22/12/23

É guichê com ê ou é guiché com é?

[Neste texto, para facilitar a leitura a quem não esteja habituado ao alfabeto fonético, transcrevo  os sons [e] e [ɛ] (de e , respetivamente) e com a sua escrita em português standard, mas entre parênteses retos, [ê] e [é].] 

Em português europeu, tirando algumas raras exceções dialetais, estes dois sons não se confundem nunca em final absoluto de palavra: [ê] é [ê] e [é] é [é]. Em francês, existe também, em princípio, uma distinção entre estes dois sons. e também em final de palavra: em francês moderno standard — na pronúncia apresentada nos dicionários, por exemplo — o som [ê] em final de palavra pode escrever-se com -ai, -é, -ée, -er ou -ez e o som [é] pode escrever-se com -et (excetuando a palavra et), -ais e -ait. Há, porém, uma grande variação dialetal na pronúncia destes sons e, como tem frequentemente sido notado, a distinção entre os dois sons é, em geral, cada vez mais anulada, também em posição final. Sobretudo nos falares meridionais — mas não só — os dois sons são reduzidos a [ê].      

Achei que seria engraçado ver como é que passaram ao português as palavras francesas tomadas ao francês que terminam nestes dois sons. 

Pelo que constato à minha volta e pelo que vi em dois dicionários em linha, o da Porto Editora e o da Academia de Ciências de Lisboa, não há sempre uma pronúncia standardizada de todos estes empréstimos, nem quando «naturalizados» (a bold neste texto), nem quando usados em português como palavras estrangeiras[1](a bold e itálico). Para já, constata-se que estas palavras nem sempre se escrevem e dizem em português com o som standard do francês original.

Das palavras pronunciadas com [é] final em francês standard, há algumas que mantêm esse som em português: balé, bidé, boné, cabaré, cabriolé ou cabriolet, caché, carné, chalé, croché ou crochet, estaminé, gilé, gobelé ou gobelet, godé, guiché e relé; e outras que passaram a [ê]: brevê, buquê, bufê, gourmet e parquê ou parquet[2]. É de notar que os dicionários acolhem também as alternativas cachê, godê e guichê e que a formas brasileiras de bidé, carné e gilé são bidê, carnê e gilê.

Quanto às outras, que têm originalmente um [ê] final em francês, mantêm em português esse som as palavras ateliê ou atelier; attaché, blasé, cloisonné, cuchê ou couché, crupiê ou croupier, degradê ou dégradé, démodé, dossiê ou dossier, ecartê, evasê ou évasé, foyer, habitué(e), lamê, mêlée, négligé, palmiê ou palmier, panachê ou panaché, patê, pincenê ou pince-nez, rentrée, tabliê ou tablier— e clichê, consomê, cupê, rosê e suflê, de que estão também registadas as formas escritas e pronunciadas com [é], cliché, consomé, cupé, rosé e suflé; e passaram a [é]: cachené[3], canapé, fricassé, galé, glacé, ié-ié, libré, maré, matiné ou matinée, pilé, puré, soirée e turné ou tournée. De notar que as formas brasileiras de cachené, fricassé, glacé, matiné e turné conservam o som francês: cachenê, fricassê, glacê, matinê e turnê.  

Devo ter esquecido umas quantas palavras. Outras, como boldrié ou oboé, prefiro não as incluir nestas listas, porque vêm de formas francesas já desaparecidas[4]. Mas agora, o mais difícil: como se organiza esta confusão? Há alguma coisa na fonética das palavras que justifique a manutenção ou alteração da vogal original? Ou é a época em que se faz o empréstimo que o determina? Bom, não há conclusão ou, pelo menos, não sou capaz de lá chegar. Pode constatar-se que, apesar da real oscilação da pronúncia destes sons em francês atual, a maior parte das palavras importadas mantém a pronúncia do francês standard; e que o facto de não terem uma grafia aportuguesada parece não influenciar o respeito da pronúncia original. E, como a grafia influencia a pronúncia de palavras estrangeiras, acho provável que algumas palavras escritas com -é final em francês, pronunciado [ê], tenham passado a pronunciar-se com [é], por serem lidas como se fosse a grafia portuguesa — até porque a maior parte das palavras que, na importação, se afastam da pronúncia standard francesa são deste tipo. (Tirando isso, há uma palavra que mudou de género ao entrar no português — puré, que passou a ser masculino, mas isso é outra conversa.)

Sei também que há uma grande variação na pronúncia destas palavras em Portugal — e não só daquelas de que são apresentadas duas alternativas no dicionário —, mas não sei se essa variação é dialetal, socioletal ou geracional. Como as pronunciam os meus leitores? Como está nos dicionários ou doutra maneira? Ah, e já agora, porque foi da discussão desta palavra que o texto nasceu: dizem guichê ou guiché?



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[1] O dicionário da Academia de Ciências de Lisboa não tem transcrição fonética, mas o aportuguesamento dá-me indicação da pronúncia proposta para a maior parte das palavras. 

[2] Parqué também está registado, mas acho que nunca ouvi. Brevê, bufê e parquê têm também as formas brevete, bufete e parquete, em que se escrevem e pronunciam os tt da grafia francesa, não pronunciados na língua original. Isto poderia ser uma indicação de quando foram importadas estas palavras, já que estes tt se pronunciaram em francês até por volta do séc. XVII, mas não sei se a importação será assim tão antiga.

[3] Sempre ouvi cachené, tal como está dicionarizado, mas a forma cachenê pode ter coexistido com cachené também em Portugal. No fado “O chico do cachené”, de Fernando Farinha, cachené é pronunciado como se escreve e rima com é e ; já no fado “Ai Chico Chico”, Amália Rodrigues pronuncia sempre cachenê. A palavra rima com  no refrão, mas, curiosamente, numa das estrofes, devia rimar com Salomé e com banzé, o que acaba por não acontecer, porque Amália não altera a pronúncia... 

[4] O Porto Editora diz que boldrié vem de uma forma baldrier, correspondente ao atual baudrier, que não consigo encontrar no CNRTL. Está aí registada, porém, uma forma antiga documentada no séc. XIV, baldrei. Quanto a oboé, de haut-bois, vem do tempo em que o ditongo que se escreve  oi- e é atualmente pronunciado [uá] se pronunciava [ué].


2 comentários:

jj.amarante disse...

Eu digo guiché.
Fui ver ao dicionário o que era cachené, no priberam dizem que é um cachecol. Virá do francês Cache-col. Com ele protejo sempre o pescoço e o topo do peito e de longe em longe o nariz.

V. M. Lucas Lindegaard disse...

Acho que a minha geração (bom, algumas pessoas da minha geração, não todas) são as últimas a compreender a palavra cachené. Caiu mesmo em desuso. Agora é sempre cachecol que se diz, de facto. É curioso que estas duas palavras francesas nunca se utilizem em francês atual: diz-se écharpe. Bom, em português também se usa a palavra écharpe, mas para designar outra coisa, aquilo que em francês se chama foulard, um lenço de pescoço. Não é o único caso em que a palavra francesa usada em português não corresponde à palavra usada em francês para designar a mesma coisa. Tabliê diz-se em francês tableau de bord e boné diz-se casquette; bonnet é um gorro, por exemplo de lã.