04/12/23

Caridade Romana, um estranho motivo neoclássico


No cemitério de Svendborg, há numa campa uma estátua de uma mulher de seios nus. Não sei quem é, mas deve representar algum conceito abstrato: a pureza, a poesia, a vida, a justiça, a liberdade, sei lá… 

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Em A Calúnia de Apelles, de Botticelli, o Arrependimento está coberto da cabeça aos pés,
como aliás a Perfídia, a Calúnia, a Fraude, o Rancor, a Ignorância e a Suspeita
(ver obra completa aqui). Já a Verdade está cruamente nua.
Nua está também a Verdade de Jules Joseph Lefebvre.
Digo isto, porque muitas vezes nos deparamos com figuras femininas alegóricas em que, ao que parece, é o serem alegóricas que justifica a nudez dos seios — ou do resto do corpo. O que é estranho. Não vos é difícil compreender porque é que a Liberdade de Delacroix guia o povo de seios ao léu? Bom, mas também é verdade que, no célebre Almoço na erva de Manet, também não se percebe porque está nua uma senhora que não parece ter nenhuma função particularmente simbólica. De facto, não faltam na história da pintura mulheres nuas ao lado de homens vestidos. Lembro-me de ter comentado, quando vi a estátua funerária no cemitério de Svendborg, que, pelos vistos, tudo era pretexto para imagens de seios nus, numa época em que o corpo se escondia. Se calhar, é sobretudo disso que se trata… 

Um motivo bastante recorrente[1]nas artes plásticas do Neoclassicismo é a chamada Caritas Romana, a «Caridade Romana». Bom, não sei se caridade é aqui a melhor tradução de caritas. A caritas latina é um conceito mais abrangente do que a nossa caridade: é «estima», «afeto», «ternura», «amor», «apreço»… e também «caridade». Mas, enfim, para seguir a tradição, refiro-me aqui a esse motivo como Caridade Romana. Um motivo muito estranho…

A Caridade Romana é uma história exemplar da antiguidade greco-latina.  No livro quinto dos Nove Livros de Feitos e Dizeres Memoráveis, uma coleção de contos breves que data do ano 30 ou 31, Valerius Maximus conta a história de uma mulher condenada à morte, que, na prisão, é salva de morrer de fome pela filha que a amamenta quando a visita. Quando o carcereiro descobre o que se passa, conta aos seus superiores hierárquicos, que fazem chegar a história ao conselho de juízes. Maravilhados por tão incomum relato de amor filial, os juízes perdoam a pena à mulher. E Valerius Maximus acrescenta que a mesma qualidade teve uma mulher chamada Pero, que salvou da mesma forma o seu pai Cimon, também condenado à morte por inanição[2].

Conhecem-se pinturas e estátuas também do século I que têm a Caridade Romana como motivo, mas não se sabe se a história era já conhecida antes da obra de Maximus ou se foi ele que a inventou. Na sua História Natural, publicada cerca de 45 anos depois da obra de Maximus, Plínio o Velho conta uma versão ligeiramente diferente da história, em que a mãe da mulher não só é libertada como a família recebe das autoridades locais uma pensão vitalícia.  

Podem ler muito mais sobre a história e o motivo da Caridade Romana na arte ocidental na Wikipédia, que é onde fui buscar esta informação. 

É claro, podem encontrar-se para a ressurreição e para o sucesso da história da Caridade Romana no período Clássico boas explicações culturais, algumas delas ancoradas em mitos e símbolos primordiais, e também a justificação moral de ser um exemplo extremo de dedicação filial. Podem ser essas as razões, mas também me parece provável que o sucesso do motivo esteja no seu caráter erótico. Não nos parecerão hoje muito eróticas estas imagens, mas o contexto em que foram criadas era outro e, nesse contexto, eram bem capazes de ter uma carga erótica — para os homens. É um erotismo que pode resultar apenas da exposição dos seios nus de Pero — e podemos especular se é mais provável a identificação erótica dos espetadores das obras com Cimon ou com o carcereiro que espreita a cena — mas há também casos em que a filha e o pai parecem um casal (imagens 1 e 8 abaixo, por exemplo). Curiosamente, até um caso em que um casal real, o conde Franz de Paula von Hartig e a sua esposa Eleanore,  é retratado em 1797 como Caritas Romana

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Giovanni Francesco Barbieri (il) Guercino (data incerta, anterior a 1661).
É de notar que Guercino fez também outras versões de Pero e Cimon.
A própria cena de amamentação de um adulto pode ter um caráter erótico. É aliás de notar, a propósito, que a grande fortuna do motivo de Pero e Cimon (alguns pintores, como Rubens ou De Crayer têm mais que uma obra sobre o motivo) contrasta com a quase ausência de pinturas baseadas na versão feminina da história. A única versão que encontro é esta de Guercino aqui à direita.    

É um motivo estranho, como eu dizia. Se se aceitar, como eu proponho, a possibilidade de uma leitura erótica, levanta-se de imediato a questão do caráter incestuoso da cena, acrescido, na versão feminina, de uma intimidade entre mulheres que pode apontar para homossexualidade. (Maximus escrevia, desculpando a filha da sua primeira história: «Alguém poderia pensar que era algo contra a natureza, se a primeira lei da natureza não fosse amar os pais.») Mas há outros aspetos desviantes relativamente à sexualidade socialmente sancionada na altura, que talvez tenham sido importantes para a erotização do motivo: o facto de mostrar uma cena de intimidade com uma mulher lactante (quando o sexo com lactantes era tabu, independentemente de quem fossem)[3], e ademais numa prática sexual não canónica, a lactação erótica.

Notem que tudo isto é, enfim, resultado de reflexões breves e de impressões, e não de nenhum estudo aturado. É só uma conversa num blogue, sobre um tema que achei curioso, mas de que não tenho grandes conhecimentos. Deixo-vos aqui uma seleção de 16 versões pictóricas da Caridade Romana, de 1538 a 1700 mais duas relacionadas com o motivo sem o tratarem diretamente, e vocês me dirão também a vossa impressão. 

É interessante notar que, independentemente de alguns tratamentos mais únicos da história, há vários modelos do motivo que se vão fixando. Relativamente ao enquadramento e à postura e atitude de Pero, há sobretudo dois modelos. Num deles, Pero olha para longe do pai, talvez envergonhada com o que está a fazer, às vezes claramente preocupada com ser descoberta pelo guarda. Noutro, Pero olha para baixo para o pai, numa atitude talvez carinhosa, talvez condoída, talvez protetora. E, noutro modelo ainda, pouco recorrente, Pero olha para baixo, mas sem olhar para o pai, com um olhar ausente. Quanto à exposição do corpo de Pero, há pinturas em não se revelam os seios; outras em que se revela apena o seio que amamenta, outras em que, às vezes de forma talvez algo despropositada se revelam ambos os seios ou todo o corpo nu. Nalgumas obras, Pero faz-se acompanhar do seu próprio filho, o que, além de tornar explícita a razão de ela ter leite, dá uma outra dimensão à obra: Pero já não é só a filha que faz de mãe, é realmente mãe. Numa curiosa pintura atribuída a Niccolò Tornioli (imagem 12), a criança protesta, talvez por ter fome, sentindo-se preterida na amamentação. É também interessante constatar a presença do carcereiro ou de dois carcereiros que é comum nas representações da Caridade Romana. Veem-se quase sempre só rostos, geralmente por trás de grades e/ou no escuro. Parece-me fácil encontrar algo de voyeurismo nestes guardas. 

Quero só, para terminar, chamar a atenção para dois aproveitamentos tardios deste motivo, ambos com tonalidades claramente ideológicas, se bem que muito diferentes um do outro (são as últimas imagens da série):

Numa obra do início do séc. XIX, Louis Hersent pinta uma índia a amamentar Bartolomé de Las Casas que parece estar muito doente. A intenção da pintura é clara: mostrar que os índios («os selvagens», nas palavras do autor) tinham por Las Casas um amor igual ao que a Pero clássica devotava ao seu pai. É difícil decidir se a presença de um elemento masculino, um índio jovem, talvez companheiro da amamentadora, serve para deserotizar a cena ou se tem o efeito contrário, precisamente. 

Numa obra de 1969, Balada Guerrilheira (Партизанская баллад), o pintor soviético/bielorrusso Mai Dantsig usa o motivo numa representação heroica de uma cena da Segunda Guerra Mundial, em que uma guerrilheira amamenta um companheiro ferido.

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1. Georg Pencz, 1538

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2. Sebald Beham, 1540

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3. Peter Paul Rubens, 1612

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4. Dirck Van Baburen, entre 1618 e 1624

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5. Hendrick ter Brugghen, 1622

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6. Gaspar de Crayer, entre 1620 e 1630

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7. Peter Paul Ruben, 1630

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8. Johannes Cornelisz Verspronck, entre 1633 e 1635

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9. Pieter van Mol, entre 1630 e 1650

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10. Gaspar de Crayer, 1645

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11. Giovanni Andrea Sirani, meados do séc. XVII

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12. Niccolò Tornioli, entre 1645 e 1650

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13. Anónimo, 1650

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14. Gerard van Honthorst, meqados do séc. XVII

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15. Provavelmente Lorenzo Pasinelli, cerca de 1670

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16. Carlo Cignani, entre 1690 e 1700

31%201808%20Louis%20Hersent%20Las%20Casas%20malade%20soign%C3%A9%20par%20les%20sauvages%201808
Louis Hersent: Las Casas doente tratado pelos selvagens, 1808

Mai%20Dantsig%20Partisan%20Ballad%201969
Mai Dantsig, Balada Guerrilheira, 1969

Sobre a proveniência das imagens: a grande maioria são imagens do domínio público, com uma licença Creative Commons, encontradas na Wikipedia. Quanto às poucas que o não são, creio que o seu uso se pode considerar legítimo, nos moldes e no contexto em que aqui as utilizo.


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Notas:


[1] Pode descarregar-se uma apresentação de Power Point com uma coleção de mais de meia centena de pinturas e esculturas com este motivo no site de Assaf Feller

Também há uma página da Wikipédia que reúne mais de meia centena de pinturas com este motivo.

[2] Traduzido do latim com Google translate e um bocadinho de bom senso:

No tribunal, o procônsul condenou uma mulher, por crime capital, à morte na prisão. Quando ela foi recebida na prisão, o encarregado da guarda, levado pela compaixão, não a estrangulou imediatamente; mas, ao fim de vários dias, começou a interrogar-se sobre como se sustinha tanto tempo e, observando-a mais de perto, viu que a filha dela lhe matava a fome com leite do seu peito. A notícia deste espetáculo, tão maravilhoso, foi por ele transmitida ao triúnviro, e do triúnviro ao pretor, e do pretor ao conselho de juízes, e levou a que fosse perdoada a pena à mulher. (…)

A mesma qualidade se deve considerar que tinha a piedade de Pero, que, tendo tido o seu pai Mícon uma fortuna semelhante, e tendo-lhe sido entregues a ela os cuidados da sua velhice, cuidou dele como se fosse uma criança criada no seu peito.

[3] Para uma análise profunda e abrangente do tema, no contexto da representação do aleitamento na arte ocidental, aconselho a obra da historiadora Jutta Gisela Sperling Roman Charity, Queer Lactations in Early Modern Visual Culture, disponível em Acesso Aberto (pode descarregar-se aqui) Jutta Sperling refere a questão da proibição de relações sexuais com lactantes e acrescenta, entre muitas outras, a interessante ideia de que a Caridade Romana é uma imagem de reforço simbólico do poder paterno, porque, por um lado, faz desaparecer uma das figuras responsáveis pela transmissão da linhagem, a mãe (já não é ela a figura lactante), e implica, por outro lado, uma submissão extrema da filha (dos filhos em geral) ao pai.

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