocam quando se pretende explicar a origem do universo, torna-se óbvio que a hipótese de deus complica muitíssimo mais do que explica. A célebre frase de Nietzsche “Deus morreu” aplica-se, mais do que a qualquer outra coisa, à longa discussão racional entre crentes e não crentes que percorreu a história da Europa: a ciência matou deus.
No fundo, a atitude do “deixem-me em paz com as minhas crenças, não quero discutir” tem um paralelo na atitude daqueles racistas que, quando perderam a batalha científica, passaram a ser “racialistas”: “Está bem, não se pode provar a superioridade da nossa raça, mas podemos querer que, por muito que sejam todas iguais, as raças vivam separadas!”
Que respeito se há-de ter, digam-me lá, pela falta de respeito?
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* Até que ponto é que se trata de etno-romantismo e até que ponto é que há mesmo religiões sem a ideia de missão, eis uma discussão que não cabe agora aqui. Seria interessante averiguar se a ausência de missão não está sempre associada à ideia racista de que uma determinada religião é só para um povo ou à falta de poder (económico, militar) para divulgar ou impor essa religião…
08/02/08
Evolução e revolução, fama e anonimato: facas de desossar e facas de fazer filetes
O mundo parece que avança sempre aos sacões. Ou quase sempre. Os cabelos brancos não vão aparecendo um a um. De repente, aparece uma mão-cheia deles e depois podem passar-se semanas em que não se nota mais alteração nenhuma. As crianças também é aos pulos que crescem. Há períodos em que crescem de repente e depois são capazes de não crescer nada durante algum tempo, até outro período de crescimento. Quer dizer, as coisas não são bem assim… Na realidade, o que há são períodos de crescimento mais rápido e períodos de crescimento mais lento. Mas é assim que um observador desprevenido vê a coisa – solavancos, rupturas… E, como o cabelo e os miúdos, as sociedades. A economia, os sistemas sociais, tudo está em permanente mudança, mas há períodos em que a mudança é óbvia, em que se vê um salto. Evolução, revolução, é já velha a discussão…
O mesmo se passa, claro está, com o saber e com a aplicação prática desse saber. De vez em quando, há uma revolução, um avanço repentino. E alguém que é responsável da descoberta ou da invenção. Se for modesto, o que esse inovador dirá é que o avanço só é possível por ele se apoiar “nos ombros dos gigantes” que trabalharam no mesmo assunto antes dele e graças ao trabalho de muita gente anónima que faz a parte chata do trabalho de acumulação do conhecimento: alimentar e preservar as imensas bases de dados que permitem as grandes conclusões revolucionárias. É como os detectives e os seus ajudantes, a mesma coisa – tem de haver quem verifique impressões digitais e registos de matrículas de automóveis para depois os cherlocolmes poderem fazer as suas brilhantes deduções e descobrir que o assassino, afinal, não era o mordomo, mas sim o namorado da amante.
Quando se trata de conhecimentos, técnicas ou criações estéticas que se foram desenvolvendo em cada sociedade ao longo de muito tempo, temos a sensação de que essa “cultura de um povo” não é produto do trabalho de ninguém em especial. A música tradicional é um exemplo óbvio. Temos a impressão de que uma canção tradicional não foi escrita por ninguém, que foi “o povo” que fez a música e a letra, grande compositor e grande poeta que ele é. Mas é uma ilusão. Foi uma pessoa concreta que criou uma melodia e uma pessoa concreta que fez uma letra, e foram outras pessoas concretas que introduziram alterações concretas nessa letra e nessa música. O mesmo com o mobiliário tradicional, os bolos tradicionais e a maneira tradicional de matar um porco. Tradicional quer dizer “de autor desconhecido”. Sabemos quem inventou as amêijoas à Bulhão Pato, mas, se o Bulhão Pato não fosse quem era, as amêijoas seriam hoje, provavelmente, amêijoas à lisboeta ou uma coisa assim.
