Diz-se muitas vezes que alguém “se superou a si próprio”, que “foi além das suas próprias capacidades”, mas, logicamente, é apenas de um pretenso limite que se está a falar. Chamemos-lhe daqui para a frente “o primeiro limite”, para simplificar o texto. O primeiro limite é, então, um limite aparente, mas de uma aparência muito convincente, tão convincente que nos parece uma barreira real. Provavelmente, porque é o limite do razoável, digamos assim; porque, de cada vez que o passamos, estamos a fazer-nos mal a nós próprios. Não podemos, pois, permitir-nos atravessá-lo de ânimo leve; tem de nos surgir como bastante insuperável. O que é interessante é que a natureza, mãe carinhosa que é, nos apetrechou com mecanismos especiais para nos ajudar a passar para além desse primeiro limite. Por exemplo:
A fome avisa-nos de que precisamos de comida. Quanto mais tempo passamos sem comer, mais fome temos, naturalmente. Até que ultrapassamos a tal barreira e, ao fim de três, quatro, cinco dias sem comer (depende das pessoas), deixamos de ter fome. Carinhosa, a mãe natureza, dizia eu. É que, se não for por curiosidade intelectual ou por obediência a qualquer estranho preceito místico que deixamos de comer, mas apenas por falta de comida, não nos ajuda nada o tormento da fome. Então, ultrapassamos esse primeiro limite e deixamos de ter fome, e é capaz de nos ser assim mais fácil arranjar com que nos alimentarmos.
O mesmo com o esforço físico. Andar ou correr muito, por exemplo. Estamos tão cansados que já não aguentamos mais. Temos de parar, descansar, as pernas já não respondem, o cérebro começa a aquecer, a aquecer. Mas depois, se nos conseguirmos controlar o suficiente para desobedecer aos avisos do corpo sobre as fronteiras do razoável, podemos continuar a andar ou a correr muito mais tempo. Sem grandes problemas. Também isto é sem interesse quando uma pessoa se cansa a andar ou a correr por gosto. Mas imaginem que é de uma situação de guerra que se trata ou de fugir de qualquer outro perigo que nos ameace a vida. Ainda bem que a mãe natureza é carinhosa e nos faz esquecer que estamos a ir longe demais no nosso esforço, porque mais vale dar um bocadinho cabo da vida do que perdê-la.
E com o sono passa-se algo semelhante, como toda a gente sabe. Muito tempo sem dormir e a pesada sonolência inicial é substituída por um estado nervoso de permanente alerta, em que não conseguimos já dormir, por mais que tentemos e apesar da exaustão. Esse estado de alerta, para lá do limite do sono, pode também ser a nossa salvação em muitas situações de perigo.
A ideia que eu tenho é que não é só para além da fome, do esgotamento físico ou do sono que se pode passar, mas também para além de todas as sensações negativas. De toda a dor, digamos assim. Quando chegamos ao insuportável, dessensibilizamo-nos, para poder seguir em frente. Pensem em quem viu morrer à sua volta todos os seus e multidões mais de pessoas, em quem viu literalmente desmoronar-se o seu mundo; pensem em quem foi vítima de crueldades maiores do que estamos habituados a conceber. Como ficar preso na dor pode ser fatal, desenvolvemos a capacidade natural de ultrapassar a primeira barreira e continuar.
Depois, há uma altura em que a falta de alimentos no corpo nos impede de não sentir fome. Atingimos o segundo limite, e comemos ou caímos. A certa altura de corrermos para além do cansaço, caímos mesmo para o chão. Atingimos também o segundo limite. Ao fim de muito tempo de alerta permanente, caímos de sono. É inútil sequer tentarmos manter-nos despertos, porque atingimos o segundo limite. E o segundo limite dos outros males menos físicos, digamos assim, que forma tem ele? Provavelmente, atingimos esse segundo limite quando a dor nos faz perder a razão.
Para além deste segundo limite, não há mais nada. Que se o ultrapasse e – mais ou menos literalmente, conforme a situação – é a morte. O terceiro limite, portanto. Que, vendo bem, é que é o limite que conta. Porque às três tem vez, não é verdade?
Coreto de Évora
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