21/02/20

Uma garrafa de whisky num bar em Camargo

As pessoas acreditam no que lhes dá jeito. E a crença de que há muito mais mulheres que homens no mundo dá jeito a muitos homens para justificar o direito que creem ter a mais que uma mulher. Quando se fala de poligamia, fala-se normalmente de poliginia (um homem com mais que uma esposa) e de sociedades ou grupos sociais em que esta tem força de lei, escrita ou consuetudinária; mas há muitas outras sociedades em que a poliginia, embora não reconhecida na lei, é aceite e faz efetivamente parte das instituições sociais. Em Portugal, por exemplo, era normal até há relativamente pouco tempo que homens «com posses» para isso tivessem, além da esposa oficial, uma mulher (ou mais…) «por conta», a quem «punham casa».

Na realidade, nascem no mundo mais homens que mulheres e, embora as mulheres vivam mais tempo que os homens, há mais homens que mulheres no mundo. (Para mais detalhes sobre a questão do rácio de género à nascença e as questões com ele relacionadas, veja-se, por exemplo, este artigo de Hannah Ritchie e Max Roser, no Our World in Data, da Universidade de Oxford). Mas a diferença é mínima: se dissermos que há, em quase todo o lado, praticamente o mesmo número de homens e mulheres, nunca andamos muito longe da verdade.

J. Waterloos: Homens a cantar (Zingende mannen), 1680–1684.
Rijksmuseum, Amesterdão (daqui)
E foi isso que eu disse uma vez, num bar, na vila de Camargo, na Bolívia, onde eu vivia na altura. Podia lá ser!, insurgiram-se os meus companheiros de chuflay*. Então se eles sempre tinham ouvido dizer que havia sete mulheres para cada homem. Imaginei como seria um sítio com sete mulheres para cada homem. Então, mas eles, olhando apenas à sua volta na rua, não viam que não era assim, que não podia ser assim? Mas as pessoas acreditam no que lhes dá jeito. A estranha crença justificava-lhes o direito à infidelidade conjugal – e a lógica do dever de fidelidade das suas mulheres, provavelmente…

Um dos meus companheiros, mais disposto a repensar mitos que os outros, aceitou que, de facto, isso de sete mulheres para cada homem não podia ser; mas que havia muito mais mulheres que homens, pelo menos o dobro, disso ele não tinha dúvida nenhuma. Já não me lembro de quem propôs a aposta, mas o facto é que apostámos uma garrafa de whisky.

A questão era como provar que tinha razão. Isto foi em 2000. O acesso à Internet era por modem e era limitada a informação disponível em linha. Tive muita sorte. Tinha acabado de sair um documento oficial boliviano (um livro grande, em bom papel e com boa qualidade gráfica, por tal sinal, cheio de ilustrações) com dados demográficos atualizados. Encontrei o livro no escritório do programa de desenvolvimento agrícola onde trabalhava a minha mulher e pedi-o emprestado um dia. Os meus conhecidos do bar não podiam refutar a fonte. Tiveram de reconhecer que na Bolívia há mais ou menos tantos homens como mulheres, só com uns quantos homens a mais, coisa muito pouca. Como no resto do mundo... E eu achei por bem dividir com eles a garrafa de uísque que acabava de ganhar, para os tentar consolar das mulheres que cada um acabava de perder.

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* Chuflay é uma bebida boliviana: gasosa com singani, aguardente de uva moscatel.

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