Pois é... Uma pessoa maravilha-se com o génio dos Newtons, dos Darwins, dos Edisons ou dos Franklins, mas esquece-se sempre de se maravilhar com o génio dos génios desconhecidos. Os vários tipos de facas, por exemplo, quem os terá inventado? Alguém foi, ou meia dúzia de pessoas, no máximo, porque não é nada provável que a catana, por hipótese (ponhamos que é essa a forma primitiva do objecto faca, que não é de certeza…), tenha “evoluído”, à razão de milímetro por geração, até se diferenciar em cutelo, faca de desossar, faca de serrilha para pão e faca de filetes. Mas quem? O facto é que uma faca de desossar é uma obra de se lhe tirar o chapéu, uma maravilha técnica. Ou uma faca de fazer filetes. Experimentem fazer filetes com uma faca rígida de carne ou de legumes ou desossar um peru assado com uma faca de fruta ou de pão e verão se eu não tenho razão…
O mesmo se passa, claro está, com o saber e com a aplicação prática desse saber. De vez em quando, há uma revolução, um avanço repentino. E alguém que é responsável da descoberta ou da invenção. Se for modesto, o que esse inovador dirá é que o avanço só é possível por ele se apoiar “nos ombros dos gigantes” que trabalharam no mesmo assunto antes dele e graças ao trabalho de muita gente anónima que faz a parte chata do trabalho de acumulação do conhecimento: alimentar e preservar as imensas bases de dados que permitem as grandes conclusões revolucionárias. É como os detectives e os seus ajudantes, a mesma coisa – tem de haver quem verifique impressões digitais e registos de matrículas de automóveis para depois os cherlocolmes poderem fazer as suas brilhantes deduções e descobrir que o assassino, afinal, não era o mordomo, mas sim o namorado da amante.
Quando se trata de conhecimentos, técnicas ou criações estéticas que se foram desenvolvendo em cada sociedade ao longo de muito tempo, temos a sensação de que essa “cultura de um povo” não é produto do trabalho de ninguém em especial. A música tradicional é um exemplo óbvio. Temos a impressão de que uma canção tradicional não foi escrita por ninguém, que foi “o povo” que fez a música e a letra, grande compositor e grande poeta que ele é. Mas é uma ilusão. Foi uma pessoa concreta que criou uma melodia e uma pessoa concreta que fez uma letra, e foram outras pessoas concretas que introduziram alterações concretas nessa letra e nessa música. O mesmo com o mobiliário tradicional, os bolos tradicionais e a maneira tradicional de matar um porco. Tradicional quer dizer “de autor desconhecido”. Sabemos quem inventou as amêijoas à Bulhão Pato, mas, se o Bulhão Pato não fosse quem era, as amêijoas seriam hoje, provavelmente, amêijoas à lisboeta ou uma coisa assim.
Pois é... Uma pessoa maravilha-se com o génio dos Newtons, dos Darwins, dos Edisons ou dos Franklins, mas esquece-se sempre de se maravilhar com o génio dos génios desconhecidos. Os vários tipos de facas, por exemplo, quem os terá inventado? Alguém foi, ou meia dúzia de pessoas, no máximo, porque não é nada provável que a catana, por hipótese (ponhamos que é essa a forma primitiva do objecto faca, que não é de certeza…), tenha “evoluído”, à razão de milímetro por geração, até se diferenciar em cutelo, faca de desossar, faca de serrilha para pão e faca de filetes. Mas quem? O facto é que uma faca de desossar é uma obra de se lhe tirar o chapéu, uma maravilha técnica. Ou uma faca de fazer filetes. Experimentem fazer filetes com uma faca rígida de carne ou de legumes ou desossar um peru assado com uma faca de fruta ou de pão e verão se eu não tenho razão…
03/02/08
Babalaze, chamboco e rondável, mais curral e picanino
Há na África Austral (ou pelo menos na África Austral que eu conheço, que é África do Sul, Zimbábuè e Moçambique) palavras que não são bem de uma língua específica, mas mais património comum… Deixo-vos aqui 3 palavras que o português de Moçambique partilha com o afrikaans e com o inglês desta região – e, provavelmente, com outras línguas daqui.
