No cemitério de Svendborg, há numa campa uma estátua de uma mulher de seios nus. Não sei quem é, mas deve representar algum conceito abstrato: a pureza, a poesia, a vida, a justiça, a liberdade, sei lá…
Em A Calúnia de Apelles, de Botticelli, o Arrependimento está coberto da cabeça aos pés, como aliás a Perfídia, a Calúnia, a Fraude, o Rancor, a Ignorância e a Suspeita (ver obra completa aqui). Já a Verdade está cruamente nua. Nua está também a Verdade de Jules Joseph Lefebvre. |
Um motivo bastante recorrente[1]nas artes plásticas do Neoclassicismo é a chamada Caritas Romana, a «Caridade Romana». Bom, não sei se caridade é aqui a melhor tradução de caritas. A caritas latina é um conceito mais abrangente do que a nossa caridade: é «estima», «afeto», «ternura», «amor», «apreço»… e também «caridade». Mas, enfim, para seguir a tradição, refiro-me aqui a esse motivo como Caridade Romana. Um motivo muito estranho…
A Caridade Romana é uma história exemplar da antiguidade greco-latina. No livro quinto dos Nove Livros de Feitos e Dizeres Memoráveis, uma coleção de contos breves que data do ano 30 ou 31, Valerius Maximus conta a história de uma mulher condenada à morte, que, na prisão, é salva de morrer de fome pela filha que a amamenta quando a visita. Quando o carcereiro descobre o que se passa, conta aos seus superiores hierárquicos, que fazem chegar a história ao conselho de juízes. Maravilhados por tão incomum relato de amor filial, os juízes perdoam a pena à mulher. E Valerius Maximus acrescenta que a mesma qualidade teve uma mulher chamada Pero, que salvou da mesma forma o seu pai Cimon, também condenado à morte por inanição[2].
Conhecem-se pinturas e estátuas também do século I que têm a Caridade Romana como motivo, mas não se sabe se a história era já conhecida antes da obra de Maximus ou se foi ele que a inventou. Na sua História Natural, publicada cerca de 45 anos depois da obra de Maximus, Plínio o Velho conta uma versão ligeiramente diferente da história, em que a mãe da mulher não só é libertada como a família recebe das autoridades locais uma pensão vitalícia.
Podem ler muito mais sobre a história e o motivo da Caridade Romana na arte ocidental na Wikipédia, que é onde fui buscar esta informação.
É claro, podem encontrar-se para a ressurreição e para o sucesso da história da Caridade Romana no período Clássico boas explicações culturais, algumas delas ancoradas em mitos e símbolos primordiais, e também a justificação moral de ser um exemplo extremo de dedicação filial. Podem ser essas as razões, mas também me parece provável que o sucesso do motivo esteja no seu caráter erótico. Não nos parecerão hoje muito eróticas estas imagens, mas o contexto em que foram criadas era outro e, nesse contexto, eram bem capazes de ter uma carga erótica — para os homens. É um erotismo que pode resultar apenas da exposição dos seios nus de Pero — e podemos especular se é mais provável a identificação erótica dos espetadores das obras com Cimon ou com o carcereiro que espreita a cena — mas há também casos em que a filha e o pai parecem um casal (imagens 1 e 8 abaixo, por exemplo). Curiosamente, até um caso em que um casal real, o conde Franz de Paula von Hartig e a sua esposa Eleanore, é retratado em 1797 como Caritas Romana.
>Giovanni Francesco Barbieri (il) Guercino (data incerta, anterior a 1661). É de notar que Guercino fez também outras versões de Pero e Cimon. |
É um motivo estranho, como eu dizia. Se se aceitar, como eu proponho, a possibilidade de uma leitura erótica, levanta-se de imediato a questão do caráter incestuoso da cena, acrescido, na versão feminina, de uma intimidade entre mulheres que pode apontar para homossexualidade. (Maximus escrevia, desculpando a filha da sua primeira história: «Alguém poderia pensar que era algo contra a natureza, se a primeira lei da natureza não fosse amar os pais.») Mas há outros aspetos desviantes relativamente à sexualidade socialmente sancionada na altura, que talvez tenham sido importantes para a erotização do motivo: o facto de mostrar uma cena de intimidade com uma mulher lactante (quando o sexo com lactantes era tabu, independentemente de quem fossem)[3], e ademais numa prática sexual não canónica, a lactação erótica.
Notem que tudo isto é, enfim, resultado de reflexões breves e de impressões, e não de nenhum estudo aturado. É só uma conversa num blogue, sobre um tema que achei curioso, mas de que não tenho grandes conhecimentos. Deixo-vos aqui uma seleção de 16 versões pictóricas da Caridade Romana, de 1538 a 1700 mais duas relacionadas com o motivo sem o tratarem diretamente, e vocês me dirão também a vossa impressão.
