16/08/11

Caligrafia, língua e cultura

A letra das pessoas é, creio eu, culturalmente determinada. É certo que a variação individual é muito maior que noutros componentes da cultura, como a língua, por exemplo. Na língua, a variação individual nunca se sobrepões ao que é comum a todos os falantes, mas na caligrafia isso é possível. Dito de outra maneira, ninguém fala português de uma forma não identificável como sendo de um determinado lugar (quanto mais não seja, europeu, brasileiro, moçambicano, etc.), mas é perfeitamente possível ter uma letra que ninguém saiba de onde é.
O que é mais normal, no entanto, é ter a letra da sua terra. Creio que isto é óbvio para pessoas que, como eu, tenham passado muitos anos a ver caligrafia de gente de muitas nacionalidades. Com um certo treino, consegue-se até adivinhar, em muitos casos, a nacionalidade de pessoa só pela sua letra – se ela tiver uma letra standard do seu país, claro está. Só à laia de exemplo, deixo-vos três bocadinhos de textos manuscritos de pessoas de nacionalidade alemã, todas elas nascidas por volta de 1960. Como podem ver, há um padrão comum a todas elas, que é diferente do padrão de caligrafia de portugueses ou franceses da mesma idade.  
Agora, a caligrafia, como muitos outros aspetos da cultura de cada um, deve levar-nos a refletir sobre aspetos da cultura que se costumam deixar de lado quando se fala das culturas étnico-nacionais – “a cultura portuguesa” ou “a cultura dinamarquesa”, etc.
Um aspeto fundamental muitas vezes esquecido é que nenhuma cultura é trans-histórica: uma caligrafia portuguesa do século passado é mais parecida com, ponhamos, uma caligrafia polaca do século passado do que com uma caligrafia portuguesa de hoje – e provavelmente passa-se o mesmo com a cultura no seu todo…
E o facto de os padrões de caligrafia variarem em função não só de nacionalidades mas também de gerações leva-nos forçosamente a questionarmo-nos sobre como se processa a transmissão de cultura. Não parece fazer sentido que ela se passe apenas (sob a forma de memes ou sob outra forma qualquer) de uma geração para a geração seguinte, como se costuma postular. O que se passa com a caligrafia é, aliás, observável de forma ainda mais evidente relativamente à língua. Judith Harris defende que, se os filhos falam com o sotaque do meio em que cresceram e não com o sotaque dos pais (a não ser claro, que os pais falem com o sotaque do meio em que as crianças cresceram...), devíamos tirar desse facto simples algumas ilações sobre como se transmite a cultura (e a personalidade, mas deixo agora de lado essa questão) – ou, no mínimo, interrogar-nos e rever as conceções dominantes sobre essa transmissão vertical. Independentemente do que se possa pensar da teoria de Harris relativamente à formação da personalidade, há que considerar seriamente a hipótese de a cultura, como a língua, ser transmitida essencialmente por pares e não pelas gerações anteriores.


E o que eu digo é o mesmo: não pode ser com os professores que as pessoas aprendem a sua caligrafia, senão teriam a mesma caligrafia que eles. Tem de ser com os seus pares. Muitas vezes com os pares ligeiramente mais velhos, provavelmente, mas com os seus pares. Assim, já faz sentido haver caligrafias nacionais e geracionais.

[Para mais discussão do conceito de cultura neste blogue, vejam, por exemplo, aqui e aqui. Para mais discussão do papel dos pares na transmissão da língua, vejam aqui]

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