19/02/20

Personalidade e circunstâncias

Tomamos às vezes conta de uma cadela de uma senhora nossa amiga, que às vezes toma conta da nossa cadela (a senhora, não a cadela, bem entendido). As duas cadelas são da mesma idade e conhecem-se desde pequenas. Acho que são aquilo a que as adolescentes chamam agora BFF, best friends forever.

Para facilitar a narrativa, chamemos à nossa cadela Sally e à sua amiga Nelly. A Sally tem, além desta grande amiga, mais duas grandes amigas de infância aqui na vizinhança, a que chamaremos, também para facilitar a narrativa, Molly e Lilly.

Molly e Lilly são duas pazes de alma – nunca as ouvi a ladrar nem a bichos nem a humanos. A Sally e a Nally são menos pacatas: Sally zanga-se muitas vezes com outros cães e ladra muito a pessoas que passam ou que entram no quintal; Nelly não costuma ladrar a humanos, mas é muito agressiva com outros animais, incluindo os da sua espécie. Às vezes passa-se, como se costume dizer. É cadela de caça, enfim. Da última vez que tomámos conta dela, saltou para o quintal vizinho e matou uma galinha que lá andava a passear.

Podemos dizer que os cães têm personalidades diferentes, como as pessoas e outros bichos. Que resultam, claro, da sua natureza e da maneira como são educados. Mas vejam: quando está com a Nelly, a Sally mostra-se também agressiva com outros cães, mesmo com as suas melhores amigas, Molly e Lilly. Uma pessoa fica sem saber o que pensar… Ou antes, uma pessoa é obrigada a pensar que essa coisa de personalidade tem muito que se lhe diga… Bom, neste texto falo de personalidade em sentido lato, no sentido de «conjunto de ações espontâneas e reações de um indivíduo, incluindo gostos nas reações». Se não vos agradar este conceito alargado de personalidade, leiam, no que se segue, apenas «ações e reações» onde escrevo personalidade.

Este texto é uma continuação de uma conversa iniciada aqui em fins de agosto de 2013, com o texto «Impessoal e transmissível». «Impessoal e transmissível» é como eu qualificava a personalidade de cada um, que, ao contrário do que se costuma pensar, muda conforma as circunstâncias – e sobretudo segundo o contexto social em que nos encontremos. Dizia eu no meu texto de 2013 que, embora não me custe aceitar que traços de personalidade ou capacidades—como gentileza, agressividade, criatividade, inovação, etc.—possam, em absoluto, variar de pessoa para pessoa, «nem o riso nem a crueldade estão apenas dentro das pessoas». Estão também nas suas circunstâncias e no seu papel social.

Porque escrevi eu riso e crueldade? Bom, quando escrevi crueldade, estava provavelmente a pensar em experiências célebres, como a de Phillip Zimbardo, em que estudantes a quem foi dado o papel de guardas maltrataram estudantes a quem foi dado o papel de prisioneiros, a de Stanley Milgram, em que os participantes davam choques elétricos a outros participantes, para obedecer ordens de alguém a quem reconheciam algum tipo de autoridade e outras semelhantes. Não sabia na altura que os estudos de Zimbardo e Milgram sofrem de graves problemas metodológicos, se é que não se podem mesmo considerar fraudulentos (já para não falar dos seus aspetos éticos), mas não são precisos estes resultados espetaculares para se reconhecer que, em maior ou menor grau, a posição de uma pessoa na hierarquia das relações de poder, se não determina, influencia grandemente a maneira como trata os outros.

Quanto ao riso, não sei se já teria lido, na altura, um estudo de 2007, What’s So Funny About Not Having Money? The Effects of Power on Laughter, em que se testava «a hipótese de que ocupar uma posição de pouco poder aumenta a probabilidade de riso, presumivelmente como meio de ganhar amigos e adeptos». Pelo menos, as suas conclusões gerais não me eram estranhas. Mas acabo de o ler agora e é essa leitura (ou releitura, não sei) que, juntamente com a observação do comportamento da minha cadela, que motiva diretamente este texto.

Toda a gente sabe que a graça que se acha a uma anedota não depende só da própria anedota, mas também de quem a conta. Algumas pessoas, porém, poderão não ter consciência de que isso depende também das relações de poder entre quem conta e quem ouve a anedota.

Para o estudo em questão, Tyler Stillman, R. Baumeister e C. De Wall fizeram duas experiências, uma com 36 estudantes e outra com 96 estudantes (todas do sexo feminino, não sei porquê) e duas colaboradoras, uma que fazia de entrevistadora e outra que fazia de investigadora.

Na primeira experiência, as estudantes eram entrevistadas por uma investigadora que, no decurso das entrevistas, dizia quatro piadas sem graça nenhuma, sempre em tom monótono. Nalguns casos, era dito à entrevistada que ela poderia ser selecionada pela entrevistadora para um prémio em dinheiro, o que colocava a entrevistada numa situação de «dependência» da entrevistadora. Noutros casos, não havia prémio. O resultado é que as entrevistadas que acreditavam depender da apreciação da entrevistadora para receber o prémio (que eram, pois, assim colocadas numa posição inferior na escala de poder) riam mais das anedotas sem graça que as outras.