Babalaze é ressaca de bebedeira. Babalaze, masculino ou feminino, e babalaza são a versão portuguesa, esta última igual à palavra ronga, babalass a versão inglesa, babalaas em afrikaans; e sei que em ndebele é babarasi e em zulu é ibhabhalazi. O mais das vezes é referida esta palavra zulu como sendo a que deu origem às outras todas. Bonita palavra, não é?, em todas estas variações…
Chamboco é instrumento para bater – vara, pau, chicote – e de chamboco fez-se chambocar, que é, claro está, vergastar ou chicotear. A palavra sjambok (pronunciada [chambok]), que é a versão afrikaans de chamboco, usa-se também em inglês. Ao que parece, a palavra vem do urdu chabuk pelo malaio samboq ou chambok. Terão sido os portugueses ou os neerlandeses a trazê-la? Ou outra gente?
Rondável, feminino, é uma casa redonda e pequena. Em inglês (escrito rondavel) e em afrikaans (escrito rondawel), a palavra designa as casas redondas típicas de algumas etnias africanas, mas pode também designar qualquer edifício com uma forma semelhante, por exemplo num complexo turístico. Em português, só a tenho ouvido empregada neste último sentido. Dizem os dicionários que a palavra é originalmente afrikaans.
Agora, duas palavras de origem portuguesa nas línguas europeias aqui à volta:
Kraal é uma palavra afrikaans usada também em inglês para designar uma aldeia de palhotas com uma vedação... ou um curral. A palavra vem, como parece óbvio, do português curral. O Concise Oxford Dictionary diz que o português foi buscar a palavra curral ao nama, uma língua da África Austral, mas os dicionários portugueses dão curral como tendo origem latina, e é isso que me parece correcto, mesmo sem ter acesso à datação das primeiras ocorrências da palavra. Como se explicaria, senão, a existência de corral em castelhano? Aliás, o Dicionário da Academia Espanhola, que é bastante fiável, propõe para corral a mesma etimologia que, por exemplo, o meu dicionário Porto Editora propõe para curral: o latim vulgar (não atestado) currale.
Uma maneira não muito simpática de designar uma criança negra é, em inglês da zona, pekkie ou pikkie. A palavra é uma abreviatura de piccanin ou piccaninny, palavras que se encontram em qualquer dicionário de inglês. O Concise Oxford Dictionary diz que piccanin entrou no inglês pelo crioulo das Antilhas e deriva do espanhol pequeño ou do português pequeno. Já um pouco identificado (mas sensato) Phillip diz, num site sul-africano de viagens, que a palavra picannin não é de origem caribenha, mas sim rodesiana, e que é muito improvável que a palavra venha do espanhol pequeño, porque os espanhóis não andaram por estas zonas, só os portugueses, pelo que a palavra deve vir de pequenino. O que eu digo é que, independentemente de ter nascido na América Central ou na África Austral, só faz sentido que a palavra venha mesmo do português pequenino, porque senão seria *piken ou *pikenye, uma coisa assim, mas nunca piccannin...
Babalaze é ressaca de bebedeira. Babalaze, masculino ou feminino, e babalaza são a versão portuguesa, esta última igual à palavra ronga, babalass a versão inglesa, babalaas em afrikaans; e sei que em ndebele é babarasi e em zulu é ibhabhalazi. O mais das vezes é referida esta palavra zulu como sendo a que deu origem às outras todas. Bonita palavra, não é?, em todas estas variações…
Chamboco é instrumento para bater – vara, pau, chicote – e de chamboco fez-se chambocar, que é, claro está, vergastar ou chicotear. A palavra sjambok (pronunciada [chambok]), que é a versão afrikaans de chamboco, usa-se também em inglês. Ao que parece, a palavra vem do urdu chabuk pelo malaio samboq ou chambok. Terão sido os portugueses ou os neerlandeses a trazê-la? Ou outra gente?
Rondável, feminino, é uma casa redonda e pequena. Em inglês (escrito rondavel) e em afrikaans (escrito rondawel), a palavra designa as casas redondas típicas de algumas etnias africanas, mas pode também designar qualquer edifício com uma forma semelhante, por exemplo num complexo turístico. Em português, só a tenho ouvido empregada neste último sentido. Dizem os dicionários que a palavra é originalmente afrikaans.
Agora, duas palavras de origem portuguesa nas línguas europeias aqui à volta:
Kraal é uma palavra afrikaans usada também em inglês para designar uma aldeia de palhotas com uma vedação... ou um curral. A palavra vem, como parece óbvio, do português curral. O Concise Oxford Dictionary diz que o português foi buscar a palavra curral ao nama, uma língua da África Austral, mas os dicionários portugueses dão curral como tendo origem latina, e é isso que me parece correcto, mesmo sem ter acesso à datação das primeiras ocorrências da palavra. Como se explicaria, senão, a existência de corral em castelhano? Aliás, o Dicionário da Academia Espanhola, que é bastante fiável, propõe para corral a mesma etimologia que, por exemplo, o meu dicionário Porto Editora propõe para curral: o latim vulgar (não atestado) currale.
Uma maneira não muito simpática de designar uma criança negra é, em inglês da zona, pekkie ou pikkie. A palavra é uma abreviatura de piccanin ou piccaninny, palavras que se encontram em qualquer dicionário de inglês. O Concise Oxford Dictionary diz que piccanin entrou no inglês pelo crioulo das Antilhas e deriva do espanhol pequeño ou do português pequeno. Já um pouco identificado (mas sensato) Phillip diz, num site sul-africano de viagens, que a palavra picannin não é de origem caribenha, mas sim rodesiana, e que é muito improvável que a palavra venha do espanhol pequeño, porque os espanhóis não andaram por estas zonas, só os portugueses, pelo que a palavra deve vir de pequenino. O que eu digo é que, independentemente de ter nascido na América Central ou na África Austral, só faz sentido que a palavra venha mesmo do português pequenino, porque senão seria *piken ou *pikenye, uma coisa assim, mas nunca piccannin...
02/02/08
A vida real? Pode ser, está muito bem. Mas… e uma sinfonia?
Uma vez, um amigo meu, depois de me escrever, numa carta, que “o velho Billy [Shakespeare] era o poeta da condição humana”, quis emendar-se, na carta seguinte, afirmando que “não era uma observação esclarecedora por aí além, porque toda a poesia deve ser sobre a condição humana. Que mais existe?” Para este amigo, texto ou filme que não seja sobre como foi ou como é a vida das pessoas no mundo real não tem interesse nenhum. O maravilhoso, a ficção científica, a aventura fantasista, o puro prazer estético da arquitectura da forma, nada disso lhe diz nada. Para quê perder tempo com coisas que não existem?
Ora eu, embora não tendo nada contra a literatura que fale da vida real das pessoas, não entendo bem essa atitude. Bem vistas as coisas, da vida das pessoas está o mundo cheio e, portanto, para conhecer a realidade da condição humana ninguém precisa de ler livros nem de ver filmes, basta-lhe estar no mundo; e quem queira reflectir sobre as coisas sérias da vida e aprender sobre o mundo à sua volta talvez ganhe mais lendo ensaios filosóficos ou trabalhos históricos e científicos do que romances. O que a ficção nos abre, precisamente, é a possibilidade de viver em mundos e tempos diferentes deste em que vivemos. Isto é (mais uma vez…) uma banalidade. Mas também não é aqui que quero chegar. É antes daqui que eu quero partir, para chegar à música.
Naturalmente, esse tal amigo meu não gosta de música. Quer dizer, não é que a música o incomode, mas não tem especial interesse por música. Gosta de letras de alguma canções (quando falam da vida das pessoas), mas o suporte musical dessas letras importa-lhe pouco. E como havia de ser doutra maneira, se lhe interessa só a arte que fale das coisas humanas? Afinal de contas, não há nada que fale menos da vida das pessoas do que a música – da vida das pessoas e do mundo em geral. E no entanto…
Se a diferença de capacidades entre o Homo e outros animais é realmente qualitativa ou apenas quantitativa, eis o que tem sido e continua a ser objecto de uma grande discussão: a linguagem humana é uma característica única no reino animal ou apenas um sistema semelhante ao de muitos animais, apenas com um grau maior de complexidade? A autoconsciência e a consciência dos outros, tal como a temos, é de um tipo essencialmente diferente da consciência dos outros animais ou apenas mais sofisticada? Etc., etc. etc. Ora, se há uma capacidade humana sem paralelo nenhum no resto do mundo animal, é com certeza a da música, esse produto tão secundário da nossa evolução!... Paradoxo curioso: a música não diz absolutamente nada aos seres humanos ou sobre eles, nem lhes serve para absolutamente nada – e é, ainda assim, uma marca fundamental de humanidade.
