Uma ideia em que passo a vida a tropeçar é de que se está a verificar um empobrecimento da expressão em português, de que os portugueses agora falam e escrevem pior do que antigamente. Podia dar muitos exemplos de variações sobre esse tema catastrofista, que se reproduz em animadas conversas de amigos e artigos de opinião na imprensa, mas dou, precisamente para não particularizar a crítica. É a ideia em si, que me parece, no mínimo, bastante estranha.
Talvez deva começar por dizer que nunca vi ninguém apresentar nada que se pareça com provas dessa pretensa degradação. Afirma-se que existe uma deterioração da qualidade do português falado e escrito com base apenas numa impressão. Ora, tratando-se de um assunto onde há tanta paixão empenhada, não convém mesmo nada abordá-lo a partir de impressões. Uma regra simples do bom senso é, como dizia Bertand Russel, não acreditar numa proposição quando não há qualquer razão para supor que é verdadeira. Ora, (e é por isso que eu digo que tudo isto me parece, no mínimo, muito estranho…), não há qualquer boa razão para supor que uma tal deterioração da expressão possa acontecer subitamente no momento histórico actual. Eu, pelo menos, não vislumbro que razão possa ser. (Aliás, seriam precisas circunstâncias muito especiais para que sucedesse algo assim…)
Curiosamente, parece, à partida, mais plausível o contrário, se bem que o próprio conceito de qualidade de expressão precise de ser definido com clareza: se se partir do princípio de que há alguma relação entre o nível de educação formal e a riqueza da expressão de um falante (acho que é uma hipótese de difícil confirmação, mas já se parece, pelo menos, com uma hipótese racional), deve haver melhoria da expressão dos portugueses em geral porque eles têm hoje um nível de educação formal muito mais elevado do que há bem pouco tempo atrás. Os professores também têm mais formação… Que estranha razão poderá então haver para que o português se esteja a deteriorar?
O meu amigo Nuno comentava uma vez aqui na Travessa que as pessoas têm uma forte tendência a lembrar-se só do bom e a esquecer o mau. Talvez o mito da Idade de Ouro nasça efectivamente dessa obliteração das memórias negativas. Eu, porém, quando me lembro da minha educação primária e secundária, não consigo, nem com muito boa vontade, dourar os contornos dessas memórias: aquilo de que eu me lembro é um ensino desadaptado e desmotivante, sem uma pontinha que fosse de eficácia. Da meia centena de colegas que tinha na escola primária, contam-se certamente pelos dedos de uma mão os que chegaram a saber escrever alguma coisa minimamente articulada. Saber exprimir-se, isso sabiam, como sabe toda a gente no meio a que pertence e nas situações de comunicação que lhe são familiares, e muitos deles dariam grande bailaricos a muitos doutores, com o grande parlapié que eles tinham, uma retórica afinadíssima mas provavelmente desvalorizada por quem critica a pobreza do português actual… Agora um texto de opinião escorreito ou um relatório, não. E têm também provavelmente, dificuldade em ler muitos artigos dos jornais, já para não falar de obras científicas ou literárias. Quem seriam esses portugueses que antigamente se exprimiam bem? Conheci muito poucos.
Outra ideia que costuma andar de mão dadas com esta é a ideia de que o pretenso empobrecimento da expressão se pode resolver com a exposição às obras dos mestres da língua. Mais uma vez, trata-se de uma afirmação por provar. Ler Tolentino, Camilo ou Aquilino Ribeiro ajuda, com certeza, quem queira ler ou escrever um determinado tipo de literatura, mas não é essa a necessidade de expressão da maior parte dos portugueses nem é nesse tipo de textos que os queixosos da degradação da língua lhes apanham os erros. E pode bem ser ao contrário, avento eu: ao insistir em dar às novas gerações uma cultura desadaptada da sua realidade, assente apenas na pretensa superioridade de uma expressão linguística de outrora, provavelmente não estamos a ajudar nada. Não é disso que as novas gerações precisam para exprimirem bem o que precisam de exprimir.
29/03/10
24/03/10
Não mata só as colheitas
A Karen, a minha mulher, chegou ontem desanimada do Dombe. A seca deu cabo de toda a colheita de gergelim. Aquela gente toda (em números redondos, 2000 produtores com 1 hectare cada um), que tinha tido bons resultados com o gergelim como cultura de rendimento na campanha passada e que tinha investido ainda mais em gergelim este ano, vai ter zero, literalmente zero, de produção, porque simplesmente não choveu até meados de Fevereiro. “Imaginas o que é passar um ano todo sem um tostão?”, perguntou-me a Karen quando chegou a casa. Eu não, por acaso não imagino mesmo. E vocês?