Mas nem é preciso haver interação direta entre as pessoas com uma relação assimétrica de poder. Na segunda experiência, numa entrevista gravada num vídeo, uma mulher respondia a um questionário sobre informações e competências pessoais, que incluía, a certa altura, a pergunta «Qual é a sua anedota preferida?» E ela contava a famosa anedota do muffin (que era também, aliás, umas das piadas da entrevistadora na primeira experiência). Não sei se conhecem a anedota do muffin, mas é considerada—com ou sem razão, vocês decidirão —uma das anedotas mais parvas que dar se pode:
Estavam dois muffins num forno, quando um deles se vira para o outro e diz:
– Está aqui muito calor, não está?
O outro vira-se e grita assustado:
– Ai, o que é isto? Um muffin que fala!!!
Agora, à estudante que assistia a este vídeo, eram dadas diferentes informações sobre a mulher filmada—às vezes, dizia-se-lhe que, numa fase posterior do trabalho, a mulher filmada seria sua chefe e decidiria quanto ia receber pela participação no estudo; outras vezes, dizia-se-lhe que a mulher filmada seria sua colega ou uma sua subordinada. Nestas duas últimas situações, a estudante testada ria-se pouco ou nada da anedota contada pela mulher no vídeo; mas quando esta mulher era apresentada como sua futura superiora, ria-se muito mais. Ora, não havia aqui qualquer contacto presencial, pelo que não podia ser para impressionar favoravelmente a sua «futura chefe» que o fazia. 

Num artigo no New York Times, Tyler Stillman explica o fenómeno da seguinte forma (traduzo eu):
O riso parece ser uma reação automática à situação em que uma pessoa se encontra, e não uma estratégia consciente (…). Quando conto a anedota do muffin às minhas turmas na universidade, os alunos riem-se muito.» Mas o mesmo não se passou numa pequena conferência para outros investigadores nesta área. «Quando me ouviram, um simples estudante de mestrado, contar a anedota do muffin, fez-se um silêncio muito desconfortável. Até se ouviam as moscas.
«Nem era preciso fazer a experiência», pensarão vocês, «toda a gente sabe que é assim que as coisas se passam». É bem capaz, mas é preciso fazer as experiências e com metodologia e dados mais fiáveis que os de muitas experiências anteriores.

Agora, a questão que se coloca em relação à reação às anedotas é a mesma que se pode colocar a todas as outras manifestações de personalidade. Se considerarmos que há um núcleo essencial de personalidade que determina a reação a uma situação, como saber que núcleo é esse, quando, na prática, ele varia constantemente consoante a situação? Mais: que sentido faz postular a existência desse núcleo, se nenhuma observação no-lo revela? O mais provável é que, assustados pela ideia de sermos, em grande medida, um produto apenas das nossas circunstâncias, optemos por considerar a «base» da nossa personalidade a nossa maneira de sentir ou agir que resulta da situação em que «somos» mais de acordo com uma imagem ideal de nós mesmos.

***
No meu outro texto, terminava com um apêndice moral: independentemente de acreditarmos que a personalidade é ou não estável, ou mais ou menos estável, é de louvar a sua estabilidade? Quer dizer, é de louvar o tentar esforçar-se por manter os mesmo traços de caráter, gostos, etc., de uma situação para a outra e ao longo do tempo? A minha conclusão era—e mantém-se—que a estabilidade da personalidade não pode ser considerada por si só moralmente defensável, nem uma virtude, já que são as ações que contam e não o facto de se manterem inalteráveis em diferentes contextos; e que esta estabilidade pode significar teimosia ou resistência à mudança.

Desta vez, quero propor, para terminar e afastando-me também um pouco do rumo inicial do texto, uma reflexão. Por mais que se reúna evidência sobre a inexistência de um núcleo estável de personalidade (ou, pelo menos, sobre a extrema dificuldade ou impossibilidade de o determinar), a maior parte das pessoas parece não aceitar esta ideia com facilidade. Trata-se, creio, do mesmo mecanismo mental que faz com que recusamos aceitar que somos o nosso corpo, cérebro incluído, e postulamos instintivamente um estranho eu exterior a esse corpo: «tem um controlo perfeito do seu corpo», «o nosso cérebro muitas vezes engana-nos», etc. Há, pelos vistos, qualquer coisa de muito fundo em nós, qualquer coisa de muito primordial, que nos faz acreditar numa instância pura de nós próprios, independente de mecanismos físicos e sociais. Afinal de contas, nem só as pessoas religiosas acreditam numa alma, chamem-lhes lá o que lhe chamarem—uma coisa em que, quando se escrutina a ideia com rigor, não faz nenhum sentido acreditar... Porque será?
***
Ainda mais afastada do tema geral do texto, uma nota lateral que é também outra proposta de reflexão:
Bill Stevenson: Prison guards gather inmates into a corner
at Kingston Penitentiary after a two-hour riot
on Aug
. 16, 1954 (Creative Commons, daqui)
Uma das várias coisas que se criticam no estudo de Zimbardo é os investigadores terem condicionado os «guardas», de forma mais ou menos expressa ou mais ou menos subentendida,  para uma determinada atitude relativamente aos «prisioneiros».

Mas não existirá o mesmo tipo de condicionamento nos verdadeiros guardas prisionais que guardam prisioneiros verdadeiros?, pergunta Maria Konnikova num interessante artigo do New Yorker:
[A] experiência na prisão de Stanford sugere que instituições extremas provocam um comportamento extremo. As prisões não são folhas de papel em branco. Os guardas escolhem de facto o seu emprego, tal como os alunos de Zimbardo escolheram participar num estudo da vida na prisão. Como os homens de Zimbardo, os guardas são bombardeados com expectativas desde o início e moldados por normas e padrões de comportamento preexistentes. A lição de Stanford não é que qualquer ser humano pode cair no sadismo e na tirania. É que certas instituições e ambientes exigem esses comportamentos—e talvez os possam alterar.»



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