Ora eu, embora não tendo nada contra a literatura que fale da vida real das pessoas, não entendo bem essa atitude. Bem vistas as coisas, da vida das pessoas está o mundo cheio e, portanto, para conhecer a realidade da condição humana ninguém precisa de ler livros nem de ver filmes, basta-lhe estar no mundo; e quem queira reflectir sobre as coisas sérias da vida e aprender sobre o mundo à sua volta talvez ganhe mais lendo ensaios filosóficos ou trabalhos históricos e científicos do que romances. O que a ficção nos abre, precisamente, é a possibilidade de viver em mundos e tempos diferentes deste em que vivemos. Isto é (mais uma vez…) uma banalidade. Mas também não é aqui que quero chegar. É antes daqui que eu quero partir, para chegar à música.
Naturalmente, esse tal amigo meu não gosta de música. Quer dizer, não é que a música o incomode, mas não tem especial interesse por música. Gosta de letras de alguma canções (quando falam da vida das pessoas), mas o suporte musical dessas letras importa-lhe pouco. E como havia de ser doutra maneira, se lhe interessa só a arte que fale das coisas humanas? Afinal de contas, não há nada que fale menos da vida das pessoas do que a música – da vida das pessoas e do mundo em geral. E no entanto…
Se a diferença de capacidades entre o Homo e outros animais é realmente qualitativa ou apenas quantitativa, eis o que tem sido e continua a ser objecto de uma grande discussão: a linguagem humana é uma característica única no reino animal ou apenas um sistema semelhante ao de muitos animais, apenas com um grau maior de complexidade? A autoconsciência e a consciência dos outros, tal como a temos, é de um tipo essencialmente diferente da consciência dos outros animais ou apenas mais sofisticada? Etc., etc. etc. Ora, se há uma capacidade humana sem paralelo nenhum no resto do mundo animal, é com certeza a da música, esse produto tão secundário da nossa evolução!... Paradoxo curioso: a música não diz absolutamente nada aos seres humanos ou sobre eles, nem lhes serve para absolutamente nada – e é, ainda assim, uma marca fundamental de humanidade.
Sandes, diz ele, com garfo, e batatas fritas com a mão?
A minha proposta é simples: que se deixe de falar de cultura enquanto não se tiver uma ideia, nem que vaga, do que se está a falar. Sim?
As “diferenças culturais” são muitas vezes apresentadas como vedações intransponíveis que foram criadas à nossa volta pelo meio em que vivemos enquanto éramos ainda jovens e que nos hão-de aprisionar toda a vida. A quem achar que a descrição é demasiado caricatural, aconselho a analisar com cuidado os pressupostos em que assentam e as implicações que têm as afirmações normalmente feitas sobre as tais “diferenças” culturais. O facto é que a maior parte das pessoas que as fazem nunca se aventurou fora do que considera a sua “cultura”, atitude esta que não é de modo nenhum ideal para testar o verdadeiro “peso” dessa “cultura” – e ainda menos para pôr em causa o próprio conceito de “cultura”. Ora, as perguntas que nos surgem de imediato mal nos dispomos a questionar a confortável ideia de “cultura” são tão simples como reveladoras – ou atemorizadoras, para alguns. Eis alguns exemplos:
Da lista que se segue, o que é adquirido cedo e está profundamente ancorado em cada um de nós (marque com um X):
a pronúncia do r;
a fé num deus;
a convicção de que quem chega é que tem de cumprimentar quem já está;
a convicção de que há que fazer sempre seguro do recheio da casa;
a convicção de que não há nada na vida que não tenha implicações económicas;
a convicção de que a economia é que determina a nossa vida;
a certeza de que as mulheres devem obedecer aos homens;
o sentimento de que usar meias com sandálias é feio;
a interiorização do ritmo da bourrée da Auvergne como ritmo “normal”;
o sentimento de que a perda de batalhas retóricas diminui uma pessoa;
o sentimento de que é feio falar só por falar;
a ideia de que se deve comer alface com favas guisadas;
o sentimento de que a distância mínima a que se pode estar de desconhecidos é um metro;
o sentimento de estar sujo quando não se toma banho uma vez por dia?
A “cultura” tem como base uma estrutura abstracta inata que é preenchida por convicções e sentimentos, adquiridos com relações precisas e inalteráveis entre eles, ou é como uma acumulação (interminável por definição) de módulos independentes, com pesos e valores diferentes na conduta do seu possuidor? É mais como uma língua ou como a educação escolar?
A informação cultural altera-se muito na passagem de quem a transmite para quem a recebe – por exemplo, de geração para geração?
O que é que alterável e o que é que tem de ser mantido para que uma cultura continue a ser reconhecida como sendo a mesma cultura?
Até que idade tem de ser recebida a informação cultural para ela ficar fortemente ancorada em nós?
Há agentes privilegiados de transmissão cultural – por exemplo, é mais fundo na nossa cultura o que aprendemos com um tio nosso (o copo de vinho sabe melhor bebido de um golo no fim da refeição) ou o que aprendemos na televisão (quem tem a razão do seu lado pode matar à vontade e ganha sempre todas as batalhas)?
Qual é a diferença, se é que ela existe, entre hábito (no sentido forte da palavra) e traço cultural? Se forem coincidentes os dois conceitos, pode considerar-se dormir de meias um traço cultural?
O que eu digo – e todos poderão chegar à mesma conclusão se responderem com honestidade às perguntas acima e a centenas de outras com o mesmo grau de pertinência que inventarão com facilidade – é que os dados mais “culturais”, no sentido de serem adquiridos cedo e serem pouco alteráveis, são os que menos importância têm na vida das pessoas – em termos morais e de preservação da saúde ou aquisição de poder e riqueza, por exemplo. Dados efectivamente culturais são a influência da pronúncia da sua língua em todas as línguas que se aprende, ou saber cantar joik como deve ser, ou deliciar-se com caracoletas assadas. Ainda assim, o primeiro destes três é o único verdadeiramente impossível de adquirir mais tarde. Os outros são apenas difíceis de adquirir mais tarde. Mas a maior parte dos traços “culturais” que têm alguma importância real na relação de cada um com os outros e com o meio físico adquirem-se e perdem-se com relativa facilidade, ao sabor de circunstâncias variadas.
O que é então a cultura? Já o disse várias vezes: São possivelmente maiores as diferenças entre a minha cultura e a cultura de muitos portugueses de Lisboa da minha idade e da minha classe social de origem do que as diferenças entre a minha cultura e a cultura de pessoas de outros países, com outras idades e vindas de outras classes sociais. Isto para não falarmos já das diferenças entre a minha cultura e a cultura de portugueses de outros meios (rurais, por exemplo) e de outras gerações (da geração da minha avó, para não ir muito longe no tempo…), porque essas são com certeza muito maiores do que a diferença entre a minha cultura e a de muitos amigos dinamarqueses que eu tenho. Bem vistas as coisas, a ideia de uma cultura de um país ou de um povo é, no mínimo, pouco razoada – se não mesmo completamente irrazoável…
Quero eu dizer com isto que não há, de sociedade para sociedade, diferenças na maneira de as pessoas pensarem, sentirem e se comportarem? Não, não quero dizer nada disso. O que eu quero dizer é o que disse: enquanto não se fizer uma ideia mínima do que se fala quando se fala de cultura, que não se fale do que não se sonha o que é. Sim?
As “diferenças culturais” são muitas vezes apresentadas como vedações intransponíveis que foram criadas à nossa volta pelo meio em que vivemos enquanto éramos ainda jovens e que nos hão-de aprisionar toda a vida. A quem achar que a descrição é demasiado caricatural, aconselho a analisar com cuidado os pressupostos em que assentam e as implicações que têm as afirmações normalmente feitas sobre as tais “diferenças” culturais. O facto é que a maior parte das pessoas que as fazem nunca se aventurou fora do que considera a sua “cultura”, atitude esta que não é de modo nenhum ideal para testar o verdadeiro “peso” dessa “cultura” – e ainda menos para pôr em causa o próprio conceito de “cultura”. Ora, as perguntas que nos surgem de imediato mal nos dispomos a questionar a confortável ideia de “cultura” são tão simples como reveladoras – ou atemorizadoras, para alguns. Eis alguns exemplos:
Da lista que se segue, o que é adquirido cedo e está profundamente ancorado em cada um de nós (marque com um X):
a pronúncia do r;
a fé num deus;
a convicção de que quem chega é que tem de cumprimentar quem já está;
a convicção de que há que fazer sempre seguro do recheio da casa;
a convicção de que não há nada na vida que não tenha implicações económicas;
a convicção de que a economia é que determina a nossa vida;
a certeza de que as mulheres devem obedecer aos homens;
o sentimento de que usar meias com sandálias é feio;
a interiorização do ritmo da bourrée da Auvergne como ritmo “normal”;
o sentimento de que a perda de batalhas retóricas diminui uma pessoa;
o sentimento de que é feio falar só por falar;
a ideia de que se deve comer alface com favas guisadas;
o sentimento de que a distância mínima a que se pode estar de desconhecidos é um metro;
o sentimento de estar sujo quando não se toma banho uma vez por dia?
A “cultura” tem como base uma estrutura abstracta inata que é preenchida por convicções e sentimentos, adquiridos com relações precisas e inalteráveis entre eles, ou é como uma acumulação (interminável por definição) de módulos independentes, com pesos e valores diferentes na conduta do seu possuidor? É mais como uma língua ou como a educação escolar?
A informação cultural altera-se muito na passagem de quem a transmite para quem a recebe – por exemplo, de geração para geração?
O que é que alterável e o que é que tem de ser mantido para que uma cultura continue a ser reconhecida como sendo a mesma cultura?
Até que idade tem de ser recebida a informação cultural para ela ficar fortemente ancorada em nós?
Há agentes privilegiados de transmissão cultural – por exemplo, é mais fundo na nossa cultura o que aprendemos com um tio nosso (o copo de vinho sabe melhor bebido de um golo no fim da refeição) ou o que aprendemos na televisão (quem tem a razão do seu lado pode matar à vontade e ganha sempre todas as batalhas)?
Qual é a diferença, se é que ela existe, entre hábito (no sentido forte da palavra) e traço cultural? Se forem coincidentes os dois conceitos, pode considerar-se dormir de meias um traço cultural?
O que eu digo – e todos poderão chegar à mesma conclusão se responderem com honestidade às perguntas acima e a centenas de outras com o mesmo grau de pertinência que inventarão com facilidade – é que os dados mais “culturais”, no sentido de serem adquiridos cedo e serem pouco alteráveis, são os que menos importância têm na vida das pessoas – em termos morais e de preservação da saúde ou aquisição de poder e riqueza, por exemplo. Dados efectivamente culturais são a influência da pronúncia da sua língua em todas as línguas que se aprende, ou saber cantar joik como deve ser, ou deliciar-se com caracoletas assadas. Ainda assim, o primeiro destes três é o único verdadeiramente impossível de adquirir mais tarde. Os outros são apenas difíceis de adquirir mais tarde. Mas a maior parte dos traços “culturais” que têm alguma importância real na relação de cada um com os outros e com o meio físico adquirem-se e perdem-se com relativa facilidade, ao sabor de circunstâncias variadas.
O que é então a cultura? Já o disse várias vezes: São possivelmente maiores as diferenças entre a minha cultura e a cultura de muitos portugueses de Lisboa da minha idade e da minha classe social de origem do que as diferenças entre a minha cultura e a cultura de pessoas de outros países, com outras idades e vindas de outras classes sociais. Isto para não falarmos já das diferenças entre a minha cultura e a cultura de portugueses de outros meios (rurais, por exemplo) e de outras gerações (da geração da minha avó, para não ir muito longe no tempo…), porque essas são com certeza muito maiores do que a diferença entre a minha cultura e a de muitos amigos dinamarqueses que eu tenho. Bem vistas as coisas, a ideia de uma cultura de um país ou de um povo é, no mínimo, pouco razoada – se não mesmo completamente irrazoável…
Quero eu dizer com isto que não há, de sociedade para sociedade, diferenças na maneira de as pessoas pensarem, sentirem e se comportarem? Não, não quero dizer nada disso. O que eu quero dizer é o que disse: enquanto não se fizer uma ideia mínima do que se fala quando se fala de cultura, que não se fale do que não se sonha o que é. Sim?