É conhecido: um dos (muitos…) problemas do trabalho de desenvolvimento é o uso de tecnologias pouco ou nada adaptadas à realidade local. Um exemplo claro: vejam o que acontece quando se usa em Chimoio, com 30 graus e 90% de humidade, tecnologia sueca de Natal, nomeadamente uma pepparkakshus, uma simpática casinha doce que as crianças montam e decoram.
Os inconscientes arquitectos, após a conclusão do projecto
A casa construída
A casa construída, passadas alguma horas
A casa construída, passadas mais alguma horas
19/12/08
Por que é que o Spybot-S&D (passe a publicidade...) é gratuito?
Não sei se haverá quem leia na íntegra as condições de utilização do software que descarrega da net. Deviam sempre ler-se, pois deviam, mas são uma grande seca, como todos os contratos, e chega até a parecer que são redigidas assim precisamente para a malta desistir de as ler...
Uma excepção é a licença do anti-spyware Spybot Search & Destroy (passe a publicidade...), em que o seu autor, Patrick Michael Kolla, começa por explicar “porque o Spybot-S&D é gratuito” (o que se segue não é nenhuma tradução minha, como acho que se percebe, é a transcrição do texto da licença quando se escolhe o português como língua de instalação e utilização):
I.a. Dedicatória: O Spybot-S&D é dedicado à garota mais maravilhosa do mundo :)
I.b. Binário: O que você recebe na compra de um programa? Um monte de zeros e uns, e nada mais. Se eles fossem distribuídos como arte, eu poderia entender o pagamento por eles. Mas se o objetivo principal é ganhar dinheiro - através de taxas ou anúncios - então eu não concordo!
I.c. Conclusão: Isso significa que eu garanto a licença de uso do Spybot-S&D pelo tempo que você quiser. Mas se você gostou do programa, eu lhe peço duas coisas: reze por mim (aproveite e reze pela garota mais maravilhosa do mundo também :) ) para o seu deus - ou o que quer que você acredite - e nos deseje sorte.
O resto da licença é relativamente standard.
Uma excepção é a licença do anti-spyware Spybot Search & Destroy (passe a publicidade...), em que o seu autor, Patrick Michael Kolla, começa por explicar “porque o Spybot-S&D é gratuito” (o que se segue não é nenhuma tradução minha, como acho que se percebe, é a transcrição do texto da licença quando se escolhe o português como língua de instalação e utilização):
I.a. Dedicatória: O Spybot-S&D é dedicado à garota mais maravilhosa do mundo :)
I.b. Binário: O que você recebe na compra de um programa? Um monte de zeros e uns, e nada mais. Se eles fossem distribuídos como arte, eu poderia entender o pagamento por eles. Mas se o objetivo principal é ganhar dinheiro - através de taxas ou anúncios - então eu não concordo!
I.c. Conclusão: Isso significa que eu garanto a licença de uso do Spybot-S&D pelo tempo que você quiser. Mas se você gostou do programa, eu lhe peço duas coisas: reze por mim (aproveite e reze pela garota mais maravilhosa do mundo também :) ) para o seu deus - ou o que quer que você acredite - e nos deseje sorte.
O resto da licença é relativamente standard.
Do you speak English? Atão amanda a corda!
Um dos muitos bons argumentos que há contra a monarquia é o argumento humanitário: coitados dos reis e das rainhas e dos príncipes e das princesas!, que vêem a sua privacidade constantemente devassada e que só muito relativamente têm direito a escolher que vida querem ter…
Oiço e vejo muitos argumentos contra o imperialismo da língua inglesa (que, na maior parte dos casos, são mais expressão pura de paixões vagas que verdadeiros argumentos), mas nunca vi ninguém defender, contra a expansão do inglês, um argumento do mesmo tipo do argumento humanitário contra a monarquia. A verdade, no entanto, é que um purista do inglês pode perfeitamente argumentar que quem sofre com essa expansão – e muito mais do que as línguas que ela pretensamente afecta – é o próprio inglês… Nunca tinham pensado nisso? Eu, que passo a vida a traduzir textos em inglês escritos por pessoas das mais variadas nacionalidades, é o que penso muitas vezes…
Diz-se muitas vezes que as pessoas de língua inglesa nunca aprendem a falar outras línguas e é bem capaz de não ser apenas preconceito, mas não o sei confirmar. Diz-se também que, em parte, isso se deve a que, podendo comunicar com tanta gente na sua própria língua, lhes falta a motivação para aprender a língua dos outros – o que me parece plausível. Ainda há pouco tempo, aliás, um amigo britânico que me veio visitar deu precisamente essa explicação para o facto de, como muitos compatriotas seus, não saber falar outras línguas. Mas quando se formula de outro modo a incapacidade dos anglófonos, acusando-os de “não terem jeito nenhum para línguas”, aí já não posso concordar. Quanto mais não seja, porque as pessoas de língua inglesa são as melhores que eu conheço a compreender a sua língua falada seja lá como for – uma competência linguística que falta a muita gente de outros idiomas… É o reverso da medalha, claro está, e resulta de uma vida inteira de prática de ouvir a sua língua falada com toda a classe de sotaques estrangeiros, cada qual mais arrevesado que o outro… Os falantes do inglês são bons nisso e são bons a aceitar que o inglês pode ser falado e escrito assim, daquela maneira esquisita como nós o falamos e escrevemos; a aceitar, até, que sejam pessoas de outras línguas a inventarem na língua deles palavras e expressões novas, algumas provavelmente tão estrangeiras que os arrepiam… Não imagino um português ou um francês a aceitar sem protestar, na sua língua, os erros bárbaros (aqui no sentido primeiro de típico de estrangeiros) que infestam constantemente todo o tipo de documentos e discursos em inglês.
Nunca os seres humanos tiveram as possibilidades que têm hoje de comunicarem uns com os outros. Se isto se deve, obviamente, sobretudo ao progresso tecnológico, ajuda também muito a este avanço o facto de haver finalmente uma língua (e uma língua viva, ademais) que um quarto da população do globo consegue, melhor ou pior, usar como língua franca. Evidentemente, que o inglês se tenha tornado língua de comunicação não resulta de nenhum plano altruísta. Mas não vale a pena pensar nisso, até porque provavelmente não há boas razões para uma língua se expandir. Agora, independentemente das razões pelas quais há finalmente uma língua de comunicação de grande sucesso à escala mundial, é uma sorte que a haja – e uma oportunidade que não deve ser desperdiçada.
Um bocadinho de respeito, então, por essa língua franca, em vez de nos acomodarmos apenas, como tanta gente tem tendência a fazer, em soluções mais ou menos pidginizadas de comunicação. Sigamos o exemplo de Joseph Conrad, para quem o inglês era a quarta língua, e uma língua que só começou a aprender já homem feito, e que conseguiu, ainda assim, tornar-se um dos mestres da língua inglesa (sem nunca perder, porém, o forte sotaque polaco…). Um bocadinho de respeito pelo inglês, dizia eu, e tenhamos sempre presente, não custa nada, que este inglês que falamos e escrevemos não é uma língua nossa – e também não é bem a língua dos seus falantes nativos…
[Atualizado a 28 de maio de 2023, sem atualização da grafia.]
Oiço e vejo muitos argumentos contra o imperialismo da língua inglesa (que, na maior parte dos casos, são mais expressão pura de paixões vagas que verdadeiros argumentos), mas nunca vi ninguém defender, contra a expansão do inglês, um argumento do mesmo tipo do argumento humanitário contra a monarquia. A verdade, no entanto, é que um purista do inglês pode perfeitamente argumentar que quem sofre com essa expansão – e muito mais do que as línguas que ela pretensamente afecta – é o próprio inglês… Nunca tinham pensado nisso? Eu, que passo a vida a traduzir textos em inglês escritos por pessoas das mais variadas nacionalidades, é o que penso muitas vezes…
Diz-se muitas vezes que as pessoas de língua inglesa nunca aprendem a falar outras línguas e é bem capaz de não ser apenas preconceito, mas não o sei confirmar. Diz-se também que, em parte, isso se deve a que, podendo comunicar com tanta gente na sua própria língua, lhes falta a motivação para aprender a língua dos outros – o que me parece plausível. Ainda há pouco tempo, aliás, um amigo britânico que me veio visitar deu precisamente essa explicação para o facto de, como muitos compatriotas seus, não saber falar outras línguas. Mas quando se formula de outro modo a incapacidade dos anglófonos, acusando-os de “não terem jeito nenhum para línguas”, aí já não posso concordar. Quanto mais não seja, porque as pessoas de língua inglesa são as melhores que eu conheço a compreender a sua língua falada seja lá como for – uma competência linguística que falta a muita gente de outros idiomas… É o reverso da medalha, claro está, e resulta de uma vida inteira de prática de ouvir a sua língua falada com toda a classe de sotaques estrangeiros, cada qual mais arrevesado que o outro… Os falantes do inglês são bons nisso e são bons a aceitar que o inglês pode ser falado e escrito assim, daquela maneira esquisita como nós o falamos e escrevemos; a aceitar, até, que sejam pessoas de outras línguas a inventarem na língua deles palavras e expressões novas, algumas provavelmente tão estrangeiras que os arrepiam… Não imagino um português ou um francês a aceitar sem protestar, na sua língua, os erros bárbaros (aqui no sentido primeiro de típico de estrangeiros) que infestam constantemente todo o tipo de documentos e discursos em inglês.
Nunca os seres humanos tiveram as possibilidades que têm hoje de comunicarem uns com os outros. Se isto se deve, obviamente, sobretudo ao progresso tecnológico, ajuda também muito a este avanço o facto de haver finalmente uma língua (e uma língua viva, ademais) que um quarto da população do globo consegue, melhor ou pior, usar como língua franca. Evidentemente, que o inglês se tenha tornado língua de comunicação não resulta de nenhum plano altruísta. Mas não vale a pena pensar nisso, até porque provavelmente não há boas razões para uma língua se expandir. Agora, independentemente das razões pelas quais há finalmente uma língua de comunicação de grande sucesso à escala mundial, é uma sorte que a haja – e uma oportunidade que não deve ser desperdiçada.
Um bocadinho de respeito, então, por essa língua franca, em vez de nos acomodarmos apenas, como tanta gente tem tendência a fazer, em soluções mais ou menos pidginizadas de comunicação. Sigamos o exemplo de Joseph Conrad, para quem o inglês era a quarta língua, e uma língua que só começou a aprender já homem feito, e que conseguiu, ainda assim, tornar-se um dos mestres da língua inglesa (sem nunca perder, porém, o forte sotaque polaco…). Um bocadinho de respeito pelo inglês, dizia eu, e tenhamos sempre presente, não custa nada, que este inglês que falamos e escrevemos não é uma língua nossa – e também não é bem a língua dos seus falantes nativos…
[Atualizado a 28 de maio de 2023, sem atualização da grafia.]
13/12/08
As palavras são como as cerejas (2): dinheiro, desenvolvimento, vigarices e literatura fantástica
Segundo um site do governo moçambicano, eis a proposta aprovada de Orçamento Geral do Estado de Moçambique para 2008:
Receitas do Estado: 38 815 956,00 meticais (± 1 574 683 840 USD)
Despesas do Estado: 89 002 643,45 meticais (± 3 610 654 960 USD)
Défice: 50 186 687,45 meticais (± 2 035 971 120 USD)
Receitas do Estado: 38 815 956,00 meticais (± 1 574 683 840 USD)
Despesas do Estado: 89 002 643,45 meticais (± 3 610 654 960 USD)
Défice: 50 186 687,45 meticais (± 2 035 971 120 USD)
Não sei até que ponto é que o governo de Moçambique estará de facto a trabalhar com o orçamento previsto, mas, se tiver esse dinheiro para gastar este ano, é quase o dobro daquele que o CIA Factbook apresentava para 2007, 1 822 000 000 (não consigo confirmar este número, porque o link para o orçamento de 2007 no portal do Governo de Moçambique não funciona).
Partamos do princípio de que as despesas do Estado moçambicano são de facto os tais cerca de 3 600 000 000 USD. Isto significa que Moçambique, com os seus mais de 20 milhões de cidadãos, tem um orçamento cerca de 85 vezes mais pequeno do que o dos Países Baixos (que, com 16 milhões e meio de habitantes, tinham, em 2007, cerca de 306 500 000 000 USD para gastar) e cerca de 25 vezes mais baixo do que o de Portugal (que tem cerca de metade da população de Moçambique, e tinha, em 2007, 93 090 000 000 USD para gastar*). E as receitas do Estado moçambicano durante um ano dão para fazer cinco filmes como o Pirates of the Caribean: At World’s End (sem contar despesas de promoção).
Uma ideia que reúne amplo consenso em vários sectores de opinião (tão amplo, aliás, que eu não me atrevo a duvidar dela…) é que uma parte deste dinheiro é mal gasta. O que é interessante verificar é que – sobretudo tendo em conta que faltam em Moçambique muitas infra-estruturas que existem há muito tempo nos Países Baixos ou em Portugal e que Moçambique é cerca de 19 vezes maior do que os Países Baixos e 9 vezes maior do que Portugal – mesmo que o dinheiro público fosse todo ele gerido da melhor maneira possível, continuava a ser muito, muito pouco dinheiro, ou não?
[Tenho um amigo que diz que se devia entregar, durante alguns anos, a gestão de países como Moçambique a uma equipa de gestão considerada das melhores do mundo, para ela provar que é de facto uma grande equipa de gestão…]
Estabelece-se muitas vezes uma relação directa entre “corrupção” e “subdesenvolvimento”, e é provavelmente verdade que a extorsão e os desvios de fundos tendem, por razões óbvias, a ser prática mais generalizada nos países pobres; mas, por outro lado, a dimensão das vigarices talvez se possa também encarar como um bom indicador de desenvolvimento. Num país como Moçambique, por muito que haja muita malta a gamar, ninguém gama o que se gama na Dinamarca, quando lá se gama... Não sei se têm acompanhado a história de Stein Bagger e da empresa IT Factory, incluindo as histórias paralelas de Asger Jensby e da sua esposa Eva Snare. Uma pesquisa rápida em Google diz-me que os meios de informação portugueses não têm dado à história grande destaque, mas é história que vale mesmo a pena seguir. Como isto aqui não é um blogue de notícias, deixo-vos aqui um link para um resumo da história em inglês, já um bocadinho desactualizado, e o conselho de fazerem pesquisa e manterem-se actualizadas/os, porque a história evolui muito todos os dias e de maneira imprevisível. Para vos abrir o apetite: o valor da fraude pode, diz-se, chegar aos 1 000 000 000 USD. A ver vamos…
Um dos episódios engraçado dessa história, e que pode ser contado como anedota independente, é que, quando Stein Bagger (depois de ter desaparecido no Dubai e reaparecido em Nova Iorque, onde pediu emprestado um carro a um amigo sueco para atravessar os Estados Unidos de costa a costa, sabe-se lá por quê…) se entregou à polícia de Los Angeles, dizendo que era perseguido pela Interpol e que tinha roubado mil milhões de coroas, os agentes que o receberam na esquadra não o levarem mesmo nada a sério – porque não têm grande informação sobre os criminosos perseguidos pela Interpol; porque não é todos os dias que ali se vem entregar um criminoso daquele calibre; e, sobretudo, porque, numa zona daquelas, o que não falta é malta a acusar-se de todo o tipo de crimes, só para ter direito a uma sopinha e dormida à borla. Mas adiante…
A história de Stein Bagger não fica nada atrás de nenhum grande romance policial: o enredo central, o crime propriamente dito, é tão inconcebível e tão complexo como o dos thrillers mais sofisticados; e a surpresa que quotidianamente vai criando no leitor o desvendar dos muitos mistérios entrelaçados que constituem a história seria criação digna de qualquer grande autor/a de suspense. Quer dizer, se não fosse mesmo verdade, a história da IT Factory podia bem ter sido inventada, sei lá… dado o contexto escandinavo e a importância da informática na história… por Stieg Larsson, por exemplo…
Um louvor do fantástico, então, para terminar: Vivam os livros de areia de que nunca se pode ler duas vezes a mesma página, os golens, os semideuses, e as viagens no tempo! Se queremos escrever (ou filmar, ou desenhar…) uma história, seja para distrair apenas, seja para dizer coisas que achamos importantes, vale mais inventar personagens, situações e mundos que não existam fora da escrita, do cinema ou do desenho. Para quê fazer arte que conte a realidade?, se a realidade está permanentemente ao nosso alcance, e se não há ficção realista que, em estranheza, horror ou encanto, consiga competir com ela! A sério.
________________
* Estes números, referidos pela Wikipedia e tirados, ao que parece, do CIA Factbook, podem não ser exactos, mas também não se devem afastar muito da realidade…
25/11/08
Ficção científica
[Ficção científica não é o título deste texto – é o seu género. Trata-se da apresentação de uma hipótese que, por ser baseada em pouco mais do que a minha tendência para o devaneio, deve ser encarada assim – como ficção científica. Um delírio, enfim.]
Um senhor chamado V. S. Ramachandran, um dos investigadores desse fascinante apetrecho cerebral que são os neurónios-espelho, sugere num texto do ano passado, “The neurology of self-awareness”, que a consciência de si próprio pode muito bem ter origem na consciência dos outros. Quer dizer, do ponto de vista evolutivo, tenho mais vantagem em desenvolver a capacidade de formular hipóteses e juízos sobre o que os outros pensam e sentem do que formular essas hipóteses e juízos sobre o que eu próprio penso e sinto. Com as palavras de Ramachandran:
E se a consciência de nós nunca se tiver completado? Se a condição para conseguir virar para dentro a capacidade de formular teorias sobre as mentes alheias for a impossibilidade de identificar a entidade que formula a teoria sobre a mente que observa com a entidade possuidora dessa mesma mente? A cisão do eu, a ficção dualista de base, estaria assim explicada. A consciência de nós próprios talvez não se possa com propriedade chamar assim – talvez continue a ser sempre consciência de outro alguém, mesmo que lhe chamemos eu.
Um senhor chamado V. S. Ramachandran, um dos investigadores desse fascinante apetrecho cerebral que são os neurónios-espelho, sugere num texto do ano passado, “The neurology of self-awareness”, que a consciência de si próprio pode muito bem ter origem na consciência dos outros. Quer dizer, do ponto de vista evolutivo, tenho mais vantagem em desenvolver a capacidade de formular hipóteses e juízos sobre o que os outros pensam e sentem do que formular essas hipóteses e juízos sobre o que eu próprio penso e sinto. Com as palavras de Ramachandran:
Sugiro que a consciência de si próprio é simplesmente usar os neurónios-espelho para “olhar para mim mesmo como se outra pessoa estivesse a olhar para mim” (…). O mecanismo dos neurónios-espelho (...), que originalmente evoluiu para nos ajudar a adoptar a perspectiva de outra pessoa, foi virado para dentro, para olharmos para nós próprios. Isto é essencialmente a base de coisas como “introspecção”. Pode não ser coincidência que usemos expressões como “self-conscious” [literalmente “consciente de si próprio”, mas significando “tímido” ou “pouco natural”] quando o que queremos de facto dizer é que alguém tem consciência de que os outros têm consciência dele. Ou que digamos “estou a reflectir” quando queremos dizer que estamos conscientes de estarmos a pensar. Por outras palavras, a capacidade de se virar para dentro para introspecção ou reflexão pode bem ser um tipo de extensão metafórica da capacidade dos neurónios-espelhos de ler outras mentes. Parte-se muitas vezes do princípio tácito de que a capacidade exclusivamente humana de elaborar uma “teoria de outras mentes” (ver o mundo da perspectiva de outrem, “ler a mente”, tentar descobrir quais são as intenções de alguém, etc.) deve vir depois de um preexistente sentido de si próprio. Estou aqui a defender que é exactamente o contrário que é verdade: a “teoria de outras mentes” evoluiu primeiro como resposta a necessidades de ordem social e só mais tarde, bónus inesperado, veio a capacidade de introspecção dos próprios pensamentos e intenções.V. S. Ramachandran diz depois que não se considera muito original ao defender estas ideias, porque elas fazem parte do espírito dos tempos que correm. Ora outra ideia que faz parte do espírito dos tempos é que existe uma dualidade natural na nossa concepção de nós mesmos que leva, em última análise, à ideia de uma essência de nós com as mesmas características que o conceito metafísico de alma. Já aqui referi uma vez, a (des)propósito de uma coisa completamente diferente, as ideias de Paul Bloom sobre esse tema. No artigo “The duel between body and soul”, (New York Times, Setembro de 2004), diz ele, por exemplo:
Perguntei uma vez ao meu filho Max, de seis anos, o que pensava do cérebro, e ele disse que é muito importante e que participa em muito pensamento – mas não é de lá que vêm o sonho ou sentir-se triste, ou gostar do seu irmão. Max disse que isso é ele que faz, embora admita que o cérebro o possa ajudar. Estudos de psicologia do desenvolvimento sugerem que crianças jovens não encaram o seu próprio cérebro como fonte de experiência consciente e de vontade. Vêem-no antes como uma ferramenta que se usa para determinadas operações mentais. É uma prótese cognitiva, acrescentada à alma para aumentar a sua capacidade de cálculo.Discordo de Bloom nalgumas das suas posições sobre a predisposição natural dos seres humanos para a religião, mas tenho tendência a concordar com ele na questão do dualismo, porque é precisamente isso que observo constantemente na maneira como as pessoas – incluindo eu próprio, claro está – vão “naturalmente” parar a uma concepção de si próprias segundo a qual há um verdadeiro eu essencial e outros eus que o são menos, ao sabor das circunstâncias. “Uma pessoa passa-se!”,“Eu não me reconheço no que fiz!”, “Nós conseguimos convencer-nos a nós próprios de muita coisa, se quisermos!”, “O que importa é livramo-nos do que nos impingem e sermos nós próprios!”, “Temos de aprender a aceitar-nos como realmente somos”, etc., etc.... E isto para não entrar já em questões mais complexas como a da entidade que escolhe, quando falamos de livre arbítrio...
Esta maneira de ver as coisas pode não ser muito diferente da de muitos adultos. As pessoas ficam muitas vezes surpreendidas ao descobrirem que certas partes do cérebro se revelam activas – acendem – num scanner quando se pensa em religião, sexo ou raça. Esta surpresa mostra o pressuposto tácito de que o cérebro participa nalguns aspectos da vida mental, mas não noutros. Mesmo os especialistas, ao descreverem esses resultados, caem na linguagem dualista: “Penso sobre sexo e isso activa tal e tal parte do meu cérebro” – como se houvesse dois acontecimentos distintos, primeiro o pensamento e depois a actividade cerebral.
E se a consciência de nós nunca se tiver completado? Se a condição para conseguir virar para dentro a capacidade de formular teorias sobre as mentes alheias for a impossibilidade de identificar a entidade que formula a teoria sobre a mente que observa com a entidade possuidora dessa mesma mente? A cisão do eu, a ficção dualista de base, estaria assim explicada. A consciência de nós próprios talvez não se possa com propriedade chamar assim – talvez continue a ser sempre consciência de outro alguém, mesmo que lhe chamemos eu.
Dos dois limites que temos, mais um terceiro
Diz-se muitas vezes que alguém “se superou a si próprio”, que “foi além das suas próprias capacidades”, mas, logicamente, é apenas de um pretenso limite que se está a falar. Chamemos-lhe daqui para a frente “o primeiro limite”, para simplificar o texto. O primeiro limite é, então, um limite aparente, mas de uma aparência muito convincente, tão convincente que nos parece uma barreira real. Provavelmente, porque é o limite do razoável, digamos assim; porque, de cada vez que o passamos, estamos a fazer-nos mal a nós próprios. Não podemos, pois, permitir-nos atravessá-lo de ânimo leve; tem de nos surgir como bastante insuperável. O que é interessante é que a natureza, mãe carinhosa que é, nos apetrechou com mecanismos especiais para nos ajudar a passar para além desse primeiro limite. Por exemplo:
A fome avisa-nos de que precisamos de comida. Quanto mais tempo passamos sem comer, mais fome temos, naturalmente. Até que ultrapassamos a tal barreira e, ao fim de três, quatro, cinco dias sem comer (depende das pessoas), deixamos de ter fome. Carinhosa, a mãe natureza, dizia eu. É que, se não for por curiosidade intelectual ou por obediência a qualquer estranho preceito místico que deixamos de comer, mas apenas por falta de comida, não nos ajuda nada o tormento da fome. Então, ultrapassamos esse primeiro limite e deixamos de ter fome, e é capaz de nos ser assim mais fácil arranjar com que nos alimentarmos.
O mesmo com o esforço físico. Andar ou correr muito, por exemplo. Estamos tão cansados que já não aguentamos mais. Temos de parar, descansar, as pernas já não respondem, o cérebro começa a aquecer, a aquecer. Mas depois, se nos conseguirmos controlar o suficiente para desobedecer aos avisos do corpo sobre as fronteiras do razoável, podemos continuar a andar ou a correr muito mais tempo. Sem grandes problemas. Também isto é sem interesse quando uma pessoa se cansa a andar ou a correr por gosto. Mas imaginem que é de uma situação de guerra que se trata ou de fugir de qualquer outro perigo que nos ameace a vida. Ainda bem que a mãe natureza é carinhosa e nos faz esquecer que estamos a ir longe demais no nosso esforço, porque mais vale dar um bocadinho cabo da vida do que perdê-la.
E com o sono passa-se algo semelhante, como toda a gente sabe. Muito tempo sem dormir e a pesada sonolência inicial é substituída por um estado nervoso de permanente alerta, em que não conseguimos já dormir, por mais que tentemos e apesar da exaustão. Esse estado de alerta, para lá do limite do sono, pode também ser a nossa salvação em muitas situações de perigo.
A ideia que eu tenho é que não é só para além da fome, do esgotamento físico ou do sono que se pode passar, mas também para além de todas as sensações negativas. De toda a dor, digamos assim. Quando chegamos ao insuportável, dessensibilizamo-nos, para poder seguir em frente. Pensem em quem viu morrer à sua volta todos os seus e multidões mais de pessoas, em quem viu literalmente desmoronar-se o seu mundo; pensem em quem foi vítima de crueldades maiores do que estamos habituados a conceber. Como ficar preso na dor pode ser fatal, desenvolvemos a capacidade natural de ultrapassar a primeira barreira e continuar.
Depois, há uma altura em que a falta de alimentos no corpo nos impede de não sentir fome. Atingimos o segundo limite, e comemos ou caímos. A certa altura de corrermos para além do cansaço, caímos mesmo para o chão. Atingimos também o segundo limite. Ao fim de muito tempo de alerta permanente, caímos de sono. É inútil sequer tentarmos manter-nos despertos, porque atingimos o segundo limite. E o segundo limite dos outros males menos físicos, digamos assim, que forma tem ele? Provavelmente, atingimos esse segundo limite quando a dor nos faz perder a razão.
Para além deste segundo limite, não há mais nada. Que se o ultrapasse e – mais ou menos literalmente, conforme a situação – é a morte. O terceiro limite, portanto. Que, vendo bem, é que é o limite que conta. Porque às três tem vez, não é verdade?
A fome avisa-nos de que precisamos de comida. Quanto mais tempo passamos sem comer, mais fome temos, naturalmente. Até que ultrapassamos a tal barreira e, ao fim de três, quatro, cinco dias sem comer (depende das pessoas), deixamos de ter fome. Carinhosa, a mãe natureza, dizia eu. É que, se não for por curiosidade intelectual ou por obediência a qualquer estranho preceito místico que deixamos de comer, mas apenas por falta de comida, não nos ajuda nada o tormento da fome. Então, ultrapassamos esse primeiro limite e deixamos de ter fome, e é capaz de nos ser assim mais fácil arranjar com que nos alimentarmos.
O mesmo com o esforço físico. Andar ou correr muito, por exemplo. Estamos tão cansados que já não aguentamos mais. Temos de parar, descansar, as pernas já não respondem, o cérebro começa a aquecer, a aquecer. Mas depois, se nos conseguirmos controlar o suficiente para desobedecer aos avisos do corpo sobre as fronteiras do razoável, podemos continuar a andar ou a correr muito mais tempo. Sem grandes problemas. Também isto é sem interesse quando uma pessoa se cansa a andar ou a correr por gosto. Mas imaginem que é de uma situação de guerra que se trata ou de fugir de qualquer outro perigo que nos ameace a vida. Ainda bem que a mãe natureza é carinhosa e nos faz esquecer que estamos a ir longe demais no nosso esforço, porque mais vale dar um bocadinho cabo da vida do que perdê-la.
E com o sono passa-se algo semelhante, como toda a gente sabe. Muito tempo sem dormir e a pesada sonolência inicial é substituída por um estado nervoso de permanente alerta, em que não conseguimos já dormir, por mais que tentemos e apesar da exaustão. Esse estado de alerta, para lá do limite do sono, pode também ser a nossa salvação em muitas situações de perigo.
A ideia que eu tenho é que não é só para além da fome, do esgotamento físico ou do sono que se pode passar, mas também para além de todas as sensações negativas. De toda a dor, digamos assim. Quando chegamos ao insuportável, dessensibilizamo-nos, para poder seguir em frente. Pensem em quem viu morrer à sua volta todos os seus e multidões mais de pessoas, em quem viu literalmente desmoronar-se o seu mundo; pensem em quem foi vítima de crueldades maiores do que estamos habituados a conceber. Como ficar preso na dor pode ser fatal, desenvolvemos a capacidade natural de ultrapassar a primeira barreira e continuar.
Depois, há uma altura em que a falta de alimentos no corpo nos impede de não sentir fome. Atingimos o segundo limite, e comemos ou caímos. A certa altura de corrermos para além do cansaço, caímos mesmo para o chão. Atingimos também o segundo limite. Ao fim de muito tempo de alerta permanente, caímos de sono. É inútil sequer tentarmos manter-nos despertos, porque atingimos o segundo limite. E o segundo limite dos outros males menos físicos, digamos assim, que forma tem ele? Provavelmente, atingimos esse segundo limite quando a dor nos faz perder a razão.
Para além deste segundo limite, não há mais nada. Que se o ultrapasse e – mais ou menos literalmente, conforme a situação – é a morte. O terceiro limite, portanto. Que, vendo bem, é que é o limite que conta. Porque às três tem vez, não é verdade?
17/11/08
Lendas portuguesas: rosas húngaras e amendoeiras andaluzas
A lenda das rosas
Havia em Paris (talvez ainda haja...) um bar chamado Lèche-Vin, que era todo decorado com imagens de santinhos e santinhas, excepto a casa de banho, cujas paredes eram forradas a fotografias pornográficas. Uma noite, enquanto saboreava uma bière de garde, chamou‑me a atenção uma das santinhas na parede mesmo ao meu lado. Ou melhor, o que me chamou a atenção não foi tanto a santa mas o texto que tinha por baixo: “Há muito tempo, transformaram-se bocados de pão em rosas nas pregas do vestido de Santa Roseline, padroeira dos Cartuxos”.
Vim a saber mais tarde, à leitura de um romance de Somerset Maugham sobre uma parte da vida de Maquiavel (Then and now) que (traduzo eu) “[Isabel da Hungria,] proibida pelo seu cruel marido de acudir aos necessitados, encontrou-o na rua um dia em que levava com ela pão para os pobres. Suspeitando que ela estava a desobedecer às suas ordens, ele perguntou‑lhe o que levava no cesto e ela, assustada, disse-lhe que eram rosas. Ele arrancou-lhe o cesto da mão e quando o abriu constatou que ela tinha dito a verdade. Os pães tinham-se milagrosamente transformado em rosas de cheiro doce.” Não sei se isto se terá passado com o marido, como conta a lenda, ou antes com o cunhado, porque foi o cunhado que, depois da morte do marido, a acusou publicamente de andar a gastar o dinheiro das propriedade da família deles, na Turíngia.
Seja como for, acho que perceberam onde é que eu quero chegar: estas histórias são iguais entre si e iguais à lenda que todos conhecem e que se conta de Isabel, esposa do nosso rei Dinis. Seguindo um critério cronológico, a milagreira original deve ser Isabel da Hungria e não a de Portugal, já que a santa húngara, tia-avó da portuguesa, viveu umas quantas décadas antes dela. E mesmo Santa Rosaline de Villeneuve (1263-1329), a outra candidata ao milagre das rosas, é ligeiramente mais velha do que Isabel de Aragão (1271-1336); e, sobretudo tendo em conta que o milagre das rosas que se lhe atribui se deu na sua juventude, também o pão se lhe transformou em rosas no regaço antes de o mesmo extraordinário acontecimento se ter dado com a Isabel de D. Dinis...
Mas enfim, o que mais me interessa nesta história é analisar com que tipos de atitudes compactua Deus, se assumimos que o milagre é produto da intervenção divina: O marido (ou o pai, no caso de Roseline de Villeneuve) não quer que a santa pratique a caridade; e quando o homem aparece, a santa, em vez de assumir o bem que faz, tenta disfarçá-lo, submissa ao poder masculino. O milagre devia ser, acho que estamos nisso todos de acordo, cair do céu um martelo em cima da cabeça do homem, e que lhe abrisse um fenda no crânio por onde o Espírito Santo pudesse entrar, começando então o ex‑sovina a contribuir voluntariamente do seu bolso com qualquer coisinha para os mais desfavorecidos – e já não digo instituir um sistema social justo nos seus domínios, que, mesmo para milagre, é pedir demais a Deus… Mas, não! O que Deus faz, milagre dos milagres, é ajudá‑la a mentir para se safar de um raspanete do pouco caridoso marido (ou pai).
A lenda das amendoeiras
Dispenso‑me de comentar a moralidade deste nosso criador e passo antes a traduzir do inglês um texto que encontrei num “livro de factos” das Selecções do Reader’s Digest (AAVV, Reader’s Digest Book of Facts. Cape Town: Reader’s Digest Association of South Africa – Printbak Books, 1989, p.63.)
Para terminar, como as palavras são como as ginjinhas, e a propósito de origens desconhecidas de histórias conhecidas, uma curiosidade: Sabiam que foi ao Libro de los ejemplos del conde Lucanor y de Patronio, de que eu falava aí atrás, que H. C. Andersen foi buscar a história, que toda a gente pensa que foi ele que inventou, de um rei que andava nu convencido de que andava bem vestido?
Havia em Paris (talvez ainda haja...) um bar chamado Lèche-Vin, que era todo decorado com imagens de santinhos e santinhas, excepto a casa de banho, cujas paredes eram forradas a fotografias pornográficas. Uma noite, enquanto saboreava uma bière de garde, chamou‑me a atenção uma das santinhas na parede mesmo ao meu lado. Ou melhor, o que me chamou a atenção não foi tanto a santa mas o texto que tinha por baixo: “Há muito tempo, transformaram-se bocados de pão em rosas nas pregas do vestido de Santa Roseline, padroeira dos Cartuxos”.
Vim a saber mais tarde, à leitura de um romance de Somerset Maugham sobre uma parte da vida de Maquiavel (Then and now) que (traduzo eu) “[Isabel da Hungria,] proibida pelo seu cruel marido de acudir aos necessitados, encontrou-o na rua um dia em que levava com ela pão para os pobres. Suspeitando que ela estava a desobedecer às suas ordens, ele perguntou‑lhe o que levava no cesto e ela, assustada, disse-lhe que eram rosas. Ele arrancou-lhe o cesto da mão e quando o abriu constatou que ela tinha dito a verdade. Os pães tinham-se milagrosamente transformado em rosas de cheiro doce.” Não sei se isto se terá passado com o marido, como conta a lenda, ou antes com o cunhado, porque foi o cunhado que, depois da morte do marido, a acusou publicamente de andar a gastar o dinheiro das propriedade da família deles, na Turíngia.
Seja como for, acho que perceberam onde é que eu quero chegar: estas histórias são iguais entre si e iguais à lenda que todos conhecem e que se conta de Isabel, esposa do nosso rei Dinis. Seguindo um critério cronológico, a milagreira original deve ser Isabel da Hungria e não a de Portugal, já que a santa húngara, tia-avó da portuguesa, viveu umas quantas décadas antes dela. E mesmo Santa Rosaline de Villeneuve (1263-1329), a outra candidata ao milagre das rosas, é ligeiramente mais velha do que Isabel de Aragão (1271-1336); e, sobretudo tendo em conta que o milagre das rosas que se lhe atribui se deu na sua juventude, também o pão se lhe transformou em rosas no regaço antes de o mesmo extraordinário acontecimento se ter dado com a Isabel de D. Dinis...
Mas enfim, o que mais me interessa nesta história é analisar com que tipos de atitudes compactua Deus, se assumimos que o milagre é produto da intervenção divina: O marido (ou o pai, no caso de Roseline de Villeneuve) não quer que a santa pratique a caridade; e quando o homem aparece, a santa, em vez de assumir o bem que faz, tenta disfarçá-lo, submissa ao poder masculino. O milagre devia ser, acho que estamos nisso todos de acordo, cair do céu um martelo em cima da cabeça do homem, e que lhe abrisse um fenda no crânio por onde o Espírito Santo pudesse entrar, começando então o ex‑sovina a contribuir voluntariamente do seu bolso com qualquer coisinha para os mais desfavorecidos – e já não digo instituir um sistema social justo nos seus domínios, que, mesmo para milagre, é pedir demais a Deus… Mas, não! O que Deus faz, milagre dos milagres, é ajudá‑la a mentir para se safar de um raspanete do pouco caridoso marido (ou pai).
A lenda das amendoeiras
Dispenso‑me de comentar a moralidade deste nosso criador e passo antes a traduzir do inglês um texto que encontrei num “livro de factos” das Selecções do Reader’s Digest (AAVV, Reader’s Digest Book of Facts. Cape Town: Reader’s Digest Association of South Africa – Printbak Books, 1989, p.63.)
Um rei árabe mandou uma vez plantar com amendoeiras toda a encosta de uma colina – para agradar à sua esposa favorita. Este rei, Almotamid, que reinou na região à volta de Sevilha em meados do século XI, quando Espanha era, em grande parte, uma colónia moura, mandou fazer esta plantação perto de Córdoba, porque a sua mulher – uma escrava cristã chamada Itimad – nunca tinha visto neve. Na Primavera, as pétalas caídas das flores das amendoeiras cobriam de branco as encostas, o mais parecido como neve que se conseguia no clima temperado do Sul de Espanha.Esta versão da história diverge, pois, da que nós que conhecemos como “portuguesa” e como “A lenda das amendoeiras” por não se passar no Algarve (embora, de facto, o reino de Al-Mutamid abrangesse também o Algarve) e no pormenor importante de que Al-Mutamid quer mostrar a I’timad que aspecto tem a neve, ao passo que na versão portuguesa (pelo menos, como eu a conheço) o rei mouro não identificado quer, com a “neve” artificial, matar as saudades que a sua nórdica esposa sente das paisagens de Inverno da sua terra natal. Na minha opinião, esta versão da história é muito mais bonita. Agora, a história é provavelmente tirada do Libro de los ejemplos del conde Lucanor y de Patronio, de Don Juan Manuel. Se assim for, a versão original, que vem em pouco mais de um parágrafo do “Exemplo XXX” desta obra, não é bem nem como a do livro das selecções do Reader’s Digest nem como a que eu aprendi na escola (traduzo eu), mas mais próxima desta do que daquela:
(…) um dia, estando em Córdova no mês de Fevereiro, caiu uma neve; e quando Ramaiquía a viu, começou a chorar. E perguntou-lhe o rei por que chorava. E ela disse-lhe que porque nunca a deixava estar em terra onde visse neve. E o rei, para lhe agradar, mandou pôr amendoais por toda a serra de Córdoba; para que, como Córdoba é terra quente e não neva aí todos os anos, em Fevereiro aparecessem floridos os amendoais, que parecem neve, para lhe fazer perder os desejos da neve.Agora, pergunto eu, por que é que Al-Mutamid não levou I’timad à Sierra Nevada, que fica ali perto? Apaixonado, talvez, mas de paixão preguiçosa.
Para terminar, como as palavras são como as ginjinhas, e a propósito de origens desconhecidas de histórias conhecidas, uma curiosidade: Sabiam que foi ao Libro de los ejemplos del conde Lucanor y de Patronio, de que eu falava aí atrás, que H. C. Andersen foi buscar a história, que toda a gente pensa que foi ele que inventou, de um rei que andava nu convencido de que andava bem vestido?
06/11/08
Histórias de arenques e bacalhaus
Quando se faz história de temas em vez de se fazer história de nações e dos seus líderes, os objectos de estudo que eu vejo são sempre abstractos. Há história do medo, da democracia, da família, da vida privada, das doenças, da contracepção, do diabo, etc., etc., etc., mas nenhum desses temas de mentalidades e instituições tem cheiro que não seja metafórico e vago. Nada que se possa comparar com o apetitoso cheiro – nauseabundo, dirão alguns, eu sei… – do arenque e do bacalhau, de que li há pouco tempo duas histórias (uma de cada um, claro está…): Cod: A Biography of the Fish That Changed the World, de Mark Kurlansky* (London: Penguin, 1998) e Herring - A History Of The Silver Darlings, de Mike Smylie (London: The History Press LTD, 2004). São dois livros, perdão..., dois peixes fundamentais para a história da Europa e de mais alguns lugares do mundo.
[Esclareço também que, ao contrário do que eu dizia noutro texto desta Travessa (e espero que isso não tenha sido claro para ninguém, porque a minha intenção, nesse texto, era precisamente que não se distinguisse o que era irónico do que não o era…), acho mesmo que toda a gente devia comer peixe e sopa, e tudo com azeite cru, em vez de porcarias que só fazem é mal!]
As duas histórias de peixes de que aqui falo agora têm várias coisas em comum: são ambas de escrita escorreita e leitura fácil; são as duas pouco académicas e, a espaços, de rigor duvidoso (mais a primeira do que a segunda), mas têm ambas também muita informação interessante e suficientemente documentada; têm as duas muitas receitas, de gastronomias várias e algumas delas muito antigas; e são ambas ilustradas com muitas e bonitas fotografias, desenhos e gravuras (mais a segunda do que a primeira). Eis uma selecção um bocado ao calhas de coisas que se podem aprender nestes livros: aprende-se, por exemplo, que, ao contrário do que possam imaginar alguns ecologistas ingénuos, há muito tempo que se come comida transportada de bem longe; aprende-se que muitas receitas de cozinha que muita gente considera exclusivas do seu país (pastéis de bacalhau, por exemplo…) não são de uma exclusividade assim tão exclusiva como isso tudo…; aprende-se como James I de Inglaterra teve a ideia de delimitar águas territoriais e como a ideia se foi desenvolvendo; que o arenque constituía uma parte importante da alimentação dos soldados do império britânico; que era, em muitos sítios, em arenques que se pagavam tributos feudais e dízimas; que o arenque é um dos produtos cujo comércio está na origem da criação da Liga Hanseática; aprende-se que as cabeças do bacalhau eram, antigamente, a parte mais valorizada desse peixe (fresco, entenda-se); aprende-se como os pescadores foram tranquila e obstinadamente esvaziando os mares de peixe (mas isso já toda a gente sabe, não é?); e como os gostos foram mudando à medida que a Europa se ia desenvolvendo, até o peixe deixar de fazer parte da dieta quotidiana da esmagadora maioria dos seus habitantes (Portugal e Espanha ainda são, ao que parece, uma ainda-bem-que-excepção). E aprende-se também que – ao contrário do que pensam muitos portugueses e embora se tivessem fartado de o pescar, ninguém lhes tira isso – não foram os portugueses os mais importantes pescadores de bacalhau** (e, claro, de arenque também não o podiam ser, que não é peixe das nossas águas nem das nossas tradições), mas tiveram, em certas épocas um papel muito importante na conservação de ambos os peixes, que foi o de fornecerem sal – e o sal favorito dos produtores: no início do século XIV, o sal de Aveiro era o sal preferido para salgar bacalhau de boa qualidade; na mesma altura, era proibido aos neerlandeses usar o chamado “sal de Lisboa” (que era de facto de Setúbal) para a salmoura do arenque de barrica, mas, nos séculos seguintes, era esse mesmo sal considerado o melhor para esse fim.
Agora, certo já de sermos o sol, o sul e muito o sal, o que tenho de fazer a seguir é arranjar um livro sobre a “rechinante sardinha” (deve haver…), que é, aliás, também da família dos arenques. De facto, os dois peixes são tão parecidos no sabor e na textura que eu não percebo por que é que não se comem arenques assados na brasa nos países do Norte e por que é que não se faz conserva de sardinha em molhos à base de vinagre, sal e açúcar nos países do Sul. Tenho de ser eu, está visto, a acabar com esses prconceitos. E depois digo-vos o resultado, sim?
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* Está traduzido em português americano e em português europeu. A edição portuguesa é O Bacalhau: biografia do peixe que mudou o mundo. Lisboa: Terramar, 2000.
** De facto, os portugueses praticamente não pescaram bacalhau entre o século XVI e o século XIX, e, mesmo no período áureo da pesca do bacalhau, dos anos 40 aos anos 70 do século XX, quando Portugal conseguiu chegar a ser o primeiro produtor mundial de bacalhau seco e salgado, não deixou nunca de importar bacalhau. Para um resumo da história da pesca do bacalhau, ver, por exemplo, o documentário da RTP Faina maior, a pesca do bacalhau, do historiador Fernando Rosas, com a participação do historiador Álvaro Garrido, especialista do tema.
[Esclareço também que, ao contrário do que eu dizia noutro texto desta Travessa (e espero que isso não tenha sido claro para ninguém, porque a minha intenção, nesse texto, era precisamente que não se distinguisse o que era irónico do que não o era…), acho mesmo que toda a gente devia comer peixe e sopa, e tudo com azeite cru, em vez de porcarias que só fazem é mal!]
As duas histórias de peixes de que aqui falo agora têm várias coisas em comum: são ambas de escrita escorreita e leitura fácil; são as duas pouco académicas e, a espaços, de rigor duvidoso (mais a primeira do que a segunda), mas têm ambas também muita informação interessante e suficientemente documentada; têm as duas muitas receitas, de gastronomias várias e algumas delas muito antigas; e são ambas ilustradas com muitas e bonitas fotografias, desenhos e gravuras (mais a segunda do que a primeira). Eis uma selecção um bocado ao calhas de coisas que se podem aprender nestes livros: aprende-se, por exemplo, que, ao contrário do que possam imaginar alguns ecologistas ingénuos, há muito tempo que se come comida transportada de bem longe; aprende-se que muitas receitas de cozinha que muita gente considera exclusivas do seu país (pastéis de bacalhau, por exemplo…) não são de uma exclusividade assim tão exclusiva como isso tudo…; aprende-se como James I de Inglaterra teve a ideia de delimitar águas territoriais e como a ideia se foi desenvolvendo; que o arenque constituía uma parte importante da alimentação dos soldados do império britânico; que era, em muitos sítios, em arenques que se pagavam tributos feudais e dízimas; que o arenque é um dos produtos cujo comércio está na origem da criação da Liga Hanseática; aprende-se que as cabeças do bacalhau eram, antigamente, a parte mais valorizada desse peixe (fresco, entenda-se); aprende-se como os pescadores foram tranquila e obstinadamente esvaziando os mares de peixe (mas isso já toda a gente sabe, não é?); e como os gostos foram mudando à medida que a Europa se ia desenvolvendo, até o peixe deixar de fazer parte da dieta quotidiana da esmagadora maioria dos seus habitantes (Portugal e Espanha ainda são, ao que parece, uma ainda-bem-que-excepção). E aprende-se também que – ao contrário do que pensam muitos portugueses e embora se tivessem fartado de o pescar, ninguém lhes tira isso – não foram os portugueses os mais importantes pescadores de bacalhau** (e, claro, de arenque também não o podiam ser, que não é peixe das nossas águas nem das nossas tradições), mas tiveram, em certas épocas um papel muito importante na conservação de ambos os peixes, que foi o de fornecerem sal – e o sal favorito dos produtores: no início do século XIV, o sal de Aveiro era o sal preferido para salgar bacalhau de boa qualidade; na mesma altura, era proibido aos neerlandeses usar o chamado “sal de Lisboa” (que era de facto de Setúbal) para a salmoura do arenque de barrica, mas, nos séculos seguintes, era esse mesmo sal considerado o melhor para esse fim.
Agora, certo já de sermos o sol, o sul e muito o sal, o que tenho de fazer a seguir é arranjar um livro sobre a “rechinante sardinha” (deve haver…), que é, aliás, também da família dos arenques. De facto, os dois peixes são tão parecidos no sabor e na textura que eu não percebo por que é que não se comem arenques assados na brasa nos países do Norte e por que é que não se faz conserva de sardinha em molhos à base de vinagre, sal e açúcar nos países do Sul. Tenho de ser eu, está visto, a acabar com esses prconceitos. E depois digo-vos o resultado, sim?
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* Está traduzido em português americano e em português europeu. A edição portuguesa é O Bacalhau: biografia do peixe que mudou o mundo. Lisboa: Terramar, 2000.
** De facto, os portugueses praticamente não pescaram bacalhau entre o século XVI e o século XIX, e, mesmo no período áureo da pesca do bacalhau, dos anos 40 aos anos 70 do século XX, quando Portugal conseguiu chegar a ser o primeiro produtor mundial de bacalhau seco e salgado, não deixou nunca de importar bacalhau. Para um resumo da história da pesca do bacalhau, ver, por exemplo, o documentário da RTP Faina maior, a pesca do bacalhau, do historiador Fernando Rosas, com a participação do historiador Álvaro Garrido, especialista do tema.
03/11/08
Universais de religiosidade – todos os deuses são humanos!
Paralelamente a muitas outras discussões sobre religião, há uma, muito interessante e cada vez mais aguerrida, entre quem acha que a religião é algo natural, inerente à condição humana – ou até que constitui uma construção adaptativa, com vantagens para a espécie –, e quem acha que a religião não é de modo algum um traço essencial da nossa humanidade e que passamos todos bem sem ela. A discussão tem tido muitas vertentes e há algumas sobre as quais não sei pronunciar-me. Por exemplo, na sequência de um interessantíssimo texto de Paul Bloom, houve no Reality Club um debate também muito interessante sobre o papel do nosso dualismo inato na religiosidade. Vários estudiosos concordam que, já de bebés, consideramos que há uma parte essencial de nós – uma alma, digamos assim, para simplificar –, que é distinta da nossa mente; mas nem todos concordam que esse dualismo inato implique que seja inata a religiosidade – ou a predisposição para ela.
Há outros estudos, porém, da predisposição humana para a religiosidade, que são facilmente comentáveis mesmo por quem não seja um especialista do assunto – como eu não sou. Já aqui uma vez comentei o postulado de que a vantagem mnemónica das histórias de seres sobrenaturais é uma explicação eficaz do sucesso das religiões. Agora, tenho de criticar a ideia do senhor Pascal Boyer no seu artigo “Religion: Bound to believe”, publicado na revista Nature (Nº 455, 1038-1039, de 23 October 2008, agora, só a pagar…) de que, no inconsciente dos crentes, todos os deuses de todas as religiões têm determinadas características, uma das quais é… serem humanos (traduzo eu):
Ora, mas então, o que isso quer dizer é que as pessoas são naturalmente realistas; o que isso quer dizer é que, como tem sido apontado muitas vezes, e até pelo próprio Pascal Boyer, se não estou em erro, os seres humanos têm, já à nascença, uma ideia bastante clara do que é possível e impossível neste mundo; o que isso quer dizer é que, mesmo que apenas intuitivamente, as pessoas sabem que não existem seres com as propriedades e as capacidades que as religiões atribuem aos seus deuses! É só isso. Por outras palavras, isso não é evidência de que a religião seja natural nos seres humanos, mas, pelo contrário, de que ela é, para os seres humanos, contra natura. Ou seja, essas descobertas que Pascal Boyer chama em defesa do seu postulado de que “o pensamento e o comportamento religiosos podem ser considerados parte das capacidades humanas naturais” provam, afinal, que o que é natural no pensamento humano é não aceitar no sobrenatural qualidades que não sejam perfeitamente naturais…
Há outros estudos, porém, da predisposição humana para a religiosidade, que são facilmente comentáveis mesmo por quem não seja um especialista do assunto – como eu não sou. Já aqui uma vez comentei o postulado de que a vantagem mnemónica das histórias de seres sobrenaturais é uma explicação eficaz do sucesso das religiões. Agora, tenho de criticar a ideia do senhor Pascal Boyer no seu artigo “Religion: Bound to believe”, publicado na revista Nature (Nº 455, 1038-1039, de 23 October 2008, agora, só a pagar…) de que, no inconsciente dos crentes, todos os deuses de todas as religiões têm determinadas características, uma das quais é… serem humanos (traduzo eu):
O pensamento e o comportamento religiosos podem ser considerados parte das capacidades humanas naturais, como a música, os sistemas políticos, as relações familiares ou as alianças étnicas. Há descobertas da psicologia cognitiva, das neurociências, da antropologia cultural e da arqueologia que prometem mudar a nossa maneira de ver a religião. […] Uma descoberta importante é que as pessoas só têm consciência de algumas das suas ideias religiosas. […] A psicologia cognitiva mostra que [as suas crenças religiosas conscientes] são sempre acompanhadas por uma série de pressupostos tácitos que, em geral, não estão disponíveis para inspecção consciente. // Por exemplo, há experiências que mostram que a maior parte das pessoas tem expectativas altamente antropomórficas relativamente aos deuses, sejam quais forem as suas crenças explícitas. Quando lhes contam uma história em que um deus resolve vários problemas ao mesmo tempo, acham esse conceito bastante plausível, uma vez que os deuses são, em geral, descritos como tendo poderes cognitivos ilimitados. Recordando a história momentos mais tarde, a maior parte das pessoas diz que o deus resolveu uma situação antes de passar à situação seguinte. As pessoas também esperam implicitamente que as mentes dos seus deuses funcionem como mentes humanas, mostrando os mesmos processos de percepção, memória, raciocínio e motivação. Essas expectativas não são conscientes, e são muitas vezes contraditórias relativamente às suas crenças explícitas.
Ora, mas então, o que isso quer dizer é que as pessoas são naturalmente realistas; o que isso quer dizer é que, como tem sido apontado muitas vezes, e até pelo próprio Pascal Boyer, se não estou em erro, os seres humanos têm, já à nascença, uma ideia bastante clara do que é possível e impossível neste mundo; o que isso quer dizer é que, mesmo que apenas intuitivamente, as pessoas sabem que não existem seres com as propriedades e as capacidades que as religiões atribuem aos seus deuses! É só isso. Por outras palavras, isso não é evidência de que a religião seja natural nos seres humanos, mas, pelo contrário, de que ela é, para os seres humanos, contra natura. Ou seja, essas descobertas que Pascal Boyer chama em defesa do seu postulado de que “o pensamento e o comportamento religiosos podem ser considerados parte das capacidades humanas naturais” provam, afinal, que o que é natural no pensamento humano é não aceitar no sobrenatural qualidades que não sejam perfeitamente naturais…
E o medo que temos de não passar de bichos… Pela minh'alma!
Lembrei-me no outro dia de uma conversa com uma colega da faculdade, depois de uma aula que ela teve sobre uma famosa experiência sobre dilatação de pupilas que Eckhard Hess e James Polt fizeram em 1960 (traduzo o resumo que dela faz Jason Waite*):
Está bem que eram estudantes de Humanidades, mas mesmo assim… A reacção é típica: ninguém quer ser considerado um animal. E muito menos uma máquina… O facto é que querer desalmar a humanidade, retirar-lhe aquilo que a diviniza (a alma é, ao que dizem, o que têm em as pessoas em comum com deus…) continua a ser muito mal visto em pleno século XXI. Donde nos virá este medo essencial de sermos só um emaranhado complexo de músculos e nervos? Uma das vertentes mais fortes deste preconceito é a recusa das características congénitas de carácter. No outro dia, em casa de um amigo, discutia-se a preguiça de uma amiga comum. “Ela é exactamente como o pai dela”, explicou ele. E perguntou-lhe a filha de 13 anos: “Achas que a preguiça é hereditária?” “De que é culturalmente transmissível, não tenho dúvida nenhuma!” Ora ele não tem, à partida, mais razões para acreditar que – pelo menos naquele caso – a preguiça seja mais cultural do que geneticamente transmitida. Mas, como toda a gente, favorece a priori a hipótese de que seja o meio e não o património genético a determinar esse traço de personalidade. É estranho!
Ou antes, não é estranho, porque é o que toda a gente faz. Se se fala de uma pessoa com problemas sociais que vem de uma família disfuncional, o normal é ver na disfuncionalidade da família a razão de ordem ambiental para os problemas das pessoas, e nunca admitir como hipótese que ela tenha herdado fisicamente essa disfuncionalidade. Ora, à partida, enquanto não se souber bem o que faz de cada um nós o que ele é, as duas hipóteses têm, pelo menos, o mesmo valor: 50% de probabilidades cada uma. E 50% é precisamente uma percentagem muitas vezes prudentemente apontada para contabilizar a influência na personalidade de cada um dos factores, o ambiental e o genético…
É claro, estou a exagerar quando digo que não percebo por que é que existe essa sistemática desvalorização do genético em relação ao adquirido. De facto, tenho algumas propostas de explicação: uma é o terror do pseudo-cientismo racista à maneira nazi; outra é a apropriação pelo senso comum das teorias psicanalíticas e afins; outra é que nos sentimos menos bichos e menos máquinas se nos acreditarmos mais determinados pelo meio do que pelos genes... Agora, por conservadorismo não é. Podia pensar-se que isto de começar a considerar a herança genética uma componente fundamental da maneira de ser da cada um é moda nova, e que ir contra essa forma de ver as coisas é ater-se à tradição, mas, de facto, as coisas não são nada assim. Existe, desde há muito, em todas as sociedades, uma consciência clara do valor do herdado: não só se fabricam raças de cães com “personalidades” específicas, como se diz que a Maria sai mais ao pai e o Zé mais à mãe – por exemplo porque gosta de dormir até tarde ou porque tem medo do mar. No outro dia, dei por mim a pensar que podemos até fazer uma releitura “geneticista” do refrão «Filho és, pai serás, como fizeres, assim acharás»: Para o provérbio ter algum sentido, ou admitimos que é Deus que nos recompensa ou nos castiga pelo bem ou pelo mal que fizemos aos nossos pais (e esta é, desculpem-me os crentes, uma leitura completamente disparatada!) ou então os nossos filhos tratar-nos-ão como nós tratámos os nossos pais – porque herdaram de nós essa maneira de ser…
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* Atualização a 9 de novembro de 2021: A página de Jason Waite onde se encontrava este texto (http://ohiotrumpetguild.org/~psych/psycweb/history/hess.htm) desapareceu entretanto, subsistindo durante algum tempo uma cópia do texto noutra página (http://zlgc.usx.edu.cn/kc/xlxs/contents/1697/4549.html). Atualmente, porém, não consigo encontrar em linha o texto que traduzo. terão de confiar em mim...)
(...) Hess e Polt apresentaram a um grupo de 20 homens duas fotos idênticas de uma mulher, que diferiam num único aspecto. Numa, as pupilas da mulher tinham sido muito ampliadas, ao passo que, na outra, as pupilas eram extremamente pequenas. Em média, [a dilatação das pupilas] nos homens, em resposta à fotografia com as pupilas aumentadas, era duas vezes maior do que em resposta à fotografia com as pupilas pequenas. Após a experiência, pediu-se aos homens que comentassem as fotografias e a maior parte disse que eram idênticas. Entre os poucos que não disseram que as fotos eram iguais, alguns afirmaram que numa a mulher [com as pupilas dilatadas, entenda-se] era “mais bonita” ou “mais feminina”. Nenhum dos participantes no teste tinha notado a diferença de tamanho das pupilas da mulher da fotografia.“Ficou tudo histérico na aula”, tinha-me contado a minha colega, “quando o professor aventou a possibilidade de a nossa concepção de beleza ser determinada por mecanismos fisiológicos primários. Houve mesmo quem reagisse mal. A própria ideia de que se façam estudos puramente etológicos de seres humanos é chocante para muitos dos meus colegas.”
Está bem que eram estudantes de Humanidades, mas mesmo assim… A reacção é típica: ninguém quer ser considerado um animal. E muito menos uma máquina… O facto é que querer desalmar a humanidade, retirar-lhe aquilo que a diviniza (a alma é, ao que dizem, o que têm em as pessoas em comum com deus…) continua a ser muito mal visto em pleno século XXI. Donde nos virá este medo essencial de sermos só um emaranhado complexo de músculos e nervos? Uma das vertentes mais fortes deste preconceito é a recusa das características congénitas de carácter. No outro dia, em casa de um amigo, discutia-se a preguiça de uma amiga comum. “Ela é exactamente como o pai dela”, explicou ele. E perguntou-lhe a filha de 13 anos: “Achas que a preguiça é hereditária?” “De que é culturalmente transmissível, não tenho dúvida nenhuma!” Ora ele não tem, à partida, mais razões para acreditar que – pelo menos naquele caso – a preguiça seja mais cultural do que geneticamente transmitida. Mas, como toda a gente, favorece a priori a hipótese de que seja o meio e não o património genético a determinar esse traço de personalidade. É estranho!
Ou antes, não é estranho, porque é o que toda a gente faz. Se se fala de uma pessoa com problemas sociais que vem de uma família disfuncional, o normal é ver na disfuncionalidade da família a razão de ordem ambiental para os problemas das pessoas, e nunca admitir como hipótese que ela tenha herdado fisicamente essa disfuncionalidade. Ora, à partida, enquanto não se souber bem o que faz de cada um nós o que ele é, as duas hipóteses têm, pelo menos, o mesmo valor: 50% de probabilidades cada uma. E 50% é precisamente uma percentagem muitas vezes prudentemente apontada para contabilizar a influência na personalidade de cada um dos factores, o ambiental e o genético…
É claro, estou a exagerar quando digo que não percebo por que é que existe essa sistemática desvalorização do genético em relação ao adquirido. De facto, tenho algumas propostas de explicação: uma é o terror do pseudo-cientismo racista à maneira nazi; outra é a apropriação pelo senso comum das teorias psicanalíticas e afins; outra é que nos sentimos menos bichos e menos máquinas se nos acreditarmos mais determinados pelo meio do que pelos genes... Agora, por conservadorismo não é. Podia pensar-se que isto de começar a considerar a herança genética uma componente fundamental da maneira de ser da cada um é moda nova, e que ir contra essa forma de ver as coisas é ater-se à tradição, mas, de facto, as coisas não são nada assim. Existe, desde há muito, em todas as sociedades, uma consciência clara do valor do herdado: não só se fabricam raças de cães com “personalidades” específicas, como se diz que a Maria sai mais ao pai e o Zé mais à mãe – por exemplo porque gosta de dormir até tarde ou porque tem medo do mar. No outro dia, dei por mim a pensar que podemos até fazer uma releitura “geneticista” do refrão «Filho és, pai serás, como fizeres, assim acharás»: Para o provérbio ter algum sentido, ou admitimos que é Deus que nos recompensa ou nos castiga pelo bem ou pelo mal que fizemos aos nossos pais (e esta é, desculpem-me os crentes, uma leitura completamente disparatada!) ou então os nossos filhos tratar-nos-ão como nós tratámos os nossos pais – porque herdaram de nós essa maneira de ser…
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* Atualização a 9 de novembro de 2021: A página de Jason Waite onde se encontrava este texto (http://ohiotrumpetguild.org/~psych/psycweb/history/hess.htm) desapareceu entretanto, subsistindo durante algum tempo uma cópia do texto noutra página (http://zlgc.usx.edu.cn/kc/xlxs/contents/1697/4549.html). Atualmente, porém, não consigo encontrar em linha o texto que traduzo. terão de confiar em mim...)
25/10/08
A razão e o sentimento: vai-te mundo, cada vez a melhor
Desde os ensinamentos de Sidarta Gautama (que dizem que foi buda…) aos trabalhos de vários cientistas modernos, inúmeras vezes tem sido posta em causa a pertinência da velha dicotomia entre o racional e o irracional, o sentido e o pensado, a razão e os sentimentos. Não pretendo defender aqui que a ruptura entre os dois domínios existe de facto, mas digo que, como ferramenta conceptual, ela é importante; e a distinção pode fazer-se com bastante clareza se a linha divisória entre os dois domínios for a capacidade de transmissão do que nos vai dentro. A experiência e os sentimentos são tão pessoais e intransmissíveis como os bilhetes de identidade ou de avião. Há muito quem pense que há formas de os transmitir através de outros tipos de discursos que não a linguagem normal (através da música ou da poesia, por exemplo), mas não há nenhuma prova de que essa transmissão seja possível. O que há, na maior parte dos casos, é antes uma ilusão de transmissão de experiências e sentimentos. Mesmo a partilha de uma vivência concreta não garante uma comunhão da experiência: o medo que eu senti nas estradas de montanha da Bolívia não foi partilhado por muitos dos meus companheiros nessas viagens. O conhecimento, as ideias, o racional, é o que, de dentro de nós, pode ser recebido por todos os outros sem perdas significativas na transmissão e acumular-se como propriedade de todos os humanos.
Pode argumentar-se que o mais importante de cada um para os outros é a maneira como age relativamente a eles. A sua vida moral, digamos assim. E parece-me que o progresso nas relações entre pessoas tem resultado mais de uma discussão racional do que de alguma evolução dos sentimentos. Como o nota Steven Pinker (video aqui, texto aqui) e ao contrário do que postula o senso comum nas catastrofistas conversas que nos enchem o quotidiano, há uma clara e constante diminuição da violência ao longo da história da humanidade. É claro, não é impossível que tenha havido uma evolução da maneira como sentimos os outros, com causas específicas que não estamos ainda em condições de compreender, e que essa evolução tenha tido influência benéfica na nossa relação com eles. Não é impossível, mas não me parece muito plausível. Parece-me muito mais provável que qualquer alteração no nosso sentir (a existir) seja mais um produto das mudanças (racionalmente motivadas, entenda-se) da nossa organização social do que a sua causa. Além disso, creio que é possível demonstrar, contra todos os milenarismos que vêm na acumulação de conhecimentos e na evolução técnica que ela permite a desgraça da humanidade, que o progresso técnico tem contribuído tanto como o progresso moral para melhorar a vida das pessoas. Se há menos gente a sofrer agora do que há 500 anos, é porque a servidão e a escravatura foram abolidas, a justiça social e a igualdade foram aumentando, a violência é cada vez mais encarada como algo a banir, mas também porque melhorou a higiene e evoluíram a medicina, as técnicas de produção, etc.
Aonde quero eu chegar com este delírio? A uma conclusão simples: o Homo sapiens continua provavelmente a sentir pouco mais ou menos como sentia há 100 000 anos atrás, mas evoluíram muito o seu conhecimento e as suas instituições – o que é transmissível, comunicável, passível de ser efectivamente discutido. E ainda bem!
Pode argumentar-se que o mais importante de cada um para os outros é a maneira como age relativamente a eles. A sua vida moral, digamos assim. E parece-me que o progresso nas relações entre pessoas tem resultado mais de uma discussão racional do que de alguma evolução dos sentimentos. Como o nota Steven Pinker (video aqui, texto aqui) e ao contrário do que postula o senso comum nas catastrofistas conversas que nos enchem o quotidiano, há uma clara e constante diminuição da violência ao longo da história da humanidade. É claro, não é impossível que tenha havido uma evolução da maneira como sentimos os outros, com causas específicas que não estamos ainda em condições de compreender, e que essa evolução tenha tido influência benéfica na nossa relação com eles. Não é impossível, mas não me parece muito plausível. Parece-me muito mais provável que qualquer alteração no nosso sentir (a existir) seja mais um produto das mudanças (racionalmente motivadas, entenda-se) da nossa organização social do que a sua causa. Além disso, creio que é possível demonstrar, contra todos os milenarismos que vêm na acumulação de conhecimentos e na evolução técnica que ela permite a desgraça da humanidade, que o progresso técnico tem contribuído tanto como o progresso moral para melhorar a vida das pessoas. Se há menos gente a sofrer agora do que há 500 anos, é porque a servidão e a escravatura foram abolidas, a justiça social e a igualdade foram aumentando, a violência é cada vez mais encarada como algo a banir, mas também porque melhorou a higiene e evoluíram a medicina, as técnicas de produção, etc.
Aonde quero eu chegar com este delírio? A uma conclusão simples: o Homo sapiens continua provavelmente a sentir pouco mais ou menos como sentia há 100 000 anos atrás, mas evoluíram muito o seu conhecimento e as suas instituições – o que é transmissível, comunicável, passível de ser efectivamente discutido. E ainda bem!
Seja bem-vindo o que vier por bem
Fala-se muitas vezes de “puristas da língua”, mas purista é um conceito que, aplicado às línguas, não faz grande sentido, simplesmente porque não há estados puros nem variantes puras de uma língua.
O estado presente de uma língua nunca é senão uma ponte entre o que ela era e o que ela há-de ser. Pode até acontecer que uma língua se afaste do que era o suficiente para começar a ser considerada, a determinada altura, uma outra língua; mas não se pode, excepto no caso das línguas inventadas, datar o nascimento de uma língua. Em última análise, se existem línguas neolatinas, por exemplo, é apenas porque o latim se foi transformando de maneiras diversas em diversas zonas, à margem da norma latina, naturalmente. O que significa apenas que, se toda a gente tivesse apenas continuado a falar “bem” latim... não havia português.
Não sei se importa aos puristas que as palavras puras das línguas neolatinas venham muitas vezes de palavras latinas que os puristas do latim da época não teriam dúvidas em considerar espúrias. E o mesmo a gramática. O que deve ter chocado os puristas do latim terem-se perdido as marcas de caso dos nomes, terem entrado os auxiliares nas formas verbais, tudo isso... «Estão a dar cabo da nossa língua!», devem eles ter gritado (exactamente como o fazem agora os puristas, de cada vez que se espalha no idioma uma palavra inglesa ou que se começa a generalizar uma estrutura que eles considerem errada…)! Mas enganaram‑se. O latim estava apenas a transformar-se e a transformar‑se em novos idiomas que são, apesar de tudo, suficientemente puros para que haja puristas a defendê‑los!...
É tudo uma questão de memória. Hoje, ninguém ou praticamente ninguém se revolta contra o uso, em português, de palavras como constatar, que foi já criticado por detestável galicismo. Ou como, sei lá, lanche, por exemplo, que encontramos nas obras de Eça de Queirós ainda escrito lunch, como aliás lunchar (aliás, pelo número de palavras estrangeiras que usa, ficamos a saber que Eça de Queirós não era nenhum purista)… E centenas de outras palavras e estruturas. Vejam o caso do infinitivo pessoal. É verdade que a discussão sobre a origem do infinitivo flexionado está longe de ter terminado, mas, venha ele de onde vier, é sempre um qualquer tipo de inconcebível “abastardamento” que está na origem daquilo que muita gente não hesita em considerar uma das maiores originalidades da língua portuguesa…
As pessoas também se hão‑de esquecer de que foram um dia estrangeirismos os estrangeirismos que hoje alguns criticam, que foram já consideradas construções erradas as construções “erradas” que vingarem… E os puristas dessa época defenderão uma língua “pura” diferente da que defendem os puristas de hoje, que é também diferente da língua “pura” que defendiam os puristas de antigamente…
Por que não chamar antes pelo seu verdadeiro nome, e um nome com mais sentido, a atitude de quem não gosta que a língua mude? Em política, chama-se conservador a alguém que quer conservar o estado de coisas actual. O melhor é, simplesmente, deitar fora a ideia de purismo e aplicar também à língua o conceito de conservadorismo: em vez de purista da língua digamos linguisticamente conservador.
Eu cá, que não o sou (com a idade, até conversador já deixei de ser…), estou aberto a inovações. Não só às inevitáveis (porque a língua tem uma vida própria que não conseguimos regular, por mais que tentemos), mas também a todas as voluntariamente introduzidas – que seja muito bem-vindo o que vier por bem! Usem a palavra inglesa input, aportuguesem-no ou não em inpute, ou usem antes o neologismo insumo, que mesmo os puristas, perdão, os conservadores hão-de considerar bem formado*, o facto é que alguma dessas palavras começa a fazer muita falta em português, em certos contextos. O mesmo com a estrutura germânica em que se junta a preposição ao verbo em vez de se a juntar ao sintagma que ela introduz, que dá, de vez em quando, um jeitão, quando é de encurtar, e aumentar a legibilidade de, certas frases que se trata (Brincalhão!). Por exemplo…
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* Estou em crer que o neologismo insumo foi criado em castelhano e só posteriormente importado para o português, primeiro no Brasil, mas não tenho a certeza…
O estado presente de uma língua nunca é senão uma ponte entre o que ela era e o que ela há-de ser. Pode até acontecer que uma língua se afaste do que era o suficiente para começar a ser considerada, a determinada altura, uma outra língua; mas não se pode, excepto no caso das línguas inventadas, datar o nascimento de uma língua. Em última análise, se existem línguas neolatinas, por exemplo, é apenas porque o latim se foi transformando de maneiras diversas em diversas zonas, à margem da norma latina, naturalmente. O que significa apenas que, se toda a gente tivesse apenas continuado a falar “bem” latim... não havia português.
Não sei se importa aos puristas que as palavras puras das línguas neolatinas venham muitas vezes de palavras latinas que os puristas do latim da época não teriam dúvidas em considerar espúrias. E o mesmo a gramática. O que deve ter chocado os puristas do latim terem-se perdido as marcas de caso dos nomes, terem entrado os auxiliares nas formas verbais, tudo isso... «Estão a dar cabo da nossa língua!», devem eles ter gritado (exactamente como o fazem agora os puristas, de cada vez que se espalha no idioma uma palavra inglesa ou que se começa a generalizar uma estrutura que eles considerem errada…)! Mas enganaram‑se. O latim estava apenas a transformar-se e a transformar‑se em novos idiomas que são, apesar de tudo, suficientemente puros para que haja puristas a defendê‑los!...
É tudo uma questão de memória. Hoje, ninguém ou praticamente ninguém se revolta contra o uso, em português, de palavras como constatar, que foi já criticado por detestável galicismo. Ou como, sei lá, lanche, por exemplo, que encontramos nas obras de Eça de Queirós ainda escrito lunch, como aliás lunchar (aliás, pelo número de palavras estrangeiras que usa, ficamos a saber que Eça de Queirós não era nenhum purista)… E centenas de outras palavras e estruturas. Vejam o caso do infinitivo pessoal. É verdade que a discussão sobre a origem do infinitivo flexionado está longe de ter terminado, mas, venha ele de onde vier, é sempre um qualquer tipo de inconcebível “abastardamento” que está na origem daquilo que muita gente não hesita em considerar uma das maiores originalidades da língua portuguesa…
As pessoas também se hão‑de esquecer de que foram um dia estrangeirismos os estrangeirismos que hoje alguns criticam, que foram já consideradas construções erradas as construções “erradas” que vingarem… E os puristas dessa época defenderão uma língua “pura” diferente da que defendem os puristas de hoje, que é também diferente da língua “pura” que defendiam os puristas de antigamente…
Por que não chamar antes pelo seu verdadeiro nome, e um nome com mais sentido, a atitude de quem não gosta que a língua mude? Em política, chama-se conservador a alguém que quer conservar o estado de coisas actual. O melhor é, simplesmente, deitar fora a ideia de purismo e aplicar também à língua o conceito de conservadorismo: em vez de purista da língua digamos linguisticamente conservador.
Eu cá, que não o sou (com a idade, até conversador já deixei de ser…), estou aberto a inovações. Não só às inevitáveis (porque a língua tem uma vida própria que não conseguimos regular, por mais que tentemos), mas também a todas as voluntariamente introduzidas – que seja muito bem-vindo o que vier por bem! Usem a palavra inglesa input, aportuguesem-no ou não em inpute, ou usem antes o neologismo insumo, que mesmo os puristas, perdão, os conservadores hão-de considerar bem formado*, o facto é que alguma dessas palavras começa a fazer muita falta em português, em certos contextos. O mesmo com a estrutura germânica em que se junta a preposição ao verbo em vez de se a juntar ao sintagma que ela introduz, que dá, de vez em quando, um jeitão, quando é de encurtar, e aumentar a legibilidade de, certas frases que se trata (Brincalhão!). Por exemplo…
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* Estou em crer que o neologismo insumo foi criado em castelhano e só posteriormente importado para o português, primeiro no Brasil, mas não tenho a certeza…
23/10/08
As palavras são como as cerejas: Macequece, Twain e Rhodes
No outro dia, na estrada da vila de Manica para Penhalonga, vimos uma tabuleta nova, a indicar a «Fortaleza de Macequece, património histórico», e decidimos ir lá fazer uma visita.
Macequece é, provavelmente, o lugar mais importante da região, porque foi lá que durante vários séculos se localizou a célebre feira onde se trocava sobretudo ouro pelos produtos vindos de além-Índico. O controlo da feira sempre foi considerado prioritário na estratégia político-militar da região e disputaram-no, ora com diplomacia ora com mosquetes e azagaias, vários reinos com interesses nesta parte de África, desde os reinos shonas ligados ao Muenemutapa ou dele derivados até ao reino* de Portugal. Macequece é, pois, um nome com ressonâncias míticas.
Como podem imaginar, o património histórico moçambicano não está especialmente bem preservado [E quem muito colonialistamente pensar logo que, «pois, “eles” deram cabo de tudo», que se desengane, que a preservação do património histórico foi também nula no tempo colonial, sim?]. O facto é que há muitos factores a concorrer para a pouca preservação desse património. A falta de dinheiro, o não ser considerado prioridade, com certeza (e é relativamente compreensível), mas também, muito simplesmente, o facto de ele ser objectivamente mais difícil de preservar aqui do que noutros sítios, por causa do clima ou devido às próprias características dos edifícios antigos. As cortes dos reis, as aringas fortificadas, as casas dos prazos, tudo isso era feito de “materiais precários”, como se chama agora aqui ao pau-a-pique com cobertura vegetal. Tudo altamente perecível e, por isso, perecido. Mas mesmo algumas coisas mais sólidas, como a fortaleza de São Caetano de Sofala, foram completamente destruídas por uma erosão imparável (há quem diga que se usaram, nos fins do séc. XIX, pedras das muralhas da fortaleza para construções ali nas proximidades, na Beira e até em Maputo, mas não sei até que ponto é que isso é lenda…). Resumindo: o facto é que pouco resta, ou nada, do que houve antes do cimento colonial.
Desculpem a excursão. Dizia eu que o património histórico moçambicano não está especialmente bem conservado, de maneira que, quando vi a placa, não fiquei à espera de encontrar nenhum local histórico no sentido em que nós o entendemos no mundo rico, com turistas, guias e souvenirs. Por outro lado, fiquei muito contente por constatar que, apesar de tudo, já começa a haver sinais na estrada a indicar monumentos. As pinturas rupestres de Chinhamapere, por exemplo, já têm também uma tabuleta a indicá-las a quem passa na estrada de Manica para a fronteira de Machipanda.
O caminho para a fortaleza de Macequece é caminho para 4×4, especialmente quando vierem as chuvas. O forte não impressiona por aí além. É um quadrado de muros de pedra rudimentares de cerca de metro e meio de altura, com uma dezena de pequenas espingardeiras. Tem uma casinha, a um dos cantos, e, no meio, uma haste de bandeira e uma placa colonial, a louvar os soldados que ali combateram em Maio de 1891. Contra quem, não diz. E eu não fazia ideia de que batalha pudesse ser aquela. Devia ser, pensei eu, uma batalha pelo domínio efectivo do território, que a conferência de Berlim (leia-se, a Grã-Bretanha) tinha exigido às potências coloniais. Contra algum grande senhor feudal indo-afro-português que recusasse a administração portuguesa, ou contra os soldados de Ngungunhane... Quando cheguei a casa fui buscar a minha História de Moçambique, para ver de que se tratava [Newitt, Malyn, A history of Mozambique. London: Hurst, 1997. Todas as citações de Malyn Newitt que se seguem são desta obra]. Afinal, a batalha tinha sido entre o exército português e o exército da British South Africa Company, que é como quem diz, do Sr. Cecil Rhodes.
Macequece é, provavelmente, o lugar mais importante da região, porque foi lá que durante vários séculos se localizou a célebre feira onde se trocava sobretudo ouro pelos produtos vindos de além-Índico. O controlo da feira sempre foi considerado prioritário na estratégia político-militar da região e disputaram-no, ora com diplomacia ora com mosquetes e azagaias, vários reinos com interesses nesta parte de África, desde os reinos shonas ligados ao Muenemutapa ou dele derivados até ao reino* de Portugal. Macequece é, pois, um nome com ressonâncias míticas.
Como podem imaginar, o património histórico moçambicano não está especialmente bem preservado [E quem muito colonialistamente pensar logo que, «pois, “eles” deram cabo de tudo», que se desengane, que a preservação do património histórico foi também nula no tempo colonial, sim?]. O facto é que há muitos factores a concorrer para a pouca preservação desse património. A falta de dinheiro, o não ser considerado prioridade, com certeza (e é relativamente compreensível), mas também, muito simplesmente, o facto de ele ser objectivamente mais difícil de preservar aqui do que noutros sítios, por causa do clima ou devido às próprias características dos edifícios antigos. As cortes dos reis, as aringas fortificadas, as casas dos prazos, tudo isso era feito de “materiais precários”, como se chama agora aqui ao pau-a-pique com cobertura vegetal. Tudo altamente perecível e, por isso, perecido. Mas mesmo algumas coisas mais sólidas, como a fortaleza de São Caetano de Sofala, foram completamente destruídas por uma erosão imparável (há quem diga que se usaram, nos fins do séc. XIX, pedras das muralhas da fortaleza para construções ali nas proximidades, na Beira e até em Maputo, mas não sei até que ponto é que isso é lenda…). Resumindo: o facto é que pouco resta, ou nada, do que houve antes do cimento colonial.
Desculpem a excursão. Dizia eu que o património histórico moçambicano não está especialmente bem conservado, de maneira que, quando vi a placa, não fiquei à espera de encontrar nenhum local histórico no sentido em que nós o entendemos no mundo rico, com turistas, guias e souvenirs. Por outro lado, fiquei muito contente por constatar que, apesar de tudo, já começa a haver sinais na estrada a indicar monumentos. As pinturas rupestres de Chinhamapere, por exemplo, já têm também uma tabuleta a indicá-las a quem passa na estrada de Manica para a fronteira de Machipanda.
O caminho para a fortaleza de Macequece é caminho para 4×4, especialmente quando vierem as chuvas. O forte não impressiona por aí além. É um quadrado de muros de pedra rudimentares de cerca de metro e meio de altura, com uma dezena de pequenas espingardeiras. Tem uma casinha, a um dos cantos, e, no meio, uma haste de bandeira e uma placa colonial, a louvar os soldados que ali combateram em Maio de 1891. Contra quem, não diz. E eu não fazia ideia de que batalha pudesse ser aquela. Devia ser, pensei eu, uma batalha pelo domínio efectivo do território, que a conferência de Berlim (leia-se, a Grã-Bretanha) tinha exigido às potências coloniais. Contra algum grande senhor feudal indo-afro-português que recusasse a administração portuguesa, ou contra os soldados de Ngungunhane... Quando cheguei a casa fui buscar a minha História de Moçambique, para ver de que se tratava [Newitt, Malyn, A history of Mozambique. London: Hurst, 1997. Todas as citações de Malyn Newitt que se seguem são desta obra]. Afinal, a batalha tinha sido entre o exército português e o exército da British South Africa Company, que é como quem diz, do Sr. Cecil Rhodes.
Ao ultimato da Grã-Bretanha a Portugal em Janeiro de 1890, seguiu-se um período de negociações. “Durante o que era, para todos os efeitos, uma suspensão da lei internacional”, para o dizer como diz Newitt, parece que a lei estava mais suspensa para uns do que para outros. “Embora Salisbúria exigisse que os Portugueses se abstivessem de qualquer actividade nas zonas sujeitas a negociação, ninguém impediu Rhodes e os seus agentes de avançarem com as suas actividades”.
A história é demasiado longa para a contar em pormenor aqui no blogue, mas eis um resumo: A 15 de Novembro, as tropas de Rhodes aprisionam os dois senhores afro-portugueses donos da primeira Companhia de Moçambique e com interesses na mesma Mashonaland que Rhodes queria controlar, e ocupam Macequece. “A intenção de Rhodes era garantir para a British South Africa Company todo o território que pudesse e, se possível, criar um corredor até ao mar. Em África, pensava ele, a posse era nove décimos da lei.” No dia anterior, Portugal e a Inglaterra tinham assinado um modus vivendi, válido por 6 meses até à assinatura do tratado final reconhecendo a validade da divisão de territórios acordada 3 meses antes, em que se definia nomeadamente que o território agora ocupado por Rhodes estava sob administração portuguesa. Rhodes não só recusa abandonar o território ocupado, mas faz avançar as suas tropas até ao Púnguè – em direcção ao mar! Entre 14 de Novembro de 1980 e 28 de Maio do ano seguinte, altura em que foi assinado o tratado que dava a Moçambique a sua forma actual, houve vários conflitos entre as tropas de Rhodes e os portugueses. A batalha de Macequece evocada pela placa na fortaleza é o mais importante desses conflitos. Os portugueses foram derrotados e obrigados a fugir e, quando parecia eminente uma nova batalha, a 29 de Maio, as tropas da British South Africa Company receberam ordens de retirada: era preciso respeitar o tratado assinado na véspera. Diz Malyn Newitt: “A satisfação última para Portugal deve ter sido a raiva de Cecil Rhodes perante o acordo que efectivamente o deixou desamparado na sua pirataria territorial”.
No seu relato de viagens Following the Equator, escrito em 1895 e publicado em 1987, Mark Twain passa os capítulos referentes à sua visita à África Austral em campanha aberta contra Rhodes. Eis a passagem final dessa diatribe, numa tradução que, infelizmente, não está à altura do apuramento retórico do original:
Sei muito bem que, seja o Sr. Rhodes o patriota e homem de estado nobre e digno de adoração que as multidões crêem que ele é, ou Satanás reencarnado, como o resto do mundo o considera, continua a ser a figura mais imponente do império britânico fora de Inglaterra. De cada vez que se põe de pé no Cabo da Boa Esperança, a sua sombra chega ao Zambeze. É o único colono dos domínios britânicos cujos afazeres são objectos de crónica e de discussão em todos os meridianos do globo, e cujos discursos, em versão integral, são telegrafados dos confins da Terra; e é o único forasteiro sem sangue real cuja chegada a Londres pode competir, na atenção que recebe, com um eclipse.Que seja um homem extraordinário, e não um acidente da fortuna, nem os seus mais encarniçados inimigos da África do Sul estavam dispostos a negar, pelo que os ouvi testemunharem. Toda a África do Sul parecia tremer de medo dele – tanto amigos como inimigos. É como se fosse o delegado de Deus, por um lado, e o delegado de Satã, pelo outro, dono das pessoas, capaz de as fazer [ricas?] ou de as arruinar com um sopro apenas, venerado por muitos, odiado por muitos, mas nunca maldito por ninguém, entre os prudentes, e, mesmo pelos indiscretos, em retraídos murmúrios apenas.Qual é o segredo da sua formidável supremacia? Diz um que é a sua prodigiosa riqueza – uma riqueza que, gotejando sob a forma de salários e outras receitas, sustenta multidões, e as compele a interessada e leal vassalagem; diz outro que é o seu magnetismo pessoal e a sua persuasiva argumentação, que hipnotizam e escravizam todos os que se movimentam nos círculos da sua influência; diz outro que são as suas majestosas ideias, os seus vastos esquemas para o engrandecimento territorial de Inglaterra, a sua ambição patriótica e abnegada de alargar a beneficente protecção britânica e o seu justo domínio aos sertões pagãos de África e iluminar a escuridão africana com a glória do nome da Grã-Bretanha; e diz outro que ele quer a terra e a quer só para ele, e que a crença de que a há-de ter e há-de acolher os amigos no rés-do-chão é que constitui o segredo que chama a ele tantos olhares e o conserva no zénite onde nada lhe obstrui o panorama.Pode escolher-se a versão que se queira. São todas ao mesmo preço. Uma coisa é certa: mantém a proeminência e um vasto culto, faça lá o que fizer. Engana o Duque de Fife – é o que o Duque diz – mas isso não destrói a lealdade que o Duque tem por ele. Engana os reformistas numa confusão imensa com o seu Raid, mas a maior parte deles julga que ele fez por bem. Choraminga pelos desgraçados dos joanesburgueses, tão sobrecarregados de impostos, e faz deles seus amigos; ao mesmo tempo, cobra aos colonos da sua Companhia 50 por cento, e ganha deles assim tanto afecto e tanta confiança que se sentem abalados pelo desespero de cada vez que se ouve dizer que vai fechar a Companhia. Ataca e rouba e mata e escraviza os matabeles e recebe por isso enormes ovações dos cristãos da Companhia. Endrominou a Inglaterra para que comprasse papéis velhos da Companhia com notas do Banco de Inglaterra, tonelada a tonelada, e os burlados ainda queimam incenso em sua honra como se do Deus Supremo da Fartura se tratasse. Fez tudo o que conseguiu idear para ser atirado por terra; faz mais do que o necessário para provocar a derrocada de dezasseis grandes homens de tipo normal; e, no entanto, continua de pé até hoje, na vertigem do seu pináculo sob a cúpula celeste, permanentemente, ao que parece, a maravilha do nosso tempo, o mistério da nossa era, arcanjo com asas para meio mundo, satanás de cauda para o outro meio.Admiro-o, confesso francamente; e quando chegar a sua hora, hei-de comprar um bocado da corda, só para guardar como recordação.
Para quem acredite no poder mágico dos nomes, a triste sina do Zimbábuè está traçada desde o momento em que deram ao território o nome de Rhodesia, que é (fica claro que eu não sou dos que consideram Rhodes um anjo) como chamar-lhe Escroquelândia, uma coisa assim… Ou, como diz Mark Twain, “Rhodesia é um nome adequado para aquela terra de pirataria e pilhagem”.
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* Uma curiosidade a propósito da palavra reino: em suaíli (e talvez também noutras línguas africanas, não sei), português diz-se reno. É impossível deduzir desse facto que “o reino” fosse a expressão mais utilizada pelos portugueses para referir a sua terra, mas era, com certeza, uma das mais usadas. À batata comum chama-se aqui batata reno, talvez para a distinguir da batata-doce, que é provavelmente mais utilizada. Ambos os produtos, no entanto, são americanos e é plausível que tenham sido trazidos para aqui ao mesmo tempo, provavelmente pelos portugueses.
22/10/08
De almas e penas
Quanto mais reflicto sobre a ideia de livre-arbítrio, mais ela me parece complicada. Se partirmos do princípio, como eu parto, que aquilo que concebemos como actividade mental não é senão o resultado de processos físico-químicos, temos de aceitar que qualquer estado dessa actividade mental tem forçosamente de ser determinado por esses processos. Se não acreditarmos, como eu não acredito, nalgum tipo de eu metafísico “essencial” que escape às leis da matéria – uma alma, um espírito, pouco importa que nome se lhe dê – não se vê bem o que possa estar de fora desses processos mentais determinados a decidir o que vamos pensar ou fazer a cada momento. O facto, porém, é que, com perfeita consciência de o estarmos a fazer, ponderamos escolhas, pesamos prós e contras, decidimos. Ou temos, pelo menos, a ilusão de o fazer…
Por outro lado, quanto mais reflicto sobre a relação entre livre-arbítrio e moral, mais me parece estranho o postulado (pelos vistos bastante na moda pelo menos entre advogados nos EUA) segundo o qual uma pessoa, como não tem de facto livre-arbítrio, não pode ser condenada pelos seus crimes. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ou antes, de uma coisa não se pode inferir a outra. Creio que a base em que assenta esta (a meu ver…) confusão é a concepção do sistema penal como retaliação, de que eu discordo completamente. A meu ver, a lei prevê castigos para quem a não cumpra por duas razões essenciais, uma de ordem preventiva – o castigo tem uma enorme capacidade dissuasora – e outra de ordem, digamos, ontológica – não pode haver lei se não houver castigo para o seu incumprimento.
A primeira razão (sobre a qual já aqui escrevi uma vez, embora num con-texto muito diferente deste) continua a fazer sentido mesmo que não se acredite na possibilidade de livre-arbítrio, uma vez que a consciência do “perigo” que se corre ao quebrar a lei entra muito pavlovianamente na computação inconsciente e involuntária das acções de qualquer um. Quanto à segunda razão, ela é independente de se acreditar ou não no livre-arbítrio. Como diz a minha amiga Clara, em Portugal não há escolaridade obrigatória porque não há, na prática, punição para quem não manda os filhos à escola. “Isto é proibido, mas não te acontece nada, se o fizeres” é uma pretensa proibição. De facto, não é proibição nenhuma. Por isso, se achamos que se deve proibir, por hipótese, matar seres humanos, pouco importa se acreditamos ou não que quem o faz decide livremente o seu crime ou é compelido pela sua incontrolável mente a ser um assassino. O que a lei tem de punir, para poder existir, não é esse aglomerado de processos físico-químicos que uma pessoa é, mas as suas acções, independentemente de elas terem sido decididas por uma alma à imagem e semelhança de deus ou geradas por uma actividade biológica ingovernável. Só que, por impossibilidade de uma acção punitiva mais incisiva e mais justa, é a pessoa que tem de ser punida. Não há alternativa.
A questão é, obviamente, muito mais complexa do que este textinho parece que quer fazer crer. Este textinho não faz senão defender, de forma rudimentar, a ideia simples de que não se pune para retaliar, mas sim para tentar evitar a ocorrência do crime, e que sem punição não há lei. É óbvio que, mesmo que aceitemos estas premissas, ficam em aberto questões tão complexas como a quantidade e o tipo de castigo aplicável, as circunstâncias que devem ser consideradas atenuantes nas diferentes infracções, e os diferentes graus de responsabilidade num delito. Segundo uma personagem de um filme que eu vi ontem, um soldado tem de ter mais medo do seu comandante que do exército inimigo – para lhe obedecer em tudo e cegamente…; se não, de cada vez que dispara sobre um inimigo está a cometer um homicídio…
Por outro lado, quanto mais reflicto sobre a relação entre livre-arbítrio e moral, mais me parece estranho o postulado (pelos vistos bastante na moda pelo menos entre advogados nos EUA) segundo o qual uma pessoa, como não tem de facto livre-arbítrio, não pode ser condenada pelos seus crimes. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ou antes, de uma coisa não se pode inferir a outra. Creio que a base em que assenta esta (a meu ver…) confusão é a concepção do sistema penal como retaliação, de que eu discordo completamente. A meu ver, a lei prevê castigos para quem a não cumpra por duas razões essenciais, uma de ordem preventiva – o castigo tem uma enorme capacidade dissuasora – e outra de ordem, digamos, ontológica – não pode haver lei se não houver castigo para o seu incumprimento.
A primeira razão (sobre a qual já aqui escrevi uma vez, embora num con-texto muito diferente deste) continua a fazer sentido mesmo que não se acredite na possibilidade de livre-arbítrio, uma vez que a consciência do “perigo” que se corre ao quebrar a lei entra muito pavlovianamente na computação inconsciente e involuntária das acções de qualquer um. Quanto à segunda razão, ela é independente de se acreditar ou não no livre-arbítrio. Como diz a minha amiga Clara, em Portugal não há escolaridade obrigatória porque não há, na prática, punição para quem não manda os filhos à escola. “Isto é proibido, mas não te acontece nada, se o fizeres” é uma pretensa proibição. De facto, não é proibição nenhuma. Por isso, se achamos que se deve proibir, por hipótese, matar seres humanos, pouco importa se acreditamos ou não que quem o faz decide livremente o seu crime ou é compelido pela sua incontrolável mente a ser um assassino. O que a lei tem de punir, para poder existir, não é esse aglomerado de processos físico-químicos que uma pessoa é, mas as suas acções, independentemente de elas terem sido decididas por uma alma à imagem e semelhança de deus ou geradas por uma actividade biológica ingovernável. Só que, por impossibilidade de uma acção punitiva mais incisiva e mais justa, é a pessoa que tem de ser punida. Não há alternativa.
A questão é, obviamente, muito mais complexa do que este textinho parece que quer fazer crer. Este textinho não faz senão defender, de forma rudimentar, a ideia simples de que não se pune para retaliar, mas sim para tentar evitar a ocorrência do crime, e que sem punição não há lei. É óbvio que, mesmo que aceitemos estas premissas, ficam em aberto questões tão complexas como a quantidade e o tipo de castigo aplicável, as circunstâncias que devem ser consideradas atenuantes nas diferentes infracções, e os diferentes graus de responsabilidade num delito. Segundo uma personagem de um filme que eu vi ontem, um soldado tem de ter mais medo do seu comandante que do exército inimigo – para lhe obedecer em tudo e cegamente…; se não, de cada vez que dispara sobre um inimigo está a cometer um homicídio…
21/10/08
Coisas da minha avó
A minha saudosa avó materna tinha umas quantas expressões curiosas.
Pial de pote, por exemplo. A expressão “correcta” para designar o lugar onde, nas casas antigas, se colocava a bilha da água fresca é poial de pote (poial é da família de pódio e significa “lugar onde se põe algo” ou “banco de pedra”), mas a minha avó chamava-lhe pial de pote. Chamem-lhe erro, se quiserem, mas não é um “erro” disparatado, porque pode facilmente imaginar-se que pial se relacione com pé (seria peal, nesse caso, e outra maneira, enfim, de dizer pedestal); ou então que derive de pia – a final de contas, é de um suporte de um recipiente de água que se trata…
Além de usar a expressão para referir o pequeno suporte de cimento e mármore que tínhamos na cozinha, a minha avó usava também pial de pote na fase Está aqui debaixo do pial de pote a enfeitar a cantareira!, que respondia a perguntas sobre o paradeiro de algum objecto e que significava, no falar lisboeta dela, “Eu sei lá onde é que essa porcaria está!”. A frase também tem duas coisas que se lhe digam: A primeira é que ou é uma redundância (se o pote da água e o cântaro forem uma e a mesma coisa, e, por conseguinte, o poial de pote e a cantareira apenas dois nomes de um mesmo espaço), ou então havia, nas casas mais antigas do que aquelas que eu conheci, por baixo do poial de pote, uma cantareira. A outra é que, tendo em conta sobretudo o tom com que ela o dizia, a frase tem com certeza conotações malandrecas, que deixo as minhas leitoras e os meus leitores adivinharem quais são. [Isto confirma que, como dizia não me lembro quem, não há menos figuras de retórica na linguagem das vendedeiras do mercado do Forno do Tijolo (a minha avó era de Sapadores) que na de qualquer obra muito literária... Mas isso é outra conversa…]
Outra expressão da minha avó de que eu gosto muito é Não penhas dúvidas! Mas isso existe, perguntarão vocês. Se existe? Pois se vos digo que é uma expressão que a minha avó usava! Não é uma frase muito canónica, é verdade, mas é muito mais expressiva e mais rica do que as duas frases com que concorre mais directamente, porque as funde numa só: não ter dúvidas e não pôr dúvidas são coisas diferentes e pode pedir-se a alguém que nos acredite sem duvidar ou que cale as dúvidas que possa ter. Mas é mais eficaz juntar-se Não tenhas dúvidas! e Não ponhas dúvidas! numa frase só: “Aconselho-te a não duvidares, mas, se o fizeres, guarda isso lá para ti, sim?”
Outra coisa que a minha avó fazia era tentar dar sentido ao que para ela não fizesse sentido, de maneira que as palavras estrangeiras eram sistematicamente aportuguesadas, da forma mais lógica possível. Quando apareceu o Seven up, por exemplo, ela começou logo a tratar por Sabe a nada o novo tipo de pirolito. Então mas se aquilo de facto não tinha grande sabor…
Finalmente, gosto muito da expressão Ó filho, tu ainda és de bom tempo! Ao contrário das anteriores, esta expressão não a ouvi só à minha avó, e conheço-lhe até uma variante mais divulgada, ainda és do bom tempo. É, claramente, uma referência a uma mítica Idade de Ouro em que não havia maldade nas pessoas, em que os seres humanos eram ingénuos e puros como os anjos, os meninos, os patos, os ursos ou os camelos, que são alguma das metáforas mais comuns hoje em dia para quem se deixe endrominar com facilidade…
Mas que sou de bom tempo, sou, não penham dúvidas! Ainda sou do tempo dos piais de pote e das cantareiras, muito antes de aparecer o sabe a nada…
Pial de pote, por exemplo. A expressão “correcta” para designar o lugar onde, nas casas antigas, se colocava a bilha da água fresca é poial de pote (poial é da família de pódio e significa “lugar onde se põe algo” ou “banco de pedra”), mas a minha avó chamava-lhe pial de pote. Chamem-lhe erro, se quiserem, mas não é um “erro” disparatado, porque pode facilmente imaginar-se que pial se relacione com pé (seria peal, nesse caso, e outra maneira, enfim, de dizer pedestal); ou então que derive de pia – a final de contas, é de um suporte de um recipiente de água que se trata…
Além de usar a expressão para referir o pequeno suporte de cimento e mármore que tínhamos na cozinha, a minha avó usava também pial de pote na fase Está aqui debaixo do pial de pote a enfeitar a cantareira!, que respondia a perguntas sobre o paradeiro de algum objecto e que significava, no falar lisboeta dela, “Eu sei lá onde é que essa porcaria está!”. A frase também tem duas coisas que se lhe digam: A primeira é que ou é uma redundância (se o pote da água e o cântaro forem uma e a mesma coisa, e, por conseguinte, o poial de pote e a cantareira apenas dois nomes de um mesmo espaço), ou então havia, nas casas mais antigas do que aquelas que eu conheci, por baixo do poial de pote, uma cantareira. A outra é que, tendo em conta sobretudo o tom com que ela o dizia, a frase tem com certeza conotações malandrecas, que deixo as minhas leitoras e os meus leitores adivinharem quais são. [Isto confirma que, como dizia não me lembro quem, não há menos figuras de retórica na linguagem das vendedeiras do mercado do Forno do Tijolo (a minha avó era de Sapadores) que na de qualquer obra muito literária... Mas isso é outra conversa…]
Outra expressão da minha avó de que eu gosto muito é Não penhas dúvidas! Mas isso existe, perguntarão vocês. Se existe? Pois se vos digo que é uma expressão que a minha avó usava! Não é uma frase muito canónica, é verdade, mas é muito mais expressiva e mais rica do que as duas frases com que concorre mais directamente, porque as funde numa só: não ter dúvidas e não pôr dúvidas são coisas diferentes e pode pedir-se a alguém que nos acredite sem duvidar ou que cale as dúvidas que possa ter. Mas é mais eficaz juntar-se Não tenhas dúvidas! e Não ponhas dúvidas! numa frase só: “Aconselho-te a não duvidares, mas, se o fizeres, guarda isso lá para ti, sim?”
Outra coisa que a minha avó fazia era tentar dar sentido ao que para ela não fizesse sentido, de maneira que as palavras estrangeiras eram sistematicamente aportuguesadas, da forma mais lógica possível. Quando apareceu o Seven up, por exemplo, ela começou logo a tratar por Sabe a nada o novo tipo de pirolito. Então mas se aquilo de facto não tinha grande sabor…
Finalmente, gosto muito da expressão Ó filho, tu ainda és de bom tempo! Ao contrário das anteriores, esta expressão não a ouvi só à minha avó, e conheço-lhe até uma variante mais divulgada, ainda és do bom tempo. É, claramente, uma referência a uma mítica Idade de Ouro em que não havia maldade nas pessoas, em que os seres humanos eram ingénuos e puros como os anjos, os meninos, os patos, os ursos ou os camelos, que são alguma das metáforas mais comuns hoje em dia para quem se deixe endrominar com facilidade…
Mas que sou de bom tempo, sou, não penham dúvidas! Ainda sou do tempo dos piais de pote e das cantareiras, muito antes de aparecer o sabe a nada…
Estamos então de acordo: discordamos um do outro
I
Diz-se muitas vezes que determinados conceitos como, por exemplo bom ou mau (ou homem ou casa, mas eu não quero agora ir por aí…) significam coisas diferentes de cultura para cultura. Há quem postule que isso implica uma impossibilidade de diálogo efectivo entre seres humanos com conceitos diferentes – do que é “bom” ou “mau”, por exemplo. Mas penso que se trata de uma formulação errada da questão.
Tanto contra quem afirme que o significado de, por exemplo, condenável é relativo a cada cultura como contra quem afirme, pelo contrário, que é possível estabelecer definições universais do que é condenável, pode argumentar‑se que condenável tem um único significado – é um termo de desaprovação – para toda a gente no mundo (e por isso há, para todas elas, actos condenáveis) mas a relação entre o conceito e os actos individuais e concretos a que a noção se pode aplicar (a que actos se pode aplicar a noção, a que actos não se pode aplicar, em que actos há instabilidade na sua aplicação) pode variar, ou não, de cultura para cultura – mas também de indivíduo para indivíduo ou de grupo de indivíduos para grupo de indivíduos no seio de uma determinada cultura, ao sabor de circunstâncias materiais (a classe económica, por exemplo) ou impulsos outros (afectivos em sentido lato) que não apenas os padrões de comportamento “regulares” dessa cultura.
A questão do significado de condenável e do seu pretenso relativismo (com tantas e tão importantes implicações morais) não é em nada diferente da questão do significado de saboroso, por exemplo (ou qualquer outra noção, mais ou menos abstracta), que é um significado único (é saboroso para qualquer pessoa o que ela degusta com prazer) mas que se predica sobre coisas diferentes, consoante os gostos de quem usa a palavra, e que são em parte determinados pelos hábitos alimentares.
O que eu escrevi até aqui não são senão banalidades. Espero que seja menos banalidade o que vou escrever a seguir, que é aonde eu queria chegar: Com a mesma facilidade com que se vê nesse desacordo um sinal de incomunicação, pode ver-se nele um sinal de efectiva comunicação e defender-se que a melhor prova de que o significado de um determinado conceito é o mesmo para pessoas de duas culturas diferentes (ou para duas pessoas da mesma cultura) é precisamente a possibilidade de elas discordarem sobre a que fenómenos do mundo real ele se aplica.
II
Não acredito na relatividade dos conceitos, nem noutras insuperáveis barreiras que se possam postular. Evidentemente, comunicar nunca é fácil, nem com os mais próximos de nós, e nunca se faz sem ruído e sem perdas. Isso é ponto assente. Mas não há nenhuma dramática impossibilidade de comunicação entre seres humanos de culturas diferentes. E o que muitas vezes passa por incomunicação são apenas desacordos. Se tu dizes que isto é bom e eu digo que isto é mau, estamos a comunicar sem problemas – a comunicar o nosso desacordo um com o outro.
Agora, dirão vocês, mas esta conversa não é mesmo picuinhice? Na prática, qual é a diferença? É um a dizer que sim e o outro a dizer que não!... Eu digo que defender que os humanos conseguem comunicar entre eles, por muito que não de uma forma perfeita e por muito que estejam às vezes em desacordo, ou considerar antes que, quando tentamos comunicar com alguém diferente de nós, há um verdadeiro des-entendimento, uma real impossibilidade de intercompreensão são posições muito diversas – são posições que resultam de duas concepções muito diferentes do mundo e têm implicações diferentes ao nível da nossa acção quotidiana. Aqui em Moçambique, por exemplo, a segunda postura leva alguns “ocidentais” a desistir pura e simplesmente de comunicar com os “africanos”. “Eles nunca nos hão-de compreender e nós nunca havemos de os compreender a eles…”.
É claro que nem toda a gente põe a tónica na “ruptura entre modelos mentais” com intenções declaradamente discriminatórias. Há quem o faça (o relativismo cultural foi adoptado por muitos racistas), mas também há quem defenda essas teorias da incomunicabilidade e não tenha uma atitude discriminatória. O que eu digo é que a ideia em si, se não implica forçosamente estabelecer hierarquias na espécie humana, é, em última análise, sempre segregacionista. O que eu repito é que respeitar os outros, mais do que deixá-los viver sossegados a sua “incompreensível” vidinha, é considerá-los interlocutores ao mesmo nível que nós na discussão do mundo que queremos – para eles e para nós e para todos os seres humanos.
III
Quero agora ressalvar, mais para mudar o tom à conversa e lhe dar um final mais sorridente, que já participei em desentendimentos e incompreensões tão grandes que parecem de facto cisões entre maneiras incompatíveis de conceber o mundo. Quando trabalhava na Suíça, no início dos anos 80, o meu patrão, que era de Gruyère, tinha, pelos vistos, uma noção muito gruyerense de queijo (neste caso concreto, de fromage, pois que a discussão foi em francês). Para ele, fromage referia exclusivamente o produto lácteo fabricado na terra dele; os outros chamavam-se vacherin, cantal, emmental, que sei eu, mas não eram fromage… Não o consegui convencer de que, para os não-gruyerenses, a noção de fromage englobava todas essas variantes… E esqueci-me de lhe perguntar se, na maneira gruyerense de ver o mundo, käse ou formaggio se podiam referir ao vacherin… Mas enfim, isto são mais pegas no paleio. Sem grandes implicações morais…
Diz-se muitas vezes que determinados conceitos como, por exemplo bom ou mau (ou homem ou casa, mas eu não quero agora ir por aí…) significam coisas diferentes de cultura para cultura. Há quem postule que isso implica uma impossibilidade de diálogo efectivo entre seres humanos com conceitos diferentes – do que é “bom” ou “mau”, por exemplo. Mas penso que se trata de uma formulação errada da questão.
Tanto contra quem afirme que o significado de, por exemplo, condenável é relativo a cada cultura como contra quem afirme, pelo contrário, que é possível estabelecer definições universais do que é condenável, pode argumentar‑se que condenável tem um único significado – é um termo de desaprovação – para toda a gente no mundo (e por isso há, para todas elas, actos condenáveis) mas a relação entre o conceito e os actos individuais e concretos a que a noção se pode aplicar (a que actos se pode aplicar a noção, a que actos não se pode aplicar, em que actos há instabilidade na sua aplicação) pode variar, ou não, de cultura para cultura – mas também de indivíduo para indivíduo ou de grupo de indivíduos para grupo de indivíduos no seio de uma determinada cultura, ao sabor de circunstâncias materiais (a classe económica, por exemplo) ou impulsos outros (afectivos em sentido lato) que não apenas os padrões de comportamento “regulares” dessa cultura.
A questão do significado de condenável e do seu pretenso relativismo (com tantas e tão importantes implicações morais) não é em nada diferente da questão do significado de saboroso, por exemplo (ou qualquer outra noção, mais ou menos abstracta), que é um significado único (é saboroso para qualquer pessoa o que ela degusta com prazer) mas que se predica sobre coisas diferentes, consoante os gostos de quem usa a palavra, e que são em parte determinados pelos hábitos alimentares.
O que eu escrevi até aqui não são senão banalidades. Espero que seja menos banalidade o que vou escrever a seguir, que é aonde eu queria chegar: Com a mesma facilidade com que se vê nesse desacordo um sinal de incomunicação, pode ver-se nele um sinal de efectiva comunicação e defender-se que a melhor prova de que o significado de um determinado conceito é o mesmo para pessoas de duas culturas diferentes (ou para duas pessoas da mesma cultura) é precisamente a possibilidade de elas discordarem sobre a que fenómenos do mundo real ele se aplica.
II
Não acredito na relatividade dos conceitos, nem noutras insuperáveis barreiras que se possam postular. Evidentemente, comunicar nunca é fácil, nem com os mais próximos de nós, e nunca se faz sem ruído e sem perdas. Isso é ponto assente. Mas não há nenhuma dramática impossibilidade de comunicação entre seres humanos de culturas diferentes. E o que muitas vezes passa por incomunicação são apenas desacordos. Se tu dizes que isto é bom e eu digo que isto é mau, estamos a comunicar sem problemas – a comunicar o nosso desacordo um com o outro.
Agora, dirão vocês, mas esta conversa não é mesmo picuinhice? Na prática, qual é a diferença? É um a dizer que sim e o outro a dizer que não!... Eu digo que defender que os humanos conseguem comunicar entre eles, por muito que não de uma forma perfeita e por muito que estejam às vezes em desacordo, ou considerar antes que, quando tentamos comunicar com alguém diferente de nós, há um verdadeiro des-entendimento, uma real impossibilidade de intercompreensão são posições muito diversas – são posições que resultam de duas concepções muito diferentes do mundo e têm implicações diferentes ao nível da nossa acção quotidiana. Aqui em Moçambique, por exemplo, a segunda postura leva alguns “ocidentais” a desistir pura e simplesmente de comunicar com os “africanos”. “Eles nunca nos hão-de compreender e nós nunca havemos de os compreender a eles…”.
É claro que nem toda a gente põe a tónica na “ruptura entre modelos mentais” com intenções declaradamente discriminatórias. Há quem o faça (o relativismo cultural foi adoptado por muitos racistas), mas também há quem defenda essas teorias da incomunicabilidade e não tenha uma atitude discriminatória. O que eu digo é que a ideia em si, se não implica forçosamente estabelecer hierarquias na espécie humana, é, em última análise, sempre segregacionista. O que eu repito é que respeitar os outros, mais do que deixá-los viver sossegados a sua “incompreensível” vidinha, é considerá-los interlocutores ao mesmo nível que nós na discussão do mundo que queremos – para eles e para nós e para todos os seres humanos.
III
Quero agora ressalvar, mais para mudar o tom à conversa e lhe dar um final mais sorridente, que já participei em desentendimentos e incompreensões tão grandes que parecem de facto cisões entre maneiras incompatíveis de conceber o mundo. Quando trabalhava na Suíça, no início dos anos 80, o meu patrão, que era de Gruyère, tinha, pelos vistos, uma noção muito gruyerense de queijo (neste caso concreto, de fromage, pois que a discussão foi em francês). Para ele, fromage referia exclusivamente o produto lácteo fabricado na terra dele; os outros chamavam-se vacherin, cantal, emmental, que sei eu, mas não eram fromage… Não o consegui convencer de que, para os não-gruyerenses, a noção de fromage englobava todas essas variantes… E esqueci-me de lhe perguntar se, na maneira gruyerense de ver o mundo, käse ou formaggio se podiam referir ao vacherin… Mas enfim, isto são mais pegas no paleio. Sem grandes implicações morais…
Porquê escrever porque? Por que não escrever antes por que?
Uma questão ortográfica muito debatida é a da grafia dos vários porque/por que (e respectivas variantes porquê/por quê, quando possíveis). Não vou tratar extensivamente a questão (para um bom resumo da problemática e indicação das propostas ortográficas maioritárias em Portugal e no Brasil, ver um texto de Cláudia Pinto), mas apenas comentar o aspecto mais polémico da questão, o da grafia do porque/por que em frases do tipo “porque/por que fizeste isso?”
O que é especial nesta questão de porque vs por que em frases interrogativas directas é que não há consenso entre especialistas da gramática normativa, de maneira que não resta a cada um senão escolher a ortografia que mais lhe agrada. O que se pode e deve saber é que no Brasil é habitual escrever por que em duas palavras, ao passo que o mais comum em Portugal é escrever porque numa palavra – se bem que haja, tanto no Brasil como em Portugal, gramáticos que discordem da “norma” dos seus países.
Como diz Cláudia Pinto e muito bem, «a ortografia é um conjunto de regras convencionadas, e, como tal, artificiais». As normas ortográficas reflectem umas vezes melhor e outras vezes pior os factos linguísticos, e, neste caso, a norma ortográfica brasileira reflecte melhor do que a norma portuguesa os factos linguísticos – na minha opinião... Pelo menos, não consigo vislumbrar nenhuma razão propriamente linguística para escrever porque numa palavra só, na situação referida. [Aliás, em última análise, não há nenhuma razão propriamente linguística para escrever porque numa palavra só em situação nenhuma, mas não quero entrar agora nessa discussão...] Se se admitir, como faz a norma brasileira, que porque não é, no fundo, senão por que (a preposição por mais o interrogativo (o) que), por que faz parte do mesmo paradigma que para que, com que, etc.: Por que fizeste isso? Para que fizeste isso? Com que fizeste isso? De que fizeste isso? É isto que eu acho que porque/por que é de facto, e por isso é que eu digo que, na minha opinião, a “norma” brasileira reflecte melhor os factos linguísticos.
Agora, como os factos linguísticos importam pouco quando se discute ortografia, deixemos de lado a questão da motivação linguística e sejamos mais práticos: há alguma vantagem em escrever de uma ou de outra maneira? Há um argumento lógico a favor da opção porque: permite distinguir, na escrita (na oralidade, há outras maneiras de o fazer), frases interrogativas do tipo «Por que esperas?» (=De que estás à espera?) de outras do tipo «Porque esperas?» (=Que motivo tens para esperar?), se bem que este problema se coloque muito poucas vezes na prática. A favor da opção por que, há o argumento da facilidade: é menos confuso para muita gente pensar que é sempre por que, menos quanto se trate de conjunção causal (ou do nome porquê).
Insisto então: num caso destes, a escolha é de cada um. Se alguém vos perguntar (por escrito) “porque escreves tu porque em duas palavras?”, podem sempre responder (por escrito): “E por que escreves tu por que numa só?” Ou vice-versa, claro está…
O que é especial nesta questão de porque vs por que em frases interrogativas directas é que não há consenso entre especialistas da gramática normativa, de maneira que não resta a cada um senão escolher a ortografia que mais lhe agrada. O que se pode e deve saber é que no Brasil é habitual escrever por que em duas palavras, ao passo que o mais comum em Portugal é escrever porque numa palavra – se bem que haja, tanto no Brasil como em Portugal, gramáticos que discordem da “norma” dos seus países.
Como diz Cláudia Pinto e muito bem, «a ortografia é um conjunto de regras convencionadas, e, como tal, artificiais». As normas ortográficas reflectem umas vezes melhor e outras vezes pior os factos linguísticos, e, neste caso, a norma ortográfica brasileira reflecte melhor do que a norma portuguesa os factos linguísticos – na minha opinião... Pelo menos, não consigo vislumbrar nenhuma razão propriamente linguística para escrever porque numa palavra só, na situação referida. [Aliás, em última análise, não há nenhuma razão propriamente linguística para escrever porque numa palavra só em situação nenhuma, mas não quero entrar agora nessa discussão...] Se se admitir, como faz a norma brasileira, que porque não é, no fundo, senão por que (a preposição por mais o interrogativo (o) que), por que faz parte do mesmo paradigma que para que, com que, etc.: Por que fizeste isso? Para que fizeste isso? Com que fizeste isso? De que fizeste isso? É isto que eu acho que porque/por que é de facto, e por isso é que eu digo que, na minha opinião, a “norma” brasileira reflecte melhor os factos linguísticos.
Agora, como os factos linguísticos importam pouco quando se discute ortografia, deixemos de lado a questão da motivação linguística e sejamos mais práticos: há alguma vantagem em escrever de uma ou de outra maneira? Há um argumento lógico a favor da opção porque: permite distinguir, na escrita (na oralidade, há outras maneiras de o fazer), frases interrogativas do tipo «Por que esperas?» (=De que estás à espera?) de outras do tipo «Porque esperas?» (=Que motivo tens para esperar?), se bem que este problema se coloque muito poucas vezes na prática. A favor da opção por que, há o argumento da facilidade: é menos confuso para muita gente pensar que é sempre por que, menos quanto se trate de conjunção causal (ou do nome porquê).
Insisto então: num caso destes, a escolha é de cada um. Se alguém vos perguntar (por escrito) “porque escreves tu porque em duas palavras?”, podem sempre responder (por escrito): “E por que escreves tu por que numa só?” Ou vice-versa, claro está…
27/09/08
Penas de anjo: o meu tempo e o tempo dos meus vizinhos
O texto “Plume d’Ange”, de Claude Nougaro (com música de fundo de Jean Claude Vannier), conta a história de um homem a quem aparece um anjo, que lhe dá uma pena de uma das suas asas e a instrução de mostrar essa pena às pessoas, explicando-lhes que é de uma pena de anjo que se trata. Se houver um único ser humano que acredite nele, a humanidade estará para sempre salva de todo o sofrimento. “A fé é mais bela do que Deus”, diz o anjo antes de se ir embora. A determinado momento da história, por razões que não interessa explicar aqui, o protagonista vê-se na contingência de ter de explicar a história da pena ao comissário da esquadra onde se encontra detido. Quando acaba a explicação, responde-lhe o comissário: “Mas tem de admitir, ainda assim, que uma afirmação desse teor precisa de ser apoiada por um mínimo de investigação, na falta de provas...”.
De formas mais ou menos bombásticas, afirma-se muita vezes que a concepção (ou consciência, ou percepção, até) “ocidental” do tempo é diferente da concepção “não-ocidental” do mesmo. Às vezes, em vez de se opor a cultura ocidental à cultura não-ocidental, opõe-se antes a cultura moderna à cultura pré-moderna ou rural; a terminologia varia. Mas a ideia de base é sempre a mesma: que a maneira como eu encaro e vivo o tempo ou lido com ele é diferente da maneira como encaram e vivem o tempo e lidam com ele os meus vizinhos do lado[1].