Nos países ricos, há seguros agrícolas e há fundos especiais para zonas de calamidade. Talvez os agricultores não vivam tão bem num ano de má ou nenhuma colheita como num ano bom, mas vão vivendo. Aqui, não há nada. É preciso desenvolver a agricultura e é preciso aumentar a produção e a comercialização. Muito bem. Mas, depois de um ano assim, quem se tinha disposto a lançar-se em mais do que mera agricultura de subsistência provavelmente desiste. Volta diversificar mais as culturas e a investir menos trabalho e dinheiro, porque assim, se voltar a perder, é menos trabalho e dinheiro que perde…
No mês passado, em Maputo, estive a ouvir Joseph Hanlon num seminário a que assisti. Não fiquei muito convencido com o grosso da sua palestra, mas houve uma proposta que ele fez que me parece interessante (e que é precisamente a que ele vai desenvolver no seu próximo livro, Just Give Money to the Poor, a ser publicado agora em Abril): Quando tantos modelos de cooperação para o desenvolvimento falharam e continuam a falhar, por que não dar simplesmente dinheiro às pessoas pobres, para activar um pouco as economias das zonas mais remotas, onde o dinheiro é pura e simplesmente inexistente? Até porque os primeiros produtos que as pessoas mais pobres compram quando têm algum dinheiro são, se não mesmo locais, pelo menos feitos no país. Evidentemente, Hanlon não propõe lançar de helicópteros sacos de notas de 20 meticais. O que ele propõe é que o dinheiro da cooperação vá directamente para pagar os diversos subsídios que são comuns nos países europeus e inexistentes em países como Moçambique (ou que, mesmo quando existem na teoria, não funcionam na prática): maternidade, reforma, desemprego, etc. E algum tipo de seguros agrícolas, digo eu. É que uma seca como a deste ano não mata só as colheitas...
Nos países ricos, há seguros agrícolas e há fundos especiais para zonas de calamidade. Talvez os agricultores não vivam tão bem num ano de má ou nenhuma colheita como num ano bom, mas vão vivendo. Aqui, não há nada. É preciso desenvolver a agricultura e é preciso aumentar a produção e a comercialização. Muito bem. Mas, depois de um ano assim, quem se tinha disposto a lançar-se em mais do que mera agricultura de subsistência provavelmente desiste. Volta diversificar mais as culturas e a investir menos trabalho e dinheiro, porque assim, se voltar a perder, é menos trabalho e dinheiro que perde…
No mês passado, em Maputo, estive a ouvir Joseph Hanlon num seminário a que assisti. Não fiquei muito convencido com o grosso da sua palestra, mas houve uma proposta que ele fez que me parece interessante (e que é precisamente a que ele vai desenvolver no seu próximo livro, Just Give Money to the Poor, a ser publicado agora em Abril): Quando tantos modelos de cooperação para o desenvolvimento falharam e continuam a falhar, por que não dar simplesmente dinheiro às pessoas pobres, para activar um pouco as economias das zonas mais remotas, onde o dinheiro é pura e simplesmente inexistente? Até porque os primeiros produtos que as pessoas mais pobres compram quando têm algum dinheiro são, se não mesmo locais, pelo menos feitos no país. Evidentemente, Hanlon não propõe lançar de helicópteros sacos de notas de 20 meticais. O que ele propõe é que o dinheiro da cooperação vá directamente para pagar os diversos subsídios que são comuns nos países europeus e inexistentes em países como Moçambique (ou que, mesmo quando existem na teoria, não funcionam na prática): maternidade, reforma, desemprego, etc. E algum tipo de seguros agrícolas, digo eu. É que uma seca como a deste ano não mata só as colheitas...
A arte e o resto
Na discussão de um post do blogue De Rerum Natura, afirma Desidério Murcho: «(…) Os escritores de historietas e poeminhas não contam como produção cultural sofisticada. Sei que isto é uma opinião polémica porque as pessoas tendem a pensar que romances e poesia constituem o zénite da sofisticação intelectual, mas não concordo com esta ideia. A literatura não tem, nem de perto nem de longe, a sofisticação cognitiva da física ou da filosofia ou da matemática.»
Não só estou de acordo com a afirmação de Desidério Murcho como acho que, sobretudo num país como Portugal, é necessário insistir nesta ideia. E a quem torcer o nariz às expressões “sofisticação intelectual” ou “sofisticação cognitiva”, proponho um outro olhar sobre a questão: comparadas com a produção científica, filosófica, matemática e afins, a literatura e as artes não têm importância nenhuma para a vida das pessoas (já aqui falei uma vez de uma parte desta questão).
Como o que vou dizer a seguir se baseia apenas numa impressão que não foi testada, espero, sinceramente, que apareça alguém a mostrar-me que se trata de uma impressão enganadora, mas, quando passeio ao acaso pela blogosfera made in Portugal, encontro centenas, milhares de páginas a falar de artes e literatura, mas muito poucas a falar de ciências, filosofia, matemática, história e economia... E eu, quando vejo tantas pessoas tão preocupadas com o analfabetismo literário dos portugueses sem se se preocuparem com o analfabetismo científico, tenho mesmo de pasmar. Em que é que contam mais para a vida das pessoas conhecimentos sobre epopeias, romances e poemas do que sobre lógica, estatística e biologia, por exemplo? É difícil compreender.
Não tenho nada contra novelas e poemas, notem. Até os escrevo. Mas, talvez por isso mesmo, tenho consciência de que (agora é que me vão cair todos em cima*) é muito mais fácil escrever e ler literatura do que escrever e ler ciência ou filosofia. Mais fácil e sem efeito na vida da gente.
_______________
* Primeiro, tinha escrito “agora é que me vão cair tordos em cima”, que até era engraçado, mas decidi não deixar a gralha, perdão, o tordo. Conseguem identificar um tordo e uma gralha? Ah bom, também mal feito fora…
Não só estou de acordo com a afirmação de Desidério Murcho como acho que, sobretudo num país como Portