Em bom rigor, o homem tem tantos eus sociais como o número de indivíduos que o reconheçam e tenham dele uma imagem mental. Ferir qualquer uma dessas suas imagens é feri-lo a ele. Mas, como os indivíduos que têm essas imagens pertencem naturalmente a classes, podemos na prática dizer que ele tantos eus sociais diferentes como o número de grupos distintos de pessoas cuja opinião lhe importa. Geralmente, mostra um lado diferente de si próprio a cada um desses vários grupos. Muitos jovens bastante recatados na presença de pais e professores são malcriados e fanfarrões que nem piratas junto dos seus compinchas “duros”. Não nos mostramos aos nossos filhos como nos mostramos aos nossos companheiros de clube, aos nossos clientes como aos nossos empregados, aos nossos próprios chefes e empregadores como aos nossos amigos íntimos. Daqui resulta o que, na prática, é uma divisão do homem em vários eus; e esta divisão pode ser discordante, quando uma pessoa tem medo de deixar um grupo de conhecidos saber como ela é noutro lugar; ou pode ser uma divisão perfeitamente harmoniosa do trabalho, quando se é terno para com os filhos e severo para com os soldados ou prisioneiros sob o seu comando.
Estas palavras são de William James[1] e todos temos provas
sobejas de que são perfeitamente acertadas, mas, se somos capazes de o admitir
nalguma folgada discussão de fim de semana, recusamo-nos (porque será?) a usar
estes sábios ensinamentos na análise quotidiana do mundo e, no geral,
refugiamo-nos na crença fácil de que as pessoas têm personalidade estáveis que
carregam sempre consigo de situação para situação, de relação para relação. E
os estudos de psicologia, que estão fartos de provar, sei lá, por exemplo, que
nem o riso
nem a crueldade estão apenas dentro das pessoas, continuam, o mais das vezes, a avaliar traços
de personalidade (gentileza, agressividade, criatividade, inovação, etc.)
através de questionários simples descontextualizados… Não que uma pessoa não
possa ter traços de carácter diferentes de outra pessoa, ou capacidades; mas não
creio o que o seu conjunto seja um eu estável, independente de circunstâncias. Por muito que isso choque muita gente, “o meu verdadeiro eu”, “o teu verdadeiro eu”, acho que isso não existe.
Enfim, a questão pode, claro está, analisar-se de vários
ângulos. Um deles é o de Jorge Luis Borges em “La Nadería de la
Personalidad[2]”.
Não há tal eu de conjunto. Equivoca-se quem define a identidade pessoal como posse privativa de algum repositório de memórias. Quem tal afirma abusa do símbolo que reflete a memória como figura de duradouro e palpável celeiro ou armazém, quando não passa do nome pelo qual indicamos que, entre a inumerabilidade de todos os estados de consciência, muitos voltam a ocorrer de forma esbatida. Além disso, se a personalidade radica na memória, a que posse pretender dos instantes cumpridos que, por quotidianos ou envelhecidos, não gravaram em nós uma impressão duradoura? Empilhados em anos, jazem inacessíveis à nossa ansiosa ganância. E que a memória decantada, de cujas falhas interpondes recursos, evidencia alguma vez toda a sua plenitude de passado? Vive por acaso em verdade? Enganam-se também os que, como os sensualistas, concebem a personalidade como a soma de estados de ânimo alinhados. (...)Ninguém que nisso medite aceitará que, na conjetural e nunca realizada nem realizável soma das diferentes situações do ânimo, pode estribar o eu. O que não se leva a cabo não existe e o encadeamento dos factos em sucessão temporal não os refere a uma ordem absoluta. Erram também os que supõem que a negação da personalidade, a que, com tão persistente afinco, vou instando, desmente essa certeza de ser uma coisa isolada, individualizada e distinta, que cada qual sente nas profundidades da alma. Não nego essa consciência de ser nem essa segurança imediata do “aqui estou eu” que respira em nós. O que eu nego, isso sim, é que as demais convicções devam ajustar-se à consabida antítese entre o eu e o não eu e esta seja constante. A sensação de frio e de espaçada e grata liberdade que há em mim ao atravessar o saguão e avançar pela quase escuridão da rua não é um acrescento a um eu preexistente nem acontecimento que traga consigo outro acontecimento de um eu contínuo e rigoroso.
[Como puderam seguramente
constatar, Borges tinha, na juventude, um estilo bem mais floreado que o que lhe
conhecemos depois e eu hesitei muito em traduzir este excerto
– que não tenho, aliás, a certeza de ter traduzido como devia (mas confiram vocês próprios).]
Podia – devia, provavelmente – ficar-me pela elegância de
Borges para fechar o texto. Mas há outra questão que quero aqui levantar, ainda
relacionada com personalidade, mas de teor bem diferente: não se a
personalidade é una, mas se a devemos querer una. Quer dizer, se é de louvar,
como tantas vezes se louva, o empenho em manter-se permanentemente
reconhecível, “igual a si próprio”; se é de louvar a vontade de transferir de
uma situação para outra, e uma relação para outra, de um tempo para outro, um
conjunto de traços de caráter que cremos – e queremos que os outros creiam –
constituir-nos essencialmente.
Gostos, maneiras de agir. Diz-se que Borges, por exemplo, gostava muito de
arroz com queijo e que, de uma vez que jantou no Maxim’s, insistiu em comer arroz
com queijo, imaginem... Há quem, em todas as companhias, afivele o mesmo
ar e as mesmas maneiras – que acha que se deve sempre ter. “Eu sou assim”, dizem
alguns, “e quem não gostar de mim assim, paciência…” Mas eu tendo a pensar mais
nesse ser sempre assim, como defeito, sabem?, uma incapacidade – muitas vezes
cultivada, ainda por cima… – de se adaptar a meios novos, de não ver sempre o
mundo com os mesmos olhos.
Podemos juntar, neste texto, as crenças ou convicções aos
traços de personalidade? Acho que sim. Aliás, nem sempre é fácil determinar onde
terminam umas e começam outros. Porque se louva amiúde a coerência de alguém
ou, como se diz às vezes, a sua firmeza ou a sua personalidade – mesmo quando
não se concorda com aquilo em que o outro é coerente? É claro, se se pode ser
coerente tanto com atitudes e crenças louváveis como com atitudes e crenças
indesejáveis, a coerência não tem, por si só, nada de louvável à partida. Nem
de criticável, é certo… Mas coerência significa, muitas vezes, teimosia,
resistência ao outro, às vezes tacanhez. Que não há ninguém que não tenha de
mudar, e mudar muito – se aceitar que o que é novo pode ter tanto ou mais valor
que o que tem já dentro de si; se não pensar que só é bom aquilo que já é.
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[2] In Inquisiciones. Madrid: Alianza.1994. Primeira edição: 1925.
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