Quanto às diferenças concretas entre esses pares de conceitos em oposição, também se apresentam de várias maneiras. Uma das oposições frequentemente apontadas é a pretensa distinção entre tempo “histórico” ou “linear” e tempo “circular” ou “cíclico”. Segundo Serge Latouche, por exemplo, uma das características do Ocidente enquanto entidade cultural é “a crença, inaudita à escala do cosmos e das culturas, num tempo cumulativo e linear[2]”. Uma outra formulação altamente sedutora da mesma ideia é, também por exemplo, a de Daryush Shayegan, que também define em termos da concepção do tempo o terceiro dos seus “quatro movimentos descendentes do espírito” que criam a modernidade: “O terceiro movimento, operando a passagem das substâncias espirituais às pulsões primitivas, coloca o homem não na dimensão polar de um retorno à Origem mas na perspectiva linear da evolução[3]”.
Mas esta oposição do “tempo cumulativo” ao “eterno retorno” não é a única. Já vi e ouvi muitas outras, como “tempo homogéneo” versus “tempo heterogéneo”, “tempo contínuo” versus “tempo descontínuo”, “tempo desligado do vivido” versus “tempo como sequências de experiências”; “tempo cronológico” versus “tempo imanente da acção”, “tempo como recurso” versus “tempo sem valor económico”, coisas assim…
Esta “ideia forte” aparece não só sob variadas formas, mas também nos mais variados contextos: em trabalhos académicos com “grandes teorias” sobre rupturas entre tipos de civilização, em teses de mestrado de antropologia, em artigos de revista de divulgação de simpáticas ideias antietnocêntricas, em conversas de café entre turistas, cooperantes ou investidores estrangeiros em qualquer país em vias de desenvolvimento:
“As pessoas aqui não sabem que idade têm… O tempo para elas não é como para nós…”
“O ritmo de vida aqui é outro, é tudo mais lento, outra maneira de encarar o tempo…”
“O encontro é às 16? Tempo europeu ou tempo africano?”
A simples constatação de que as pessoas se atrasam constantemente ou de que os eventos não começam à hora prevista pode levar certas pessoas a inferir que se está perante uma “outra concepção do tempo”. Os antropólogos, pelos vistos, sofrem muito com os atrasos dos seus informantes. E há-os que deduzem daí uma estarem perante outra maneira de conceber o tempo. O antropólogo Nigel Barley, por exemplo, conta que desesperava com os atrasos dos dowayos dos Camarões.
Como se provam afirmações deste tipo? Não se provam. Se eu fosse de brincar com as palavras, diria que estas afirmações são literalmente improváveis. Impressões e impressões apenas. Que se podem contrariar com outras impressões, que é outra forma de dizer que, no fundo, não se podem contrariar. A fé é mais bela que Deus, admitamos, e é algo que, como o Deus que fundamenta, não se pode discutir. Ou antes, sim. Pode discutir-se:
Antes de mais, parece-me que uma determinada concepção do tempo, por muito que admitamos que possa variar de cultura para cultura, não pode deixar de estar informada (eu diria até, não pode deixar de ser determinada) pela maneira como o tempo é, em geral, percebido pelos seres humanos. Esta observação é desinteressante, de tão óbvia, mas tem a vantagem de chamar a atenção para um algo fundamental: a concepção do tempo não pode ser radicalmente diferente de cultura para cultura. O tempo é uma dimensão real, exactamente como as dimensões do espaço, uma dimensão que existe fora dos seres humanos, e que é percebida por eles através dos mecanismos físicos de que dispõem, e que são comuns a todos eles. Não faz muito sentido postular que o tempo é apenas uma categoria mental. De facto, não há nenhum boa razão para considerarmos que o tempo é fundamentalmente diferente dos outros fenómenos perceptíveis, como as outras três dimensões, a textura, a cor, a aceleração, o sabor, etc. Se uma determinada cultura impusesse aos seus membros uma concepção do tempo que se afastasse radicalmente da realidade do tempo, isso constituiria um handicap comparável a uma percepção do espaço que não tivesse directamente a ver com o próprio espaço – algo como viver permanentemente sob o efeito de um alucinógeno…
É bom deixar isto claro, mas é verdade que não nos adianta muito: toda a gente tem os mesmos mecanismos gustativos, mas há sítios onde a maior parte das pessoas gosta de bacalhau e outros onde a maior partes das pessoas não gosta de bacalhau… Além de que também é verdade que não há nenhum consenso sobre as características do tempo em si e que há amplo consenso quanto à ocorrência de distorções na percepção do tempo em função das condições psíquicas e físicas da própria percepção – donde que seja natural que algum tipo de desvio culturalmente determinado seja possível. Não digo que não. O que eu digo é que gostava que me mostrassem a amplitude e as características dessa variação com outros argumentos, baseados em observáveis, se possível. Ou, pelo menos, mais lógicos, porque os que usam não me convencem.
A História e o eterno retorno
Comecemos pela questão da pretensa “linearidade” característica da “concepção ocidental” do tempo por oposição à ciclicidade de outros concepções. Discordo. Estou convencido de que o tempo é sempre concebido como um vector orientado do passado para o futuro em que há um retorno cíclico de certos eventos.
Penso que há abundante evidência da óbvia linearidade de todas as concepções do tempo. Um exemplo simples: A estrutura das narrativas (ficcionais ou não, isso é irrelevante) é, em qualquer cultura e em qualquer período da história humana, sempre a mesma: linear. E isto porque é essa a estrutura temporal natural nos seres humanos! Sabemos que nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. O que acontece, seja a um chileno, seja a um japonês, seja lá a quem for, a quem seja apresentada uma narrativa não-linear é que tem de a linearizar na sua mente para a poder compreender – é o que fazemos todos perante narrativas contadas com a sucessão dos acontecimentos que a constituem organizada numa ordem não linear. É de notar até que, quando a não-linearidade da narrativa é muito violenta, a maior parte das pessoas pura e simplesmente não a compreende, porque não é capaz de reconstituir a sua temporalidade natural. E há casos em que uma apresentação não linear da narrativa pode esconder, pela dificuldade de lhe reconstruir a sequência temporal, incoerências da própria narrativa. (Experimentem, por exemplo, comparar a versão original do filme Memento, em que a história é contada do fim para o princípio, com a versão “cronológica” que aparece numa edição em DVD.) Evidentemente, são as pessoas com maiores hábitos de lidar com estruturas narrativas não convencionais que têm mais possibilidades de reorganizar, para a compreender, uma história contada às avessas, por exemplo – não a maior parte dos dowayos e dos aimaras, que, como a maior parte dos portugueses, provavelmente, só estão habituados a conceber o tempo como perfeitamente linear…
Além de universalmente linear, o tempo é universalmente “cíclico”. Temos de voltar aqui aos nossos mecanismos perceptivos. Se os nossos relógios internos são essencialmente cíclicos e são parcialmente regulados por fenómenos cíclicos de sucessão, por exemplo, de dia e de noite, e se os nosso pontos de referência temporal interiores e exteriores se organizam em ciclos (já nem quero dizer fases da lua e marés, que são irrelevantes para muitos de nós, mas, pelo menos, estações do ano, menstruação, fome e saciedade, actividade e repouso), como é que podíamos ter uma percepção – ou uma concepção, ou uma vivência – não cíclica do tempo? É-me incompreensível a ideia de que há culturas com uma concepção predominantemente cíclica do tempo por oposição a outras que têm do tempo uma concepção essencialmente “rectilínea” ou “evolutiva”. Sejamos claros: o “tempo ocidental moderno”, com calendários e relógios e festas de anos e feriados nacionais e Natal e salários ao fim do mês é tão cíclico como outro tempo qualquer. A ideia de História? Mas a História é vivida como desligada do presente de cada um, como não tendo nele implicações – exactamente como os mitos...
Datas, relógios, abstracção e atrasos
Um dos problemas que se coloca quando tentamos aferir a validade das oposições propostas como base de concepções antagónicas do tempo, como homogeneidade versus heterogeneidade, continuidade versus descontinuidade e abstracção versus experiencialidade, é que tudo o que alegadamente caracteriza tanto a concepção moderna como a concepção pré-moderna do tempo é sempre proposto, por algum filósofo ocidental, como característica universal da percepção, concepção, consciência ou vivência do tempo. De facto, não há nenhum consenso relativamente a qual é a concepção ocidental ou moderna do tempo. Existem antes várias concepções antagónicas do tempo…
Mas isso não importa, argumentarão alguns, estamos a falar da maneira como o tempo é efectivamente encarado e vivido pela maior parte das pessoas do mundo ocidental moderno… Muito bem. Deixemos então de lado a discussão filosófica sobre o tempo. Deixemos a análise pormenorizada dos conceitos em oposição e analisemos antes simplesmente os pretensos indícios de uma diferença de percepção temporal entre os ocidentais modernos e os outros.
Um desses indícios é, segundo alguns, o facto de estes últimos serem incapazes de assinalar momentos especiais. Bom, a ser verdade, isso seria, afinal, indício não de uma concepção descontínua do tempo, mas antes, precisamente, de uma concepção contínua do tempo, isto é não marcada por uma percepção de rupturas temporais... Mas eu não acredito, sequer, que isso se possa afirmar. Creio que o que falta a certas pessoas são pontos fixos objectivos a que possam referir esses momentos. Mas isso é outra história. Para qualquer ocidental moderno, a ausência de referências objectivas resulta também numa impossibilidade de perspectivar cronologicamente os acontecimentos da sua vida. Eu sei que o plural de caso isolado não é dados, e muito menos dados fiáveis, mas não posso deixar de entrar aqui com uma parte da minha experiência (além disso, a ausência de dados fiáveis a favor dos postulados que discuto dá-me esse direito… infelizmente):
Uma vez, decidi fazer uma cronologia da minha vida. Tentei organizá-la primeiro só a partir da memória e depois comparei esse esboço de cronologia com o que me diziam os documentos de que dispunha. Fiquei surpreendido ao descobrir que a sequência de eventos que tentei reconstruir só na minha cabeça tinha, ao ser comparada com a evidência exterior, uma quantidade enorme de erros notáveis. Outras pessoas que passaram por experiências semelhantes confirmaram-me que lhes aconteceu exactamente o mesmo. Agora, sem esses documentos concretos com datas (que vão de cartas a bilhetes de comboio ou de concertos, cartões de identificação vários, registos escolares e folhas de salário, etc.), nunca teria sido capaz de organizar a minha história de vida, por muito que seja um “ocidental moderno”.
Evidentemente, muitas pessoas em tempos e espaços menos modernos que o meu, sejam eles ou não da “cultura ocidental”, não têm acesso a essa calendarização dos acontecimentos da sua vida. Mas o que é que isso tem a ver com uma “concepção do tempo”? Ser ou não capaz de dar datas para acontecimentos com rigor – e de medir idades e durações de eventos – é uma competência aprendida que não está forçosamente relacionada com uma concepção do tempo. Duas pessoas com a mesma cultura (o que deveria implicar a mesma concepção do tempo...) podem ter capacidades completamente distintas de situar temporalmente eventos precisos. Quantas vezes ouvi dizer dos camponeses portugueses as mesmas coisas que se dizem dos camponeses moçambicanos… Será porque são de uma cultura não-ocidental ou porque vivem numa mesma pré-modernidade? Chamem-lhe o que quiserem, mas o que eles têm em comum com os camponeses moçambicanos é terem um baixo nível de educação formal e uma vida em que a datação precisa não é uma competência importante. Que isso tenha implicações na precisão com que se memorizam e descrevem acontecimentos, aceito. Que essa imprecisão na referência a determinados momentos seja reflexo de uma outra concepção do tempo, há que o demonstrar um bocadinho melhor…
Que o tempo não seja abstracto para a maioria das pessoas das zonas rurais do terceiro mundo não me surpreende por aí além. Nem o tempo, nem o resto. O espaço, por exemplo, também não o é, o que se pode facilmente verificar pela incapacidade de desenhar ou ler mapas. Mas o facto de o tempo não ser abstracto tem apenas a ver, mais uma vez, com a inexistência ou o baixo nível de educação formal. Se é a isto que se chama cultura (pode ser, não tenho nada contra), então muito bem, estamos de acordo. Mas, então, a principal linha divisória entre culturas é, basicamente, ter-se ou não ido à escola o suficiente para aprender a lidar com graus maiores de abstracção.
Outra questão que não está de modo algum relacionada com a “concepção do tempo” é a questão dos atrasos. Antes de mais, quero deixar claro que, como português, tenho, naturalmente, uma ideia muito diferente da de muitos outros “ocidentais modernos”. Vivi dois anos no Alto Molócuè, uma capital de distrito de um Moçambique bastante “profundo”, como se diz, e os moçambicanos, mesmo “rurais” e muito “pré-modernos” (de facto, muita gente no distrito, após a guerra, vivia, infelizmente, numa espécie de neolítico), sempre me pareceram muito cumpridores relativamente aos portugueses modernos com quem eu me dava em Lisboa... Provavelmente, em vez de falar de concepções de tempo para explicar as diferentes atitudes relativamente à pontualidade, é melhor explicá-las a partir de modelos morais, ou seja de padrões de acção aceitável, independentemente da concepção de tempo que se tem. É difícil compreender como é que a pontualidade ou a sua ausência podem depender de uma concepção do tempo. Parece evidente que elas dependem antes de uma concepção da pontualidade, que é, em última análise, moral, porque radica na definição do que é admissível ou desejável nas relações entre as pessoas. (Além de que influi muito provavelmente na pontualidade das pessoas o terem maior ou menor acesso a relógios, mas eu já nem quero ir por aí…)
Não conheço os dowayos e não me posso pronunciar sobre a maneira como é encarada a pontualidade por esse povo. Mas… Os dowayos chegam atrasadas a todos os encontros? Se não (como tenho praticamente a certeza de que é o caso), a que encontros chegam atrasados? Aos encontros com as autoridades, estatais ou tradicionais, chegam atrasados? A cerimónias e festas, religiosas ou civis, chegam atrasados? À escola e aos trabalhos, chegam atrasados? A encontros com os seus amigos, chegam atrasados? Se a situação não for radicalmente diferente entre os dowayos dos Camarões e os lómuès do Alto Molócuè (e os portugueses de Lisboa e os neerlandeses de Roterdão…), a resposta a muitas destas perguntas é claramente negativa. Para compreender os padrões da pontualidade dos dowayos não basta, seguramente, postular uma pretensa “concepção outra” do tempo. À partida, o que parece óbvio é o seguinte: se uma pessoa não chega atrasado a um encontro com o régulo ou o chefe de posto e chega atrasado ao encontro com um antropólogo ou um amigo, isto apenas implica ou que ele dá menos importância à pontualidade no encontro com o antropólogo ou o amigo do que à pontualidade no encontro com o régulo ou o chefe de posto. Como normalmente se trata, neste caso, de obediência a um código moral colectivo, isto quer dizer que é socialmente aceite chegar atrasado a determinados encontros e não a outros.
Não deixa de ser curioso, aliás, que às vezes se afirme que as camadas urbanas ou educadas (as “elites ocidentalizadas”) dos países africanos têm uma concepção ocidental e moderna do tempo, ao passo que a população rural tem do tempo a outra concepção não-ocidental e pré-moderna. Pode ser, claro está, que o resto de África seja muito diferente de Moçambique neste aspecto, mas acho pouco provável. Aqui, é bem sabido que as “elites ocidentalizadas” (de facto, toda a gente com poder) fazem constantemente esperar, às vezes horas, os desgraçados dos camponeses, quanto têm encontros com eles: os camponeses, com a sua “concepção pré-moderna” do tempo, chegam a horas; os mais poderosos, com a sua “concepção moderna” do tempo, chegam sistematicamente atrasados…
As palavras do tempo
Falta ainda abordar a questão de muitos outros pontos de vista, mas eu não vou muito mais longe: só mais uns comentariozinhos breves sobre a parte linguística da questão.
Há quem encontre “provas” linguísticas de outras maneiras de conceber o tempo: por exemplo, que faltam a esta ou àquela língua maneiras precisas de referir localizações temporais; ou que, em certas línguas, se descreve a sucessão dos dias ou das estações não como sequências de dias e estações diversas, mas como o retorno do mesmo dia e da mesma estação… Ou então, mais “profundo” ainda (um exemplo de que eu gosto especialmente, dos vários que podia dar) porque a relação entre expressões de tempo e de espaço é diferentes da que existe nas “nossas” línguas:
Também parto do princípio que é sempre a mesma noção de “dia” ou de “estação” que ocorre em todas as línguas (em português, também não digo “o dia de hoje nasceu” ou “este dia nasceu”, digo simplesmente “o dia nasceu”), sem que isso implique que se considere que é o mesmo dia que se repete. Concepções diferentes do tempo?
E não se postula assim, com aquela confiança toda, a correspondência biunívoca entre categorias conceptuais e formas da língua. Não há provas de uma relação directa entre a temporalidade humana e a sua expressão linguística. Quer dizer: a maneira como construímos o tempo na linguagem pode não ser um reflexo directo da maneira como o percebemos e concebemos, seja lá o que for que isso queira dizer. Além disso, as formas da língua têm uma história e características semânticas complexas que é preciso analisar cuidadosamente; e é isso que falta na descrição das palavras aimaras referidas. Na realidade, não há nada de especial no facto de a mesma forma servir para “futuro” e para “atrás” – uma forma como “for”, em inglês, serve para tudo – para a frente, para trás, para o passado, para o futuro… Além disso, se há europeus que entendem coisas opostas, quando se lhes diz (pouco importa em que língua) que uma palavra, num texto escrito, está “atrás” da outra (e garanto-vos que há muita variação de pessoa para pessoa, e talvez de país para país, mas não tenho a certeza), isso não significa que tenham uma concepção diferente da orientação da escrita: para todos se escreve da esquerda para a direita…
Penas de anjo, digo eu: a fé é mais bela do que Deus…
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[1] Isto é para se entender literalmente. Lembrem-se de que eu, apesar de viver numa mansão “estilo amaricano [sic]”, vivo em pleno bairro 25 de Junho, um dos bairros pobres de Chimoio, e os meus vizinhos mais próximos vivem em casas de barro, cozinham a lenha e são, em suma, “pré-modernos”.
[2] Faut il refuser le développement?. P. U. F., 1986; formulação retomada em L’occidentalisation du monde à l’heure de la «Globalisation». Ed. La découverte Poche, 2005
[3] Sciences et symboles, Les voies de la connaissance, Albin Michel/France Culture, 1986.
[4] Por descargo de consciência, aqui fica a referência do artigo: Johansen, Andres, “Handlingens tid” in Hvor mange hvite elefanter? Kulturdimensjonen i bistandsarbeid, Thomas Hylland Eriksen (ed.), Ad notam forlag As. Oslo: 1989. Agora não sei o que é preferível, se ser acusado de ser desleixado, por não indicar onde fui buscar a citação, se ser acusado de ser petulante, por referir artigos em norueguês…
[5] Llanos, Ruth, “El desarrollo aún no tiene rostro de mujer”, in unitas nº 4, La Paz, Bolívia: 1991.
De formas mais ou menos bombásticas, afirma-se muita vezes que a concepção (ou consciência, ou percepção, até) “ocidental” do tempo é diferente da concepção “não-ocidental” do mesmo. Às vezes, em vez de se opor a cultura ocidental à cultura não-ocidental, opõe-se antes a cultura moderna à cultura pré-moderna ou rural; a terminologia varia. Mas a ideia de base é sempre a mesma: que a maneira como eu encaro e vivo o tempo ou lido com ele é diferente da maneira como encaram e vivem o tempo e lidam com ele os meus vizinhos do lado[1].
Quanto às diferenças concretas entre esses pares de conceitos em oposição, também se apresentam de várias maneiras. Uma das oposições frequentemente apontadas é a pretensa distinção entre tempo “histórico” ou “linear” e tempo “circular” ou “cíclico”. Segundo Serge Latouche, por exemplo, uma das características do Ocidente enquanto entidade cultural é “a crença, inaudita à escala do cosmos e das culturas, num tempo cumulativo e linear[2]”. Uma outra formulação altamente sedutora da mesma ideia é, também por exemplo, a de Daryush Shayegan, que também define em termos da concepção do tempo o terceiro dos seus “quatro movimentos descendentes do espírito” que criam a modernidade: “O terceiro movimento, operando a passagem das substâncias espirituais às pulsões primitivas, coloca o homem não na dimensão polar de um retorno à Origem mas na perspectiva linear da evolução[3]”.
Mas esta oposição do “tempo cumulativo” ao “eterno retorno” não é a única. Já vi e ouvi muitas outras, como “tempo homogéneo” versus “tempo heterogéneo”, “tempo contínuo” versus “tempo descontínuo”, “tempo desligado do vivido” versus “tempo como sequências de experiências”; “tempo cronológico” versus “tempo imanente da acção”, “tempo como recurso” versus “tempo sem valor económico”, coisas assim…
Esta “ideia forte” aparece não só sob variadas formas, mas também nos mais variados contextos: em trabalhos académicos com “grandes teorias” sobre rupturas entre tipos de civilização, em teses de mestrado de antropologia, em artigos de revista de divulgação de simpáticas ideias antietnocêntricas, em conversas de café entre turistas, cooperantes ou investidores estrangeiros em qualquer país em vias de desenvolvimento:
“As pessoas aqui não sabem que idade têm… O tempo para elas não é como para nós…”
“O ritmo de vida aqui é outro, é tudo mais lento, outra maneira de encarar o tempo…”
“O encontro é às 16? Tempo europeu ou tempo africano?”
A simples constatação de que as pessoas se atrasam constantemente ou de que os eventos não começam à hora prevista pode levar certas pessoas a inferir que se está perante uma “outra concepção do tempo”. Os antropólogos, pelos vistos, sofrem muito com os atrasos dos seus informantes. E há-os que deduzem daí uma estarem perante outra maneira de conceber o tempo. O antropólogo Nigel Barley, por exemplo, conta que desesperava com os atrasos dos dowayos dos Camarões.
Os encontros a uma hora determinada nunca funcionavam. As pessoas achavam estranho que eu ficasse perplexo quando apareciam ou dia ou uma semana depois do que tinha sido combinado, ou quando, depois de andar mais de uma milha a pé, não estavam em casa.Não li o livro de Nigel Barley e não sei, por isso, o que ele conclui desses atrasos, mas o antropólogo Anders Joahnssen, que leu o livro, conclui que tudo isto é porque os dowayos, como outros povos de sociedades pré-modernas, têm uma concepção do tempo diferente da nossa, heterogénea e descontínua, segundo a qual as coisas se fazem “quando tudo está pronto[4]”.
Como se provam afirmações deste tipo? Não se provam. Se eu fosse de brincar com as palavras, diria que estas afirmações são literalmente improváveis. Impressões e impressões apenas. Que se podem contrariar com outras impressões, que é outra forma de dizer que, no fundo, não se podem contrariar. A fé é mais bela que Deus, admitamos, e é algo que, como o Deus que fundamenta, não se pode discutir. Ou antes, sim. Pode discutir-se:
Antes de mais, parece-me que uma determinada concepção do tempo, por muito que admitamos que possa variar de cultura para cultura, não pode deixar de estar informada (eu diria até, não pode deixar de ser determinada) pela maneira como o tempo é, em geral, percebido pelos seres humanos. Esta observação é desinteressante, de tão óbvia, mas tem a vantagem de chamar a atenção para um algo fundamental: a concepção do tempo não pode ser radicalmente diferente de cultura para cultura. O tempo é uma dimensão real, exactamente como as dimensões do espaço, uma dimensão que existe fora dos seres humanos, e que é percebida por eles através dos mecanismos físicos de que dispõem, e que são comuns a todos eles. Não faz muito sentido postular que o tempo é apenas uma categoria mental. De facto, não há nenhum boa razão para considerarmos que o tempo é fundamentalmente diferente dos outros fenómenos perceptíveis, como as outras três dimensões, a textura, a cor, a aceleração, o sabor, etc. Se uma determinada cultura impusesse aos seus membros uma concepção do tempo que se afastasse radicalmente da realidade do tempo, isso constituiria um handicap comparável a uma percepção do espaço que não tivesse directamente a ver com o próprio espaço – algo como viver permanentemente sob o efeito de um alucinógeno…
É bom deixar isto claro, mas é verdade que não nos adianta muito: toda a gente tem os mesmos mecanismos gustativos, mas há sítios onde a maior parte das pessoas gosta de bacalhau e outros onde a maior partes das pessoas não gosta de bacalhau… Além de que também é verdade que não há nenhum consenso sobre as características do tempo em si e que há amplo consenso quanto à ocorrência de distorções na percepção do tempo em função das condições psíquicas e físicas da própria percepção – donde que seja natural que algum tipo de desvio culturalmente determinado seja possível. Não digo que não. O que eu digo é que gostava que me mostrassem a amplitude e as características dessa variação com outros argumentos, baseados em observáveis, se possível. Ou, pelo menos, mais lógicos, porque os que usam não me convencem.
A História e o eterno retorno
Comecemos pela questão da pretensa “linearidade” característica da “concepção ocidental” do tempo por oposição à ciclicidade de outros concepções. Discordo. Estou convencido de que o tempo é sempre concebido como um vector orientado do passado para o futuro em que há um retorno cíclico de certos eventos.
Penso que há abundante evidência da óbvia linearidade de todas as concepções do tempo. Um exemplo simples: A estrutura das narrativas (ficcionais ou não, isso é irrelevante) é, em qualquer cultura e em qualquer período da história humana, sempre a mesma: linear. E isto porque é essa a estrutura temporal natural nos seres humanos! Sabemos que nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. O que acontece, seja a um chileno, seja a um japonês, seja lá a quem for, a quem seja apresentada uma narrativa não-linear é que tem de a linearizar na sua mente para a poder compreender – é o que fazemos todos perante narrativas contadas com a sucessão dos acontecimentos que a constituem organizada numa ordem não linear. É de notar até que, quando a não-linearidade da narrativa é muito violenta, a maior parte das pessoas pura e simplesmente não a compreende, porque não é capaz de reconstituir a sua temporalidade natural. E há casos em que uma apresentação não linear da narrativa pode esconder, pela dificuldade de lhe reconstruir a sequência temporal, incoerências da própria narrativa. (Experimentem, por exemplo, comparar a versão original do filme Memento, em que a história é contada do fim para o princípio, com a versão “cronológica” que aparece numa edição em DVD.) Evidentemente, são as pessoas com maiores hábitos de lidar com estruturas narrativas não convencionais que têm mais possibilidades de reorganizar, para a compreender, uma história contada às avessas, por exemplo – não a maior parte dos dowayos e dos aimaras, que, como a maior parte dos portugueses, provavelmente, só estão habituados a conceber o tempo como perfeitamente linear…
Além de universalmente linear, o tempo é universalmente “cíclico”. Temos de voltar aqui aos nossos mecanismos perceptivos. Se os nossos relógios internos são essencialmente cíclicos e são parcialmente regulados por fenómenos cíclicos de sucessão, por exemplo, de dia e de noite, e se os nosso pontos de referência temporal interiores e exteriores se organizam em ciclos (já nem quero dizer fases da lua e marés, que são irrelevantes para muitos de nós, mas, pelo menos, estações do ano, menstruação, fome e saciedade, actividade e repouso), como é que podíamos ter uma percepção – ou uma concepção, ou uma vivência – não cíclica do tempo? É-me incompreensível a ideia de que há culturas com uma concepção predominantemente cíclica do tempo por oposição a outras que têm do tempo uma concepção essencialmente “rectilínea” ou “evolutiva”. Sejamos claros: o “tempo ocidental moderno”, com calendários e relógios e festas de anos e feriados nacionais e Natal e salários ao fim do mês é tão cíclico como outro tempo qualquer. A ideia de História? Mas a História é vivida como desligada do presente de cada um, como não tendo nele implicações – exactamente como os mitos...
Datas, relógios, abstracção e atrasos
Um dos problemas que se coloca quando tentamos aferir a validade das oposições propostas como base de concepções antagónicas do tempo, como homogeneidade versus heterogeneidade, continuidade versus descontinuidade e abstracção versus experiencialidade, é que tudo o que alegadamente caracteriza tanto a concepção moderna como a concepção pré-moderna do tempo é sempre proposto, por algum filósofo ocidental, como característica universal da percepção, concepção, consciência ou vivência do tempo. De facto, não há nenhum consenso relativamente a qual é a concepção ocidental ou moderna do tempo. Existem antes várias concepções antagónicas do tempo…
Mas isso não importa, argumentarão alguns, estamos a falar da maneira como o tempo é efectivamente encarado e vivido pela maior parte das pessoas do mundo ocidental moderno… Muito bem. Deixemos então de lado a discussão filosófica sobre o tempo. Deixemos a análise pormenorizada dos conceitos em oposição e analisemos antes simplesmente os pretensos indícios de uma diferença de percepção temporal entre os ocidentais modernos e os outros.
Um desses indícios é, segundo alguns, o facto de estes últimos serem incapazes de assinalar momentos especiais. Bom, a ser verdade, isso seria, afinal, indício não de uma concepção descontínua do tempo, mas antes, precisamente, de uma concepção contínua do tempo, isto é não marcada por uma percepção de rupturas temporais... Mas eu não acredito, sequer, que isso se possa afirmar. Creio que o que falta a certas pessoas são pontos fixos objectivos a que possam referir esses momentos. Mas isso é outra história. Para qualquer ocidental moderno, a ausência de referências objectivas resulta também numa impossibilidade de perspectivar cronologicamente os acontecimentos da sua vida. Eu sei que o plural de caso isolado não é dados, e muito menos dados fiáveis, mas não posso deixar de entrar aqui com uma parte da minha experiência (além disso, a ausência de dados fiáveis a favor dos postulados que discuto dá-me esse direito… infelizmente):
Uma vez, decidi fazer uma cronologia da minha vida. Tentei organizá-la primeiro só a partir da memória e depois comparei esse esboço de cronologia com o que me diziam os documentos de que dispunha. Fiquei surpreendido ao descobrir que a sequência de eventos que tentei reconstruir só na minha cabeça tinha, ao ser comparada com a evidência exterior, uma quantidade enorme de erros notáveis. Outras pessoas que passaram por experiências semelhantes confirmaram-me que lhes aconteceu exactamente o mesmo. Agora, sem esses documentos concretos com datas (que vão de cartas a bilhetes de comboio ou de concertos, cartões de identificação vários, registos escolares e folhas de salário, etc.), nunca teria sido capaz de organizar a minha história de vida, por muito que seja um “ocidental moderno”.
Evidentemente, muitas pessoas em tempos e espaços menos modernos que o meu, sejam eles ou não da “cultura ocidental”, não têm acesso a essa calendarização dos acontecimentos da sua vida. Mas o que é que isso tem a ver com uma “concepção do tempo”? Ser ou não capaz de dar datas para acontecimentos com rigor – e de medir idades e durações de eventos – é uma competência aprendida que não está forçosamente relacionada com uma concepção do tempo. Duas pessoas com a mesma cultura (o que deveria implicar a mesma concepção do tempo...) podem ter capacidades completamente distintas de situar temporalmente eventos precisos. Quantas vezes ouvi dizer dos camponeses portugueses as mesmas coisas que se dizem dos camponeses moçambicanos… Será porque são de uma cultura não-ocidental ou porque vivem numa mesma pré-modernidade? Chamem-lhe o que quiserem, mas o que eles têm em comum com os camponeses moçambicanos é terem um baixo nível de educação formal e uma vida em que a datação precisa não é uma competência importante. Que isso tenha implicações na precisão com que se memorizam e descrevem acontecimentos, aceito. Que essa imprecisão na referência a determinados momentos seja reflexo de uma outra concepção do tempo, há que o demonstrar um bocadinho melhor…
Que o tempo não seja abstracto para a maioria das pessoas das zonas rurais do terceiro mundo não me surpreende por aí além. Nem o tempo, nem o resto. O espaço, por exemplo, também não o é, o que se pode facilmente verificar pela incapacidade de desenhar ou ler mapas. Mas o facto de o tempo não ser abstracto tem apenas a ver, mais uma vez, com a inexistência ou o baixo nível de educação formal. Se é a isto que se chama cultura (pode ser, não tenho nada contra), então muito bem, estamos de acordo. Mas, então, a principal linha divisória entre culturas é, basicamente, ter-se ou não ido à escola o suficiente para aprender a lidar com graus maiores de abstracção.
Outra questão que não está de modo algum relacionada com a “concepção do tempo” é a questão dos atrasos. Antes de mais, quero deixar claro que, como português, tenho, naturalmente, uma ideia muito diferente da de muitos outros “ocidentais modernos”. Vivi dois anos no Alto Molócuè, uma capital de distrito de um Moçambique bastante “profundo”, como se diz, e os moçambicanos, mesmo “rurais” e muito “pré-modernos” (de facto, muita gente no distrito, após a guerra, vivia, infelizmente, numa espécie de neolítico), sempre me pareceram muito cumpridores relativamente aos portugueses modernos com quem eu me dava em Lisboa... Provavelmente, em vez de falar de concepções de tempo para explicar as diferentes atitudes relativamente à pontualidade, é melhor explicá-las a partir de modelos morais, ou seja de padrões de acção aceitável, independentemente da concepção de tempo que se tem. É difícil compreender como é que a pontualidade ou a sua ausência podem depender de uma concepção do tempo. Parece evidente que elas dependem antes de uma concepção da pontualidade, que é, em última análise, moral, porque radica na definição do que é admissível ou desejável nas relações entre as pessoas. (Além de que influi muito provavelmente na pontualidade das pessoas o terem maior ou menor acesso a relógios, mas eu já nem quero ir por aí…)
Não conheço os dowayos e não me posso pronunciar sobre a maneira como é encarada a pontualidade por esse povo. Mas… Os dowayos chegam atrasadas a todos os encontros? Se não (como tenho praticamente a certeza de que é o caso), a que encontros chegam atrasados? Aos encontros com as autoridades, estatais ou tradicionais, chegam atrasados? A cerimónias e festas, religiosas ou civis, chegam atrasados? À escola e aos trabalhos, chegam atrasados? A encontros com os seus amigos, chegam atrasados? Se a situação não for radicalmente diferente entre os dowayos dos Camarões e os lómuès do Alto Molócuè (e os portugueses de Lisboa e os neerlandeses de Roterdão…), a resposta a muitas destas perguntas é claramente negativa. Para compreender os padrões da pontualidade dos dowayos não basta, seguramente, postular uma pretensa “concepção outra” do tempo. À partida, o que parece óbvio é o seguinte: se uma pessoa não chega atrasado a um encontro com o régulo ou o chefe de posto e chega atrasado ao encontro com um antropólogo ou um amigo, isto apenas implica ou que ele dá menos importância à pontualidade no encontro com o antropólogo ou o amigo do que à pontualidade no encontro com o régulo ou o chefe de posto. Como normalmente se trata, neste caso, de obediência a um código moral colectivo, isto quer dizer que é socialmente aceite chegar atrasado a determinados encontros e não a outros.
Não deixa de ser curioso, aliás, que às vezes se afirme que as camadas urbanas ou educadas (as “elites ocidentalizadas”) dos países africanos têm uma concepção ocidental e moderna do tempo, ao passo que a população rural tem do tempo a outra concepção não-ocidental e pré-moderna. Pode ser, claro está, que o resto de África seja muito diferente de Moçambique neste aspecto, mas acho pouco provável. Aqui, é bem sabido que as “elites ocidentalizadas” (de facto, toda a gente com poder) fazem constantemente esperar, às vezes horas, os desgraçados dos camponeses, quanto têm encontros com eles: os camponeses, com a sua “concepção pré-moderna” do tempo, chegam a horas; os mais poderosos, com a sua “concepção moderna” do tempo, chegam sistematicamente atrasados…
As palavras do tempo
Falta ainda abordar a questão de muitos outros pontos de vista, mas eu não vou muito mais longe: só mais uns comentariozinhos breves sobre a parte linguística da questão.
Há quem encontre “provas” linguísticas de outras maneiras de conceber o tempo: por exemplo, que faltam a esta ou àquela língua maneiras precisas de referir localizações temporais; ou que, em certas línguas, se descreve a sucessão dos dias ou das estações não como sequências de dias e estações diversas, mas como o retorno do mesmo dia e da mesma estação… Ou então, mais “profundo” ainda (um exemplo de que eu gosto especialmente, dos vários que podia dar) porque a relação entre expressões de tempo e de espaço é diferentes da que existe nas “nossas” línguas:
[Em aimara,] nayar significa ao mesmo tempo “a palavra que está diante de nós” e “a palavra antanho”; a oposta, cchina, que significa “futuro”, aplica-se ao que está situado atrás. Deste modo, a ideia de representação do tempo para o aimara, ao contrário da concepção ocidental, consiste em olhar para o passado diante de si e considerar que o futuro se encontra atrás. Por conseguinte, o vector temporal está invertido em relação ao pensamento ocidental; o passado precede, está em frente. Devemos associar, sem dúvida, a esta particular concepção do tempo e do espaço subjectivo o tempo vivido, e ter em conta que a sucessão das idades míticas obedece também a uma classificação muito diferente[5]”.Quero só dizer que a ausência ou presença de expressões para assinalar de uma forma “precisa” um determinado momento temporal não tem nada a ver com língua nem com a concepção do tempo. A mim, ocidental que sou, não soa nada estranho “quando o sol se levanta” em vez de “às 5 e 45 da manhã”; linguisticamente, também não vejo nenhuma diferença na marcação temporal. A diferença entre o uso de uma e outra expressão, temos de a procurar apenas no facto de estar mais ou menos habituado a referir o tempo ao nascer do sol ou ao relógio… É como medir em centímetros ou em palmos uma distância: a diferença está só na medida usada. Ou como referir uma distância como “a quinze minutos a pé” ou “a cerca de um quilómetro” ou “a 864 m”.
Também parto do princípio que é sempre a mesma noção de “dia” ou de “estação” que ocorre em todas as línguas (em português, também não digo “o dia de hoje nasceu” ou “este dia nasceu”, digo simplesmente “o dia nasceu”), sem que isso implique que se considere que é o mesmo dia que se repete. Concepções diferentes do tempo?
E não se postula assim, com aquela confiança toda, a correspondência biunívoca entre categorias conceptuais e formas da língua. Não há provas de uma relação directa entre a temporalidade humana e a sua expressão linguística. Quer dizer: a maneira como construímos o tempo na linguagem pode não ser um reflexo directo da maneira como o percebemos e concebemos, seja lá o que for que isso queira dizer. Além disso, as formas da língua têm uma história e características semânticas complexas que é preciso analisar cuidadosamente; e é isso que falta na descrição das palavras aimaras referidas. Na realidade, não há nada de especial no facto de a mesma forma servir para “futuro” e para “atrás” – uma forma como “for”, em inglês, serve para tudo – para a frente, para trás, para o passado, para o futuro… Além disso, se há europeus que entendem coisas opostas, quando se lhes diz (pouco importa em que língua) que uma palavra, num texto escrito, está “atrás” da outra (e garanto-vos que há muita variação de pessoa para pessoa, e talvez de país para país, mas não tenho a certeza), isso não significa que tenham uma concepção diferente da orientação da escrita: para todos se escreve da esquerda para a direita…
Penas de anjo, digo eu: a fé é mais bela do que Deus…
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[1] Isto é para se entender literalmente. Lembrem-se de que eu, apesar de viver numa mansão “estilo amaricano [sic]”, vivo em pleno bairro 25 de Junho, um dos bairros pobres de Chimoio, e os meus vizinhos mais próximos vivem em casas de barro, cozinham a lenha e são, em suma, “pré-modernos”.
[2] Faut il refuser le développement?. P. U. F., 1986; formulação retomada em L’occidentalisation du monde à l’heure de la «Globalisation». Ed. La découverte Poche, 2005
[3] Sciences et symboles, Les voies de la connaissance, Albin Michel/France Culture, 1986.
[4] Por descargo de consciência, aqui fica a referência do artigo: Johansen, Andres, “Handlingens tid” in Hvor mange hvite elefanter? Kulturdimensjonen i bistandsarbeid, Thomas Hylland Eriksen (ed.), Ad notam forlag As. Oslo: 1989. Agora não sei o que é preferível, se ser acusado de ser desleixado, por não indicar onde fui buscar a citação, se ser acusado de ser petulante, por referir artigos em norueguês…
[5] Llanos, Ruth, “El desarrollo aún no tiene rostro de mujer”, in unitas nº 4, La Paz, Bolívia: 1991.