É interessante notar que, independentemente de alguns tratamentos mais únicos da história, há vários modelos do motivo que se vão fixando. Relativamente ao enquadramento e à postura e atitude de Pero, há sobretudo dois modelos. Num deles, Pero olha para longe do pai, talvez envergonhada com o que está a fazer, às vezes claramente preocupada com ser descoberta pelo guarda. Noutro, Pero olha para baixo para o pai, numa atitude talvez carinhosa, talvez condoída, talvez protetora. E, noutro modelo ainda, pouco recorrente, Pero olha para baixo, mas sem olhar para o pai, com um olhar ausente. Quanto à exposição do corpo de Pero, há pinturas em não se revelam os seios; outras em que se revela apena o seio que amamenta, outras em que, às vezes de forma talvez algo despropositada se revelam ambos os seios ou todo o corpo nu. Nalgumas obras, Pero faz-se acompanhar do seu próprio filho, o que, além de tornar explícita a razão de ela ter leite, dá uma outra dimensão à obra: Pero já não é só a filha que faz de mãe, é realmente mãe. Numa curiosa pintura atribuída a Niccolò Tornioli (imagem 12), a criança protesta, talvez por ter fome, sentindo-se preterida na amamentação. É também interessante constatar a presença do carcereiro ou de dois carcereiros que é comum nas representações da Caridade Romana. Veem-se quase sempre só rostos, geralmente por trás de grades e/ou no escuro. Parece-me fácil encontrar algo de voyeurismo nestes guardas.
Quero só, para terminar, chamar a atenção para dois aproveitamentos tardios deste motivo, ambos com tonalidades claramente ideológicas, se bem que muito diferentes um do outro (são as últimas imagens da série):
Numa obra do início do séc. XIX, Louis Hersent pinta uma índia a amamentar Bartolomé de Las Casas que parece estar muito doente. A intenção da pintura é clara: mostrar que os índios («os selvagens», nas palavras do autor) tinham por Las Casas um amor igual ao que a Pero clássica devotava ao seu pai. É difícil decidir se a presença de um elemento masculino, um índio jovem, talvez companheiro da amamentadora, serve para deserotizar a cena ou se tem o efeito contrário, precisamente.
Numa obra de 1969, Balada Guerrilheira (Партизанская баллад), o pintor soviético/bielorrusso Mai Dantsig usa o motivo numa representação heroica de uma cena da Segunda Guerra Mundial, em que uma guerrilheira amamenta um companheiro ferido.
1. Georg Pencz, 1538 |
2. Sebald Beham, 1540 |
3. Peter Paul Rubens, 1612 |
4. Dirck Van Baburen, entre 1618 e 1624 |
5. Hendrick ter Brugghen, 1622 |
6. Gaspar de Crayer, entre 1620 e 1630 |
7. Peter Paul Ruben, 1630 |
8. Johannes Cornelisz Verspronck, entre 1633 e 1635 |
9. Pieter van Mol, entre 1630 e 1650 |
10. Gaspar de Crayer, 1645 |
11. Giovanni Andrea Sirani, meados do séc. XVII |
12. Niccolò Tornioli, entre 1645 e 1650 |
13. Anónimo, 1650 |
14. Gerard van Honthorst, meqados do séc. XVII |
15. Provavelmente Lorenzo Pasinelli, cerca de 1670 |
16. Carlo Cignani, entre 1690 e 1700 |
Louis Hersent: Las Casas doente tratado pelos selvagens, 1808 |
Mai Dantsig, Balada Guerrilheira, 1969 |
Sobre a proveniência das imagens: a grande maioria são imagens do domínio público, com uma licença Creative Commons, encontradas na Wikipedia. Quanto às poucas que o não são, creio que o seu uso se pode considerar legítimo, nos moldes e no contexto em que aqui as utilizo.
Notas:
Também há uma página da Wikipédia que reúne mais de meia centena de pinturas com este motivo. [2] Traduzido do latim com Google translate e um bocadinho de bom senso:
[3] Para uma análise profunda e abrangente do tema, no contexto da representação do aleitamento na arte ocidental, aconselho a obra da historiadora Jutta Gisela Sperling Roman Charity, Queer Lactations in Early Modern Visual Culture, disponível em Acesso Aberto (pode descarregar-se aqui) Jutta Sperling refere a questão da proibição de relações sexuais com lactantes e acrescenta, entre muitas outras, a interessante ideia de que a Caridade Romana é uma imagem de reforço simbólico do poder paterno, porque, por um lado, faz desaparecer uma das figuras responsáveis pela transmissão da linhagem, a mãe (já não é ela a figura lactante), e implica, por outro lado, uma submissão extrema da filha (dos filhos em geral) ao pai. |
Sem comentários:
Enviar um comentário