Tenho dito que não sou especialmente a favor no Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), nem especialmente contra, mas, na prática, tenho-me revelado a favor, sobretudo porque me tenho sentido na obrigação de criticar, por incoerentes ou infundados, alguns argumentos dos seus detratores[1]. Eis um resumo das críticas que tenho encontrado e do que penso delas.
A alteração mais criticada no AO90 é o desaparecimento das letras etimológicas não pronunciadas, a maior parte das vezes referidas como “consoantes mudas”. Costumam misturar-se, nesta crítica, que é na maior parte das vezes apenas afetiva, argumentos que se contradizem uns ao outros.
Assim, invoca-se muitas vezes o argumento de que é precisa, na grafia, uma marca da “abertura” das vogais átonas. Diz-se, por exemplo, que sem o p de concepção, conceção se lê forçosamente como concessão, isto é, com o e “fechado” ou “mudo”. Nunca vi esta preocupação relativamente à norma anterior, em que havia já várias palavras, algumas do vocabulário fundamental, em que não se marcava graficamente a abertura da vogal átona. Custa-me a perceber por que é que, se isso nunca foi problema antes, passou agora a ser problema. Nunca ninguém achou que se devesse escrever de outra maneira esquecer nem aquecer, porque é que projetar ou afetar se tornaram de repente problemáticos? É estranho. Um dos cavalos de batalha dos antiacordistas é o exemplo de espetadores em vez de espectadores, que muitos acham ridículo, senão revoltante, mas nunca vi ninguém indignar-se, pelas mesmas razões, perante pregadores. É estranho.
Uma objeção válida a esta alteração é que aumenta o número de vogais átonas abertas não assinaladas na escrita: antes do AO90, algumas vogais átonas abertas tinham uma marca dessa abertura, agora nenhuma a tem. É certo. E pode ser uma solução manterem-se as “consoantes mudas” que “abrem” vogais, mas isso não resolve o caso das vogais átonas “abertas” que já não tinham consoante a marcar a abertura. Conservar as “consoantes mudas” preserva, assim, uma incoerência que a nova grafia elimina. Uma solução óbvia para eliminar esta incoerência é recuperar e alargar o uso do acento grave como marca de abertura das vogais átonas abertas, mas uma proposta deste tipo seria, seguramente, muito mal recebida por toda a gente[2]…
Há também quem vá ao ponto de defender que, mesmo nas sílabas tónicas, as “consoantes mudas” não devem desaparecer porque são uma marca tímbrica – por exemplo, que, sem c, projeto ou inseto se leem “naturalmente” projêto ou insêto, porque essa é a pronúncia “predominante” do -eto em final de palavra. Não só não é verdade (já falei disso aqui), como nunca vi preocupações, nem dessas pessoas nem de nenhumas outras, com as pronúncias “predominantes” de, sei lá, -edo ou -elo, por exemplo. É estranho. No caso de -edo final (que é diferente dos de -eto e de -elo finais), não há dúvida que, na grande maioria das palavras onde ocorre, esta sequência final se pronuncia -êdo. Dever-se-ia então marcar a abertura em credo, vedo, arredo, etc? Com quê? E por aí fora…
Evidentemente, prende-se com esta questão uma outra: a da influência da escrita sobre a pronúncia. Alguns detratores do AO90 defendem que, sem as marcas de abertura das vogais, as palavras passarão a ser mal pronunciadas, mas nunca explicam por que não aconteceu isso às palavras que sempre tiveram e continuam a ter átonas abertas sem essas marcas. Se alguém usasse o argumento sensato (nunca ninguém o fez em discussões comigo) de que, por muito que isso não se aplicasse a palavras que se ouvem frequentemente, podia aplicar-se a palavras que quase nunca se ouvem e que, por isso, se aprendem sobretudo através da escrita, eu poderia aceitar – mas isso reduz o problema a meia dúzia de palavras. Ainda assim, é muitíssimo duvidoso que essa influência se possa dar: por exemplo, nunca ouvi palavras menos comuns como colação ou ilação pronunciadas com aa fechados. A explicação é que as poucas pessoas que usam as palavras menos vulgares ouvem-nas pronunciadas por outras poucas pessoas que as usam; e só mesmo as palavras estrangeiras é que podem, às vezes, ser conhecidas por escrito sem nunca serem ouvidas. Quero, a propósito, acrescentar que não conheço trabalhos sobre este fenómeno e ficaria grato a quem me indicasse algum. O único exemplo que vi apresentarem sobre influência da escrita na pronúncia são os verbos em -scer, como nascer ou crescer, mas, sem mais provas ou bons argumentos, acho extremamente duvidosa essa tese. A sequência -sce- tem um história seguramente complicada, que pode bem ter levado a um apagamento do s em várias zonas do país (esse apagamento persiste nalgumas zonas, aliás), mas é duvidoso que a difusão de um eventual reavivar do s, se se pode dizer assim, se tenha feito por influência da escrita em sentido estrito.
A grafia tem efetivamente influência na pronúncia, mas não das línguas maternas: das línguas segundas e das línguas estrangeiras. Nesse sentido, é uma bênção desaparecerem consoantes não pronunciadas para quem tem de ensinar ou aprender o português como língua segunda ou estrangeira. Mas é esse o único problema que a nova escrita resolve. Para contribuir para resolver outros problemas de pronúncia, a escrita deveria ter um caráter eminentemente fonético e não tem (nem acho que deva ter), de maneira que, como não têm interiorizadas as regras fonético-fonológicas do português, os falantes do português como língua segunda ou estrangeira continuarão a pronunciar mal muitas outras coisas. Os oo que deviam ser /u/, por exemplo, etc., etc. ...
Também há quem critique o caráter demasiadamente “fonético” do AO90 (às vezes, as mesmas pessoas que defendem a necessidade de uma marca de abertura das vogais átonas, por contraditório que isso seja), dizendo que não se pode deitar fora a História da língua ou até que algumas palavras do português passam, assim, a ter uma escrita diferente das palavras com o mesmo étimo noutras línguas. Mas não explicam que critérios se devem seguir na decisão de que letras etimológicas manter. Curiosamente, nunca vi ninguém defender, nem antes do AO nem depois, producto, fructo, escripto ou dictado (já nem falo de th, ph e y, e duplos pp, mm, nn, tt, ff, etc.). Nem sequer do nome contracto… Enfim. Além disso, as seleções de palavras internacionais e das línguas em que elas são comparadas nunca é imparcial. E o italiano não entra nunca, porque estas consoantes não existem em italiano (e noutras línguas românicas menos conhecidas). E elas não existem em italiano pela mesma razão que o AO90 as elimina: deixaram de se pronunciar.
Às vezes, critica-se também o desaparecimento das marcas de timbre do antigo pára, terceira pessoa do singular do presente do indicativo de parar, que se tornou homógrafa da preposição para. É certo que o desaparecimento do acento faz confusão a quem a ele está habituado (para mim, foi muito difícil deixar de o usar), mas há que reconhecer que faz pouco sentido ter uma marca tímbrica deste tipo quando desapareceram todas as outras. O hábito, pois, o malvado hábito… Mas uma pessoa habituada a não usar o acento nunca sentirá falta dele. Parecem-nos estranhas sequências como “para para pensar”, mas, convenhamos, não é uma sequência comum por aí além, além de que, com alguma boa vontade, encontramos sequências do mesmo tipo com outras expressões que perderam as marcas tímbricas: eu, por exemplo, tenho um filho que se pela pela bola[3]…
E guardei para o fim o que mais estranho: a identificação de língua com ortografia. Dizem que não se pode decretar mudanças na língua ou que o acordo prejudica a língua, que defender a antiga ortografia é defender a língua, eu sei lá. Mas a língua e a ortografia não são a mesma coisa, longe disso. A língua é um sistema complexo de relações entre sinais e noções de vários tipos que temos na cabeça, que não interiorizamos pela escrita e que ninguém comanda. A escrita é uma convenção, que se pode alterar como e quando quisermos, sem que isso afete a língua. Durante muito tempo, houve muitas línguas que não se escreviam, para as quais não estava fixada uma transcrição, e não eram, por isso, menos línguas que as outras. Há línguas que se podem escrever com mais que um alfabeto e, às vezes, com alfabetos e sistemas de escritas não alfabéticos. Discutir ortografia deveria ser discutir a lógica de um sistema, reduzido e controlado, de transcrição de outro sistema muito mais complexo e muitíssimo mais vasto, a língua. É claro, pode chamar-se à discussão a tradição e o mais que se achar que se deve, mas propor uma reforma ortográfica não é, mas nem de longe nem de perto, propor seja lá que alteração for na língua. Nem que se passasse a escrever com alfabeto khmer a língua era afetada. Custa-me perceber por que custa perceber isto…
No resto, ninguém está mesmo interessado. Não que não haja mais coisas a discutir, mas ninguém está interessado em discutir hífenes e tremas, prefixação e sufixação, aglutinação e justaposição (se calhar, ainda faço eu um textozito sobre isso, um dia destes.), até porque muitas pessoas não conhecem nem as antigas nem as novas regras e escrevem como lhes apetece as palavras compostas…
A conclusão do que tenho visto é a seguinte: há poucas pessoas interessadas em discutir o AO90. Parece-me impossível, aliás, que alguém que queira mesmo refletir sobre a ortografia do português e discuti-la possa estar completamente de acordo com a norma anterior ou com a nova[4]. A maior parte dos críticos explica, de forma normalmente atabalhoada, quando não contraditória, porque não gosta (é o termo) do desaparecimento das “consoantes mudas” e pronto. Quando se argumenta a favor desse desaparecimento, os antiacordistas acabam por responder muitas vezes (muitas vezes…), que sim, pode ser incoerente, mas querem continuar a escrever como aprenderam, não estão para alterar um hábito velho. Convenhamos que, por compreensível que seja a atitude, é uma argumentação um pouco fraca, para não dizer que não chega a ser argumentação. Alguns vão ao ponto de chamar à conversa Camões ou Pessoa, por exemplo, para defender uma ortografia que o primeiro nunca conheceu, obviamente, e que o último recusava...
O processo foi pouco transparente e não incluiu um número suficiente de instituições? Não há necessidade da reforma? A maior unificação da ortografia não chega para unificar as diversas variantes do português? Tudo isto se pode e deve discutir, mas nada disto tem relação com as questões ortográficas concretas que se discutem. É claro, pode sempre recusar-se qualquer reforma e até pode optar-se por uma grafia ilógica e complicada, como a do francês ou do inglês, sem que daí venha mal maior ao mundo. Mas não foi isso que se fez em 1911 e a questão para mim é que quem aceita a grande reforma de 1911, que foi incompleta, deveria querer levar o seu espírito até ao fim – independentemente de como isso unifica ou não a escrita nos países de língua portuguesa. Alguns pontos do AO90 são um avanço nesse sentido.
________________
[1] E já não falo daqueles que se limitam a espalhar informação falsa, dizendo que o c de facto desapareceu ou que desapareceram os acentos nas palavras esdrúxulas. A esses, que não conhecem o AO90, só se pode dizer: leia o acordo antes de o criticar, sim? Não acredito que seja por má fé que espalham essa falsa informação, mas não é de modo algum aceitável que se critique o que não se conhece, muito menos o que não está no que se desconhece…
[2] A grafia portuguesa – e a grafia do português em geral – é uma grafia fonológica e não fonética, isto é, uma grafia que dá conta do sistema e não de como as palavras são realmente pronunciadas. Para dar um exemplo simples e de forma simplificada, comer escreve-se com o e não com u, porque é um o que existe no sistema, como se pode verificar em como ou comes. Em Portugal, existe uma regra fonética que funciona na cabeça de todos os falantes que diz que a língua se eleva e recua de cada vez que um /o/ não é acentuado, passando esse /o/ a pronunciar-se [u]. No Brasil, esta regra só se aplica ao /o/ que está depois da sílaba tónica, pelo que o o de comer tem uma pronúncia diferente: [o]. Mas, como o elemento do sistema é o mesmo, pode escrever-se igual no Brasil e em Portugal. O espírito da reforma ortográfica de 1911 foi passar de uma lógica essencialmente etimológica a uma lógica essencialmente fonológica, mas ninguém advoga uma ortografia fonética, que separaria completamente o português do Brasil do português europeu (a norma da pronúncia africana é instável, mas a norma usada na comunicação social é ainda semelhante à norma europeia). Agora, é discutível até que ponto a oposição entre as vogais átonas abertas e as suas correspondentes fechadas tem caráter fonológico, mas é uma discussão complicada, que deixo aqui de lado.
[3] Pois, eu sei: não quis exagerar, e pela é mesmo uma maneira rara de dizer bola, mas pensei o mesmo que vocês pensaram agora: «Mais giro ainda era “tenho um filho que se pela pela pela”!».
[4] Também não é, de modo algum, necessário estar completamente de acordo nem com a antiga grafia nem com a reforma para escrever português segundo a norma. Sempre houve e continua a haver coisas que não acho que se deviam escrever como as escrevo, mas escrevo-as assim porque é essa a norma. Evidentemente, depende do contexto. Há tipos de texto em que cada um é livre de escrever exatamente como lhe apetecer. Em última análise, cada um é sempre livre de escrever como lhe apetecer, mas tem de se sujeitar a que, em certos textos, lhe sejam corrigidas certas formas para as harmonizar com a norma vigente.
Coreto de Évora
-
Évora, Novembro de 2024
O Coreto de Évora está localizado no Jardim Público da cidade.
"Évora foi uma das primeiras cidades portuguesas a ter bandas fila...
Há 5 horas
28 comentários:
Texto extremamente sensato. Deixe-me ainda acrescentar, como brincadeira, que eu tenho um filho que se pela pela bola (de carne).
Excelente texto, parabéns.
Comentei este «post» aqui: https://www.facebook.com/fmvenancio
Parabéns pelo artigo. Do muito que já li sobre esta questão, pouca coisa lhe chega aos calcanhares.
Isto é puro malabirismo retórico. O AO, para começo de conversa, foi uma solução para um problema que ninguém tinha, senão os livreiros (o de quererem aumentar as vendas), e alguns académicos (pouco que fazer). De resto, veio trazer uma tremenda confusão e trapalhada a uma ortografia estabilizada. Pelo meio foi inventado um ror de palavras cujas consoantes são supostamente "mudas", quando articuladas de uma forma preguiçosa (tipo "pe'cebe" e "pugrama"), forma essa que O AO promoveu a linguagem "culta". A trapalhada é tanta que até agora ninguém conseguiu completar o VOCLP (prometido para breve, ao fim de mais de 20 anos), e os diversos dicionários elaborados em Portugal e no Brasil não batem certo uns com os outros. O AO90 é um episódio triste que os brasileiros se aprestam para liquidar.
Houvesse eu mais tempo livre que pudesse a ele dedicar, merecer-me-ia o seu texto vários comentários. Tempo faltando, farei uso de e referência a documentados e razoados estudos da autoria de outros.
Não tem o Vítor razão quando acusa a oposição ao AO/90 de primar mais pela emoção do que pela razão. A oposição ao AO/90 produziu basta argumentação razoada. Muitos foram os pareceres técnicos que dissecaram e expuseram as falhas do AO/90, a falta de fundamentação científica, a inconsistência e a perniciosidade de muitas das prescrições nele corporizadas. Encontrará um repositório dos pareceres mencionados em http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/aemiliano/AOLP90/CD-PR/index.html e em http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/aemiliano/AOLP90/. Adicionaria a estes documentos um outro estudo que lá não mora, da autoria de Francisco Miguel Valada e intitulado "DEMANDA, DERIVA, DESASTRE – Os três dês do Acordo Ortográfico" (Cfr. http://www.textiverso.com/index.php/controversias/46-des-acordo).
O pensamento expresso no parágrafo que se inicia com o trecho "E guardei para o fim o que mais estranho: a identificação de língua com ortografia." é contrariado pelo estado-da-arte dos estudos de Grafemática (e ciências subsidiárias). A título de ilustração deste ponto, e caso mo permita, recomendo-lhe a leitura de um pertinente artículo da autoria de António Emiliano, intitulado "O primado da escrita", ao qual poderá acceder via http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7679.pdf.
Grande parte, quiçá a maioria, das questões que o Vítor suscita encontram resposta em um parecer técnico da autoria de António Emiliano, intitulado "Uma reforma ortográfica inexplicável: comentário razoado dos fundamentos técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) — parecer, 2008 (accessível via http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/aemiliano/AOLP90/CD-PR/DOCUMENTOS/14-EMILIANO2008b.pdf).
Impressiona-me o quanto o Vítor parece negligenciar o alto valor da estabilidade ortográfica em sociedades grafocêntricas. Esta questão é analisada nos textos de António Emiliano que acima mencionei.
Caro Fernando Venâncio,
Muito obrigado pelo seu comentário no Facebook. Retomamos, ao fim de uns bons meses, a discussão que começámos no blogue de Helder Guégués.
Gaard pode também ser jardim, como diz, ou pátio, mas, nos apelidos (e há muitos terminados em -gaard, – ou gård, na grafia moderna), creio que se refere antes a quinta, herdade, propriedade rural, que é outro significado que a palavra tem. Ao que sei, mas não tenho fontes fiáveis, estes nomes são, na origem, de famílias proprietárias de alguma terra, mas sem títulos de nobreza.
Quanto ao resto:
Responde-me apenas a um ponto, apresentando a objeção, que eu lhe conheço e que apresentei, aliás, neste texto, pensando não só mas também em si e na nossa discussão anterior. Li com atenção o seu comentário e o artigo de Francisco Miguel Valada, que diz também, por outras palavras, a mesma coisa: com o desaparecimento das consoantes etimológicas não pronunciadas mas com valor diacrítico, passa a haver muito mais casos em que não é marcada a abertura da vogal átona (do [a], nos casos analisados, mas, claro, também de [ɛ]).
Como viu, reconheço no texto a pertinência do argumento. Mas não me parece satisfatória a argumentação meramente estatística: mesmo sem entrar na discussão do valor fonológico da oposição entre as vogais “abertas” e “fechadas” em posição átona (partamos do princípio que aceito que a tenha), a questão de base continua a ser: é importante marcar na escrita essa abertura ou não? Se o é, devemos arranjar maneira (já devíamos há muito ter arranjado maneira…) de a marcar também nos outros casos; se não é, o desaparecimento das consonantes diacríticas não tem importância. Não me parece que a questão se possa pôr assim: é importante em palavras de famílias extensas de e sem importância em palavras de famílias reduzidas. Eu, pelo menos, preferia uma lógica menos volúvel. Além disso, se é certo que o acordo aumenta o número de exceções à regra de que se marca graficamente a abertura das átonas e faz desaparecer regras sem exceções (pelo menos, a de que “todos os lemas em -acção, em que o c não tem valor de oclusiva velar, têm vogal pretónica aberta”), também cria uma nova regra sem exceções, como refiro: não se assinalam graficamente as vogais átonas abertas.
O outro problema que se põe, no caso de se aceitar a necessidade de marcar a abertura das vogais átonas abertas, é como marcar essa abertura. A solução das consoantes etimológicas tem uma grande vantagem, a de já existir, de estar difundida e ser aceite por muita gente, mas cria uma incoerência no sistema: antes de consoante, a letra c às vezes representa um som, outras vezes é um diacrítico. O AO tem a vantagem de introduzir uma regra sem exceções: a letra c representa sempre um som. Se acharmos que é necessário marcar a abertura das átonas, parece-me mais lógico (mas muito difícil de introduzir, a julgar pela paixão que tanta gente põe na recusa de qualquer alteração) propor outro diacrítico.
Para terminar a resposta aos seus argumentos contra a eliminação das consoantes com valor diacrítico, uma pergunta: posso deduzir dos seus argumentos que defende a eliminação das consoantes etimológicas sem valor diacrítico?
Finalmente, um outro pedido de esclarecimento: como devo interpretar que o AO90 “se arrisca a causar a maior desordem na escrita e na fala de gerações que aí vêm”? Acredita que a reforma ortográfica pode afetar a maneira de pronunciar as palavras ou que as pessoas escreverão mal certas palavras porque elas não se escrevem como elas as pronunciam? Se é isso, eu faço já no texto alguns comentários à ideia de que a grafia influencia a pronúncia. Evidentemente, há muito mais que se pode dizer sobre esse posição, mas não o quero fazer sem saber primeiro se não é abusiva a minha interpretação e, caso não o seja, o que pensa concretamente sobre a questão.
Muitos cumprimentos,
Vítor
Obrigado, Artur Costa.
Caro Vítor,
Obrigado pela sua resposta. Se alguma coisa os defensores deste AO (e digo "deste", pois eu advogaria uma AO bem mais ousado, como fiz publicamente já em 1984, mas não este...) deveriam reconhecer, é que as medidas tomadas não foram acompanhadas de uma ponderação minimamente exigível. Se algum conselho deveriam ter ouvido (e certamente o puderam ouvir) era que esta matéria era demasiado complexa para decisões tão irrevogáveis. Como saberá, não houve, nem no Brasil nem em Portugal, consultas aos especialistas no terreno.
Pergunta-me se acho que a abertura das pré-tónicas não indicadas por consoante etimológica (invadir, magnífico, república, etc) deveria ser objecto de sinal gráfico. Não vou a esse ponto. Aceito que o complexíssimo sistema pré-tónico português europeu não pode aspirar a soluções gráficas inteiramente satisfatórias. Mas essa era, exactamente, mais uma razão para ponderar tudo com calma, e não como - sabe-se - Casteleiro fez, de escambolhada, de que há testemunhos históricos (que num artigo de 2011 referi).
O resultado foi um pacote de decisões prepotente, que profundamente desagradou - sabe-se também - dentro da própria ACL. O reconhecimento público de que o AO foi resultado de procedimentos longe de desejáveis, esse reconhecimento faria, já, um bem imenso à cidadania.
Um abraço amigo.
Caro Fernando,
Obrigado pela sua pronta resposta. A minha pergunta era outra: era clara a sua posição quanto às consoantes com valor diacrítico e, depois deste último comentário, é agora também clara a sua posição sobre a necessidade de marcar graficamente a abertura das vogais átonas*; mas, quanto às consoantes etimológicas sem função de diacrítico que havia na norma anterior, como em actual, óptimo, projecto, etc., está ou não de acordo que se devem suprimir?
* Se tivermos em conta o português de Moçambique (talvez o da Angola também, não sei), a questão não é só das pré-tónicas. Acho muito mal que se encontre no dicionário lómue em vez de lómuè, por exemplo. Bom, também acho muito mal que se escreva Zimbabué, porque não é assim que se diz, e, seguindo a tradição (lógica!) do português da região, devia ser Zimbábuè, como é Guruè, Vila Ulônguè, Alto Molócuè, etc. Mas isto é um aparte...
Um abraço.
Caro Pedro da Silva - Coelho,
Obrigado pelo seu comentário e pelos links para os documentos, que lerei com todo o interesse, mal possa. Desenvolverei esta resposta depois de os ler.
Talvez a minha formulação não tenha sido a mais feliz, mas não quero que me compreenda mal: não duvido que haja uma oposição razoada ao A090, o que me parece claro é que a maior parte da oposição não o é. Pode ser azar meu, mas cruzo-me com muito mais frequência com uma oposição emotiva e pouco disposta a argumentar. Também já tenho apanhado mais emoção que racionalidade do outro lado, na defesa do AO90, mas, pelo menos nos círculos (virtuais, todos eles, porque vivo numa pequena ilha no Sul da Dinamarca) que frequento, é muito menos visível a defesa do AO90 que a sua oposição.
Note que eu também encontro falhas no AO90, como encontro falhas na norma anterior. A intenção deste texto não era discutir as falhas do AO90, mas sim argumentos contra o acordo que tenho encontrado frequentemente e que me parecem infundados.
Terei de reler com mais atenção os dois textos de António Emiliano que refere. O segundo, sei que já o li há uns anos (tenho uma cópia em no meu computador), mas já não me lembro do que diz (que não me convenceu completamente, isso parece certo...). Após uma leitura muito rápida do primeiro, fico com a sensação de que não trata a questão que me interessa neste texto de blogue, que é a pretensa influência da grafia na língua. Concretamente (concretamente!), que influência teve no português a reforma ortográfica republicana, por exemplo, que foi muitíssimo mais radical que o AO90?
Diz que eu negligencio "o alto valor da estabilidade ortográfica em sociedades grafocêntricas". Não tenho a certeza de perceber em que consiste ao certo esse valor. Significa que há vantagem em manter sempre inalteradas grafias que refletem uma mistura de etimologia com a pronúncia de épocas passadas, como no caso do inglês ou do francês? Que vantagens são essas no plano estritamente linguístico? Ou mesmo noutro plano... Talvez me possa dar exemplos de como se manifesta esse valor, para a discussão ser menos vaga.
Cumprimentos,
Vítor
Caro Vítor,
Pergunta-me se eu concordaria com a supressão, na grafia, de consoantes etimológicas sem valor diacrítico. Tratar-se-ia de consoantes (como «c» ou «p»)que, sendo actualmente escritas e não articuladas, também não fossem antecedidas de vogal pré-tónica fechada.
Tenho andado à busca de algum exemplo, mas não atino. Terei percebido mal a sua pergunta?
Um abraço.
Caro Venâncio,
Eu dei-lhe alguns exemplos: em actual, por exemplo, o c não abre a vogal átona nem se pronuncia; óptimo não pode ler-se de maneira diferente sem p; em projecto, insecto, etc., o c também não tem função diacrítica. O que defende nestes casos e porquê?
Vítor, os seus exemplos são de estatuto demasiado diferente: há o caso duma vogal pré-tónica (em «actual») e três casos de vogal TÓNICA («óptimo», «projecto», «insecto»). Trata-se de situações inteiramente díspares. O comentário também terá de sê-lo.
O caso de ACTUAL é paradigmático. Ainda pude testemunhar um «à» pré-tónico em «actual» e «actualmente». Hoje toda a família se "fechou": actual, actualmente, actualidade, actualizar, etc. O processo de fechamento do Português europeu no seu melhor.
Os outros três exemplos são estranhos, no contexto, pois trata-se, como dito, de vogais tónicas. A sua pergunta podia, pois, ser se eu aceitaria a eliminação do C e do P nas posições átonas dessas famílias: projectar, projecção, projectista, etc., insecticida, insectívoro, insectologia, etc.
Não, decerto que não. Porque o C tem aí nítida função diacrítica.
Deixo à parte o caso de «óptimo», com a família optimismo, optimista, optimizar, optimização, etc. Este caso de vogal pré-tónica é particular. Em Português europeu, esse O soará sempre «ò». Mas mesmo isto - por uma razão sistémica - não é motivo para eliminar a consoante etimológica.
Abraço.
Parece bem informado mas mostra ignorar a crase de vogais em «esquecer», «aquecer», &c., crase que sobrevive na fala contemporânea. Ignora-o ou escamoteia-o, a bem de seus argumentos. «Colação» e «ilação» são palavras eruditas, de uso pouco popular; se sujeitas à moldagem popular como dirá o povo o acto de colar com cola? -- «Colação», com 'a' fechado; e afinal trata-se a mesma palavra. // O que em nota diz de «comer» e da metafonia pré e pós tónica do 'o', variável em Portugal e Brasil, não explica a fala/escrita brasileira de (com vossa licença) «foder», que os brasileiros grafam popularmente «fuder» espelhando a sua fala. É palavra bem popular e comprovadamente aprendida só na oralidade;, confrontando com «comer» é um exemplo de como a escrita do vocabulário mais corrente pode tão subtilmente influir na pronúncia; serve de contra-argumento para o que Lindegaard diz de não haver certezas quanto à mudança de pronúncia «nacer > nascer»... // Ele há mais a dizer, e com maior cópia de argumentos, mas agora não tenho tempo...
Caro Fernando Venâncio,
O que os meus exemplos têm em comum é que em nenhum deles a consoante etimológica não pronunciada tem valor diacrítico. Era sobre esses casos a minha pergunta. É que, como a sua argumentação para defender a manutenção de consoantes não pronunciadas se centra na necessidade de haver marcas de abertura das átonas, queria saber o que defende quando não é esse o caso. E respondo-lhe ponto por ponto:
Não sei como se deve entender “o processo de fechamento do Português europeu no seu melhor”. O processo de “fechamento” das vogais átonas no português europeu (e não só, mas deixemos agora os outros) é um processo que dura há vários séculos – uma tendência forte e inalterável. Não tem nada a ver com a escrita e a escrita não a afeta.
Vi o seu texto de ontem no Facebook, em que refere o caso de actriz, magnífico, invadir e ganhar. Devo dizer-lhe que não tenho ideia de ter alguma vez ouvido as palavras actriz, magnífico e invadir pronunciadas com â (ganhar, sim, mas é uma pronúncia muito marginal, creio); mas é possível, claro. Diz ter consciência de que, mesmo em palavras com c pronunciado, como pactuar e bactéria, essa tendência se verifica e que os acordistas usam essas palavras como prova "de que o Acordo se há-de revelar, nessa matéria, inócuo". Eu não sou acordista em sentido estrito (defendo algumas partes do acordo, outras não), mas essas e dezenas de outras palavras servem-me apenas para argumentar que a escrita não afeta a pronúncia. Se afetasse, se pudesse ter algum papel de travão das mudanças, o que se teria passado em línguas que conservam a ortografia de há muitos séculos? Atual é apenas outro de muitos desses casos. Não duvido que tenha conhecido a palavra com a pronúncia aberta do a átono, mas, no meu dialeto (sou de Lisboa), a palavra é pronunciada com â fechado há muito tempo. A minha avó com certeza que nunca pronunciou aberto esse a. Mas enfim, isto é um pormenor que, interessante que possa ser, não altera em nada o fundamental: a tendência da redução das vogais átonas é uma tendência antiga e forte que se continua a verificar, com ou sem AO90. E não me chegou a responder: acha que se deve manter o c de actual (e restante família) ou não?
Se achar que não, presumo que seja “por uma razão sistémica”, como o p de ótimo que, por o /O/ ser silábico, não precisa de marca nenhuma de abertura. Só que eu não sei o que quer dizer com "razão sistémica". Nestes dois casos, parece ser a etimologia a única justificação para conservar as consoantes – mas, o espírito da norma que defende é que a etimologia não deve servir de justificação a uma opção gráfica, não é? Senão, não tinham desaparecido tantas consoantes etimológicas sem função na escrita – como o p de óptimo e o c de actual…
Quanto a projeto e inseto, eu compreendo que, defendendo, a necessidade de um c diacrítico nas outras palavras da família em que [ʒɛ] e [sɛ] não são sílaba tónica, queira manter o c naquelas em que o são, por uma questão de harmonização da grafia de todas as palavras da família. Mas não pode dizer que os cc têm em projecto e insecto "nítida função diacrítica".
Abraço.
Caro Bic Laranja,
Muito obrigado pelo seu comentário.
Eu não disse nada sobre as razões históricas para a pronúncia aberta das átonas de aquecer e esquecer. Não ignoro a crase nessas e noutras palavras, mas a razão da abertura é irrelevante para o que afirmo: essas palavras não têm, na sua escrita atual, marcas gráficas da abertura das vogais átonas e, se isso não é problemático, também não devia ser problemática a falta de marca dessa abertura noutras palavras (pelo desaparecimento das consoantes etimológicas não pronunciadas).
Também sei que colação vem de cola. Não conheço a colação popular que refere, mas continua a não ser isso que está em discussão: o que eu afirmo é que, mesmo as palavras eruditas, que, por o serem, se poderia pensar que são aprendidas sobretudo através da escrita, não parecem sê-lo, a julgar pela reprodução de pronúncias que não se podem inferir da forma escrita – e isso explica-se pela exposição forçosa dos falantes à forma oral mesmo dessas palavras.
Quanto a fuder, eu conheço a pronúncia e a grafia, e já me tenho interrogado sobre elas, mas a norma brasileira, nisso estará de acordo comigo, é a pronúncia “aberta” ([o] ou [ɔ]) dos oo pretónicos. Talvez também [u] nalgumas variantes dialetais, não sei, porque não conheço o português do Brasil em pormenor, mas não é a pronúncia mais comum. Agora, eu não compreendo o seu argumento. Não se importa de o formular de outra maneira?
“[Fuder] é palavra bem popular e comprovadamente aprendida só na oralidade; confrontando com «comer» é um exemplo de como a escrita do vocabulário mais corrente pode tão subtilmente influir na pronúncia”. Não compreendo. Então se escrevem como pronunciam, escreverem como pronunciam é exemplo de como a escrita influi na pronúncia? Parece que está antes a falar na influência da pronúncia na escrita. Essa existe, sem dúvida: é a causa da maior parte dos erros ortográficos.
Também lhe peço para desenvolver a sua ideia de que isso “ serve de contra-argumento para o que [eu digo] de não haver certezas quanto à mudança de pronúncia «nacer > nascer»”, porque também não vejo onde quer chegar.
Cumprimentos, ´
Vítor
Pois bem. Não ignorava a crase das vogais átonas. Omitiu-a por achá-la irrelevante na questão ortográfica (parece-me capcioso, mas adiante).
É indesmentível que a prosódia nos casos de crase de vogais se estriba numa oralidade secular. Mantêm-se assim vivas no falar há 500, 600 (antes foram pronunciadas dobradas, como saberá), mas nunca em tanto tempo a aquisição do vocabulário foi tanta pela escrita como agora. Que sucederá doravante, estribando-se numa grafia avessa a diacríticos? -- Dúvida importante! -- Importantíssima, pois que, menos de duvidar, é a omnipresença da metafonia no português; provam-no diariamente quantos portugueses se acham aí impelidos a grafar «sózinho», «pézinho» ou a pôr acentos nas subtónicas dos advérbios de modo). -- Diz-se aqui dos casos de «actual» e «ganhar» (< gaanhar) e o prof. F. Venâncio dá-lhe aí outros: a força daquele fenómeno da metafonia é da natureza do português e é tal que o estribo etimológico, ou a memória da crase, aqui ou ali se esbatem e, cá temos nós o fechamento de vogal átona (acrescento que noto o fenómeno no dialecto do Brasil, embora atenuado, v.g. em «adôção», «esquêcer», «esquicido»...) -- Que fazer? Descaso e enveredar estultamente por desmembrar famílias de palavras?
Se lhe parece...
O caso porém é muito complexo, de modo que Gonçalves Viana e Rebelo Gonçalves (só para citar os mais falados) o trataram com pinças, ponderado o que sabiam (e era muito), e não abdicando das consoantes de valor diacrítico.
Em contrapartida, o A.O. de 1990 é leviano. Quem no fez, sabendo tudo isto, há-de ter-se no mínimo por criminoso.
«Colação», se derivado de «cola/colar» pelo povo não deixará de se ouvir «ku-lâ-ssão».
Como fig. «vir a propósito», papagueado assaz nas TV «como trazer à ku-lá-ssão», cheira-me a extravagância de moda recente; a 1.ª ed. do Aulete dá a trascrição fonética sem o «a» aberto. A derivação por via erudita do lat. «collatio» poderia justificar a sua abertura melhor do que as modas, mas não me fio... Todavia não sei, mas nem por isso vou querer agora impor na palavra a prosódia de 1881...
«Fuder» só vem ao caso por antítese de «cômer». O argumento é «comer», vocábulo inúmeras vezes aprendido apoiado na escrita (ao contrário de «foder»), de padres missionários (tantos de origem não portuguesa, cantando o português a partir de textos), por gentios do Brasil e da África que de si falavam outras línguas. Daqui, desta particular osmose da escrita com a oralidade, do caldo de transmissão do idioma, como digo, a gentios, quanto do sotaque não é reflexo da palavra escrita? E, concomitantemente, quanta da prosódia portuguesa (como em «nascer < nacer») não é reflexo do mesmo, da escrita? E note que lhe falo de eras em que a escrita não tinha o impacto de hoje na aquisição de vocabulário.
Torno ao princípio; o A.O. de 1990 é leviano. Não faz caso da natureza funda do idioma português (no que roça o crminoso) nem pondera circunstâncias do tempo presente, nenhuma, além de despropositado (por sacrossanto) mercantilismo. -- Deve ser esta a religião que nos salvará o alma portuguesa no Éden global, deve... Que outra razão haveria...?
E por aqui me fico.
Caro Bic Laranja,
Tenho de insistir no que disse, porque insiste em comentar outra coisa:
Todas as formas atuais, em todas as línguas, têm um história que as justifica. No português atual, muitas vogais pretónicas que não seguem a regra geral de redução das vogais átonas resultam da crase de vogais duplas após a queda de uma consoante intervocálica. É esse o caso de esquecer e de aquecer, padeiro, caveira, etc., etc. Pois bem, o meu argumento não tem nada a ver com isto. O que eu digo no texto é que i) estas palavras já não tinham, antes do AO90, uma marca gráfica da abertura da vogal átona; que ii) as pessoas que acham que é importante marcar graficamente a abertura das vogais átonas não defenderam que houvesse algum tipo de marcação da abertura desviante destas vogais; e que iii) a falta de marca gráfica da abertura destas vogais átonas não levou a que elas se fechassem – que é a previsão que naturalmente resulta do postulado de uma pretensa influência da grafia na escrita. Mais claro não posso ser.
Para este argumento, é irrelevante, terá de concordar, a razão pela qual estas vogais são abertas: o que está em causa é a coerência da proposta de que é necessário marcar graficamente a abertura destas vogais. Para quem defende a manutenção da grafia anterior, às vezes é, às vezes não, normalmente sem argumentos. Não é sempre assim: há algumas pessoas que apresentam argumentos pertinentes, como Fernando Venâncio e Francisco Miguel Valada. Estas pessoas têm, por um lado, i) uma argumentação de caráter essencialmente conservador (aqui sem conotações políticas): a antiga grafia tinha poucas exceções à regra de que só são fechadas as vogais pretónicas não seguidas de consoante com valor diacrítico e não vale a pena mexer nessas exceções; e, por outro, pelo menos na resposta de Fernando Venâncio ao meu texto, ii) é absolutamente necessário marcar a abertura das pretónicas que fazem parte de famílias grandes de palavras com essa característica, mas menos relevante em famílias pequenas (embora, depois, em resposta à pergunta que lhe fiz diretamente, admita que, por uma “razão sistémica” que ainda não definiu, acha que devam, afinal, ser conservadas todas as consoantes etimológicas não pronunciadas, quer tenham ou não função diacrítica).
Para mim, o problema é que não há uma posição clara quanto à necessidade de marcar graficamente a abertura das vogais átonas, ou, caso se defenda que nem todas são de marcar, um critério claro de quais se devem marcar.
Se bem compreendo, a si interessa-lhe mais a etimologia. É certo que a etimologia é um critério (em geral) claro, mas o problema é que, nesse caso, não é só o AO90 que tem de recusar, mas também a norma anterior e também uma parte da norma a anterior à reforma de 1911. Eu sou contra uma ortografia de base etimológica, mas isso é outra conversa, que, por uma questão de organização da discussão, aqui não tive nem quero agora começar. Podemos tê-la separadamente, se quiser.
[Continuo no comentário seguinte]
[Continuação do comentário anterior]
Diz que "nunca em tanto tempo a aquisição do vocabulário foi tanta pela escrita como agora" e interroga-se: "Que sucederá doravante, estribando-se numa grafia avessa a diacríticos?" Mas eu duvido que haja uma percentagem relevante do léxico aprendido pela escrita e que, mesmo nos casos em que o primeiro contacto com um vocábulo se faz através da escrita, não haja exposição à sua produção na oralidade.
Para testar o valor de verdade de qualquer postulado sobre observáveis, computam-se as consequências desse postulado (o que deve poder observar-se na realidade se o postulado tiver valor de verdade) e confronta-se com observações da realidade. Ora as previsões resultantes do postulado “A escrita influencia a pronúncia da língua materna” não se observam na realidade. A ser verdade, esse postulado prevê, por exemplo (não quero, nem de longe ser exaustivo) que quando a forma fonológica não se pode deduzir da forma gráfica, aquela tende a alterar-se para corresponder ao que pode deduzir-se da segunda. É isto que faz algumas pessoas terem medo do que acontecerá com a supressão de diacríticos. Mas a análise das formas já existentes sem marcas diacríticas infirma claramente este postulado. O que essas formas mostram é que, como seria de prever, a aquisição da forma fonológica de itens lexicais da língua materna se faz através da sua produção oral, mesmo em itens que ocorrem raramente. Do mesmo postulado resultam também previsões estranhas, impossíveis de provar, se não completamente infirmadas pela observação do mundo real – por exemplo, que grafias conservadoras tenham um efeito de travão na mudança fonética.
O caso do português do Brasil é outro: o sistema vocálico do português brasileiro é, no geral, semelhante a uma fase anterior do português europeu, em que a redução é já um facto nas pretónicas, mas não se deu ainda, ou só incompletamente, nas pretónicas. Constato alguma instabilidade, mas não a sei descrever, porque nunca estudei o assunto. Não sei se há alguma tendência de evolução ou se a pronúncia das pretónicas se fixou e essa instabilidade (por exemplo, na alternância de [i] e [e] na pronúncia de certos ee pretónicos) é de natureza apenas dialetal mas estabilizada.
Se colação, pronunciado [kulasãw], lhe parece recente, isso seria um indício de um fenómeno raro: uma abertura de uma pretónica quando a tendência é de se fecharem.
No Brasil, comer não é aprendido na escrita, isso simplesmente não é possível. Aliás, acho essa ideia mesmo muito estranha. Há séculos que o português é a língua materna da quase totalidade dos brasileiros e comer é uma palavra que se aprende sempre, mas sempre, no lar. Como disse acima, a pronúncia das vogais pretónicas do português do Brasil reflete essencialmente uma fase anterior da evolução do vocalismo do português.
Em África, a situação é diferente e não vale a pena sequer recuar ao tempo em que as escolas das missões eram a única possibilidade de escolarização para não-assimilados, porque é ingénuo pensar que houve alguma continuidade, em termos da transmissão do português falado em África, entre os tempos anteriores à independência e agora. Como referi no texto, não tenho nenhuma dúvida de que, a par da influência da estrutura das línguas maternas, a grafia tenha influência na pronúncia das línguas segundas e estrangeiras. Ora é em África, precisamente, em falantes do português como língua segunda que se ouve aquilo que o postulado da influência da grafia na pronúncia prevê!, como esquecer pronunciado [ʃkser], por exemplo.
Não me pronuncio agora sobre as suas restantes considerações, porque isso exigiria outro texto. O texto que escrevi não foi uma defesa do AO90 no seu todo, foi antes, creio tê-lo deixado claro, sobre o que considero serem incoerências nalgumas críticas que lhe são feitas - ao nível apenas da ortografia.
Melhores cumprimentos,
Vítor
Em "actual" para que serve o "c"?
Serve para o mesmo que o "k" em know: contém informação, informação que é transmitida ao leitor.
Seria interessante conhecer os estudos dos processos cognitivos da escrita latu sensu - que os governos envolvidos terão, certamente, mandado executar, antes da assinatura do tratado. É que, hoje em dia, é neste campo da dicotomia escrita/leitura que a questão se coloca em termos de países desenvolvidos (algo como a "aproximação da escrita à oralidade" é uma questão com mera relevância histórica ou etnográfica - se resolverem estudar os sistemas de crenças linguísticas em países com baixa literacia). De facto, é assunto pacífico que "Visible language, as I have already pointed out, is not just a derivative version or imperfect reflection of spoken language. Language is more than speech and has many more aspects than sound." A questão é afinal que "This study taught us that the ideal orthography is different if seen from the point of view of the reader, and the writer." Prof. Uta Frith
Tão longe.
Caro anónimo,
Pelos vistos, o c de actual serve para menos que o k de know, porque know e now pronunciam-se de forma diferente, mas não se vê mesmo em que podem diferir, na pronúncia, atual de actual. A única informação que actual transmite ao leitor que atual não transmite é de caráter etimológico. Ora, como referi, desde a reforma de 1911 que a grafia do português deixou de se centrar na etimologia para se tornar uma ortografia fonológica (não fonética, insisto, fonológica). Os processos cognitivos de escrita lato sensu são os mesmos para todas as ortografias, com formas mais ou menos conservadoras, com mais ou menos letras pronunciadas, com mais ou menos diacríticos, pelo que não se compreende como isso pode ser um argumento a favor seja lá de que grafia for ou contra seja lá que grafia for. Nos países desenvolvidos, se vir bem, as lógicas ortográficas variam mesmo muito: que têm em comum a lógica ortográfica do inglês, do finlandês, do castelhano, do sueco, do francês, do dinamarquês, etc.? Duvido que consiga definir uma base comum a todas elas. Mas diga-me, como se aplicam as ideias de Uta Frith a línguas outras que não o inglês em que a escrita é bastante, ou mesmo muito, fonética (finlandês, castelhano, italiano, por exemplo)? Essas escritas funcionam mal porque são fonéticas? Acho que não. melhor, tenho a certeza que não. Tanto quanto eu sei, o que atualmente se faz em pelo menos alguns países desenvolvidos que têm uma ortografia com muitas letras não pronunciadas é justamente usar na alfabetização uma escrita mais fonética (chama-se aqui na Dinamarca børnestavning, escrita de criança), precisamente porque a investigação mostra que as crianças se sentem assim mais motivadas para escrever e têm depois mais facilidade em aprender as formas mais ilógicas da grafia oficial. O texto de Uta Frith que cita tem 32 anos, e creio que hoje em dia se acredita mais numa mistura equilibrada do método holístico com o método sequencial, mas pode ser que eu tenha uma visão distorcida pelas escolas e professores que conheço.
Melhores cumprimentos,
Vítor
Caro Pedro Silva – Coelho,
Como prometido, eis o desenvolvimento da resposta que lhe dei, após leitura atenta do texto ”O primado da escrita” de António Emiliano.
Concordo com tudo o que é afirmado na secção 2. e com uma parte do que é afirmado nas secções seguintes.
Note que nada no artigo põe em causa a minha definição de língua nem o que eu disse sobre a identificação abusiva de língua com ortografia. O texto é sobre a relação entre a escrita e a fala, ou a escrituralidade e a oralidade, se se preferir, e trata-as, como deve, como duas formas essencialmente diferentes de produção de enunciados numa determinada língua. Nada do que eu afirmei implica o contrário. Aliás, na Introdução, António Emiliano deixa claro que, do lado dos opositores, ”tópicos como 1) a insistência nos estragos causados à língua e cultura portuguesas por causa da supressão das chamadas “consoantes mudas”, as quais materializariam a memória da origem latina da língua e o parentesco com outras línguas, ou 2) a oposição irredutível à reforma por razões de bairrismo nacionalista, também denotam fraca compreensão do que é uma ortografia no contexto alargado da comunicação linguística escrita.” Como vê, ele parece concordar comigo nalguns aspetos! Por muito que isso possa parecer estranho a algumas pessoas, trata-se de princípios simples do saber linguístico. Eu digo, não sei se reparou, que não vem mal nenhum ao mundo de nenhuma ortografia e penso que deixo claro que há bons argumentos contra o AO. O meu texto não é sobre isso; é sobre o que considero serem incoerências nalgumas críticas, porque, visto que, segundo creio, derivam essencialmente de uma recusa emocional e lançam, por isso, mão de todos os argumentos, mesmo que contraditórios entre eles. (Volto à questão da emotividade no fim deste comentário.)
Tirando uma generalização que me parece estranha (“… sem literacia … [n]ão há Humanidade como a entendemos hoje”; prefiro pensar que “a literacia é um competência a que toda a Humanidade, como a entendemos hoje, deveria ter acesso”), estou de acordo não só com a descrição das diferenças entre o discurso oral e o discurso escrito, nos planos ontológico, cognitivo e cultural, e não tenho dúvidas de que, ao contrário do que pretende algum etno-romantismo que às vezes se encontra, as sociedades com escrita têm vantagens diversas sobre as as sociedades sem escrita. Creio, alias, que é só no sentido de vantagem se deve entender a escolha das palavras primado e primazia, uma vez que o autor realça sobretudo, e muito bem, a diferença irreconciliável entre oralidade e escrituralidade e nota que tanto na História como no desenvolvimento individual, aquela precede esta. Poderia, talvez, acrescentar-se um raciocínio de vetor contrário e destacar que é provável que só quando estava constituída uma determinada forma de organização social a escrita teve condições para aparecer, que é também uma perspetiva interessante (que vantagens (?) de umas sociedades em relação às outras, em termos de desenvolvimento, preexistiram à escrita e à tecnologia e as motivaram?), mas nem considero a ausência dessa reflexão uma fraqueza do texto, que obviamente não tem de ser tão abrangente.
(continua no próximo comentário)
(continuação do comentário anterior)
O que considero menos positivo no artigo é o seguinte:
Há pelo menos uma relação causal que me parece claramente forçada: do caráter essencialmente fonológico da ortografia portuguesa (que, insisto, é também o que digo que define tanto a ortografia pré- como pós-AO90) não se pode inferir a necessidade de preservar a grafia anterior. Aliás, nem sequer pode inferir-se a minha posição de que é melhor avançar no sentido de tornar mais coerente essa lógica. De facto, uma parte do que tem sido aqui discutido é até que ponto algumas alterações introduzidas pelo AO90 se encaixam ou não nessa lógica...
O texto explora questões relativamente laterais (pelo menos, para a discussão que aqui estamos a ter: toda a secção 5), mas, de repente, afirma com demasiada brevidade e sem apresentar provas, que “a preservação estável do acervo textual da comunidade ao longo do tempo requer, portanto, estabilidade ortográfica, logo, conservadorismo grafémico” e a sequência “Sem ortografia estável não há grafolecto estável. Sem grafolecto não há sociedade portuguesa viável” é literalmente injustificada, no sentido em que não é apresentada para ela nenhuma justificação. Ora não devia ser difícil, se as alterações na ortografia têm o impacto afirmado, mostrar concretamente como esse impacto se manifestou, por exemplo, com a reforma de 1911, que foi muito mais radical que o AO90 - ou com outra reforma ortográfica, das muitas que tem havido no mundo... O que é que, da sociedade portuguesa foi, se não tornado inviável, pelo menos perturbado pela desestabilização na ortografia provocada pela introdução da norma que o Pedro Silva – Coelho defende? António Emiliano daria outra força à sua argumentação se apontasse resultados concretos da alguma falta de estabilidade ortográfica para provar a sua tese, e não o faz. É tudo extremamente vago e é difícil, sem saber que efeitos concretos são esses, saber se eles são ou não uma realidade...
Já agora, deixe-me fazer uma referência à crítica a Carlos Reis: concordo completamente, as afirmações de Carlos Reis são obviamente criticáveis. Mas não deixa de ser curioso que elas espelhem, em grande medida uma conceção da redução vocálica como degradação que, curiosamente, parecem partilhar Fernando Venâncio e Bic Laranja nas afirmações que aqui fizeram. É, pois, preciso lembrar que, como diz e muito bem António Emiliano, “não há línguas mais evoluídas nem línguas mais primitivas, línguas mais simples ou línguas mais complexas, línguas intrinsecamente melhores ou piores. Não há mudanças linguísticas más nem boas, como não há sistemas vocálicos bons, maus, vantajosos ou desvantajosos. Todas as línguas mudam a cada momento e de forma sistémica: não evoluem nem involuem, e não melhoram nem pioram. “Reabrir” as vogais fechadas do português, admitindo que tal seria possível e vantajoso, implicaria obrigar os falantes europeus a usar um sistema fonológico arcaico que lhes seria totalmente estranho.” Evidentemente, o que Emiliano diz de uma (perfeitamente irrealista) reabertura das vogais pode também dizer-se de uma tentativa de retardamento da redução vocálica.
E é tudo por agora. Deixo de lado várias questões interessantes (por exemplo, o papel do Estado ou de certas instituições na definição de normas ortográficas, o caráter legal ou não dessa norma....), mas não quero discutir todas as questões relacionadas com a ortografia ao mesmo tempo.
Um ultimo reparo: Não me parece bem que se diga de alguém que não se conhece de lado nenhum que é um pândego, se não se usar a palavra com a conotação positiva que também pode ter – e que não é, obviamente, a que o Pedro Silva – Coelho lhe dá quando me chama pândego na sua cronologia do Facebook. Mas enfim, há obviamente opiniões diferentes sobre educação e respeito, isso é certo. Eu continuo a achar, sabe?, que se discute esta questão de forma demasiado emotiva. É que só isso pode explicar – embora não desculpe, claro está – tantos atropelos à civilidade nesta discussão.
Melhores cumprimentos,
Vítor
As descobertas das ciências cognitivas, – não são meras “ideias” – de que a Prof. Uta Frith se serve, permitem dizer que uma ortografia mais fonética levanta problemas na leitura – em qualquer língua.
Uma ortografia ideal será, não a que, como se pensava há 250 anos, “aproximasse a ortografia da oralidade” (sic), mas, sim, a que melhor concilie das necessidades da escrita e da leitura.
(De facto, estão ultrapassadíssimas – tendo mero interesse para a história das ideias - as crenças e superstições que reduzem a ortografia a um transcrição fonética, numa exaltação da oralidade, típica do período pré-romântico).
Mera curiosidade
Escreve nas resposta ao meu comentário: “formas mais ilógicas da grafia”. Seria interessante”
Seria interessante que explicasse o que é uma forma “lógica” de grafia, dado que as formas gráficas não são argumentos.
Philosofia é uma forma menos “lógica” do que filosofia? E, exactamente, como e porquê?
“Ótica”, é uma forma mais “lógica” do que Óptica?
Se grafema OP esclarece de imediato, o leitor sobre qual é o assunto da leitura, a ponto de o Prof. Anselmo Soares - aquando das espantosas declarações na Assembleia da República em que revelou as ameaças do governo à Academia das Ciências de Lisboa (em nome da lógica linguística, certamente!) - ter afirmado que tal grafema não seria destruído em caso de entrada em vigor do acordo por ser necessário para se distinguir de ótico (sendo que tanto ópt como oto são exemplos de grafias etimológicas de origem grega...)
Certamente que tanto as academias e universidades portuguesas e brasileiras se terão já pronunciado sobre tais questões da leitura/escrita – que como bem diz, são descobertas já acessíveis em 1990 e que não deixariam de ser do perfeito conhecimento dos “negociadores” do acordo) nomeadamente as que se referem aos problemas e figurarão decerto nas actas dos trabalhos, como é norma nas questões sérias, entre gente séria e nos estados de direito.
Se conhecer tais actas, agradeço que informe onde se podem consultar.
Caro anónimo (não critico de modo algum a opção do anonimato, mas um pseudónimo, nem que com uma letra apenas, facilitaria a discussão, quando há tantos comentários anónimos)…
Diz “As descobertas das ciências cognitivas (…) permitem dizer que uma ortografia mais fonética levanta problemas na leitura – em qualquer língua.” Decorrem deste postulado duas coisas estranhas: que línguas como o italiano ou o finlandês, por exemplo, escritos nas suas grafias atuais, são mais difíceis de ler que línguas como o francês e o dinamarquês como agora se escrevem; e que, por isso, conviria reformar, por exemplo, o italiano ou o finlandês introduzindo-lhe irregularidades na escrita para lhes tornar mais fácil a leitura. Da segunda proposição, creio que será impossível encontrar alguma proposta, mas pode documentar a primeira? Não o creio.
Receio bem que não haja, sobre a questão, o consenso que diz haver. Há apenas ideias diferentes, ou teorias, se preferir. Apesar de não ser assunto que tenha acompanhado de perto, já vi muitos estudos que dizem demonstrar exatamente o contrário do que o caro anónimo defende. Lembro-me, por exemplo, de um estudo comparativo da aprendizagem da leitura em línguas europeias, em que se concluía que havia uma relação entre a ortografia mais fonológica e a facilidade de leitura: das línguas comparadas, o finlandês, cuja ortografia reflete mais diretamente a estrutura fonológica, era a mais fácil de ler; e o inglês, cuja ortografia é a que menos diretamente reflete o sistema fonológico, era a mais difícil de ler. Não tenho o trabalho à mão, mas posso indicar-lhe um do mesmo autor, uns anos mais antigo que o estudo comparativo, em que são desenvolvidas as mesmas ideias e onde pode encontrar biografia que talvez queira explorar: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1348/000712603321661859/pdf Há até peritos em dislexia que afirmam, já o vi, que as relações grafema-fonema influem nessa perturbação (!).
Além disso, o que é muito estranho nesse argumento de que as ortografias mais fonéticas se leem pior é que a maior parte das grafias são em grande parte “fonéticas”, apenas refletindo a pronúncia de estados anteriores da língua (e, por isso, a ortografia “etimológica” é, em parte, um mito). Pale ou light em inglês são formas fonéticas, mas de quando pale se pronunciava [‘pale] e light se pronunciava [‘lixt]… Quando as formas evoluíram de forma sistemática, isto não é problema de maior, mas quando uma sequência gráfica começa a corresponder a muitas sequências fonológicas, pode bem compreender-se que as pessoas tenham começado a escrever hiccup em vez de hiccough, sinceramente.
Diz que “estão ultrapassadíssimas as crenças e superstições que reduzem a ortografia a um transcrição fonética, numa exaltação da oralidade”. Acho que ninguém aqui propôs isso. Deixei claro, alias, que a lógica da ortografia portuguesa não é fonética, nem na sua versão pré- nem pós acordo, mas sim fonológica. A oralidade não é pois, para aqui chamada, a não ser como instância em que se produzem os observáveis de que se pode deduzir a estrutura fonológica. Também disse que não vem nenhum mal ao mundo de nenhuma grafia. O que eu disse é que supressão de consoantes etimológicas i) não introduz nenhuma incoerência no sistema que não existisse anteriormente e 2) é um avanço, se bem que incompleto, no sentido de tornar mais coerente essa lógica fonológica.
(Continua no comentário seguinte)
(Continuação do comentário anterior)
Sobre formas lógicas: é certo que formas gráficas não são argumentos, mas a expressão lógico não se aplica só a argumentos. De um sistema, diz-se muitas vezes que é lógico no sentido de que a sua estrutura se pode inferir com facilidade da sua observação. Como previsível e imprevisível são noções graduáveis, um sistema pode ser, neste sentido, mais lógico ou menos lógico. Observando a forma philosofia, não se pode deduzir que as sequência ph e f referem uma mesma entidade do sistema. Esse problema não se põe na palavra philosophia, que é a forma portuguesa antiga, mas põe-se se não nos referirmos apenas à forma philosophia isoladamente, mas ao uso de ph para escrever o fonema /F/ em geral. Podia ir mais longo, porque há outro problema para se deduzir a lógica do sistema: os elementos p e h existem isoladamente e a sua soma não é a soma dos seus valores isolados; nesse sentido, ch é uma forma menos lógica que x de escrever o fonema /ʃ/ (não deve daqui, quero deixar claro, inferir seja lá o que for em termos de propostas ortográficas, longe de mim tal ideia!). O que decorre desta situação é a hesitação e o erro por parte do escrevente. Como diz Uta Frith, para quem escreve, o ideal é a correspondência som-letra, para não de ter de optar por uma de várias grafias disponíveis. Há casos em que a falta de lógica, neste sentido de previsibilidade de funcionamento do sistema, é tão grande que se torna avassaladora. Por exemplo, em francês, uma sequência como -o- e uma sequência como -heaults- correspondem ao mesmo fonema. Para ler, nunca há problema (mas, em inglês, às vezes há); e para escrever? A verdade é que, numa língua como o francês, em que podem às vezes corresponder dezenas de grafias a um fonema, as pessoas dão (naturalmente) muitos, mas muitos erros na escrita… Curiosamente, no caso do ph, é de um problema de transcrição de um alfabeto para o outro que se trata, porque φ é uma letra apenas :) (Deixo-lhe aqui, apenas como curiosidade, um bonito texto de Anatoly Liberman que encontrei ontem e que espero que lhe dê, além de prazer, matéria de reflexão sobre a lógica de uma ortografia – ou a sua ausência http://blog.oup.com/2013/05/oddest-english-spellings-part-20-letter-y/ )
Reconheço que a questão de ótico me parece problemática e, por enquanto, é o que faço, porque não me debrucei ainda sobre ela. Não sei até que ponto se poderão de facto confundir formas, é natural que sim. Voltarei a isto depois de ter analisado a questão. O que lhe posso dizer de imediato é que nunca me passou pela cabeça que alguma reforma se faça sem problemas e sem perdas, e a eliminação na escritas das consoantes etimológicas não pronunciadas não pode também deixar de causar um ou outro problema.
Quanto ao resto, insisto no que já disse: não sou exatamente um defensor do acordo, nem do seu processo de aprovação, que aliás desconheço. A intenção e o âmbito deste meu texto são bem mais restritos e já aqui esclareci que quis apenas dar a minha opinião sobre o que considero serem incoerências nas críticas a aspetos específicos – estritamente ortográficos, não processuais, políticos, etc. – do AO90.
Melhores cumprimentos,
Vítor
Errata ao último comentário meu: acabo de encontrar referências ao estudo comparativo da aprendizagem da leitura em línguas europeias e, ao contrário do que digo, não é posterior ao artigo para que dou um link, mas sim anterior. Peço desculpa.Isto não tem, porém, quaisquer implicações na minha argumentação.
Enviar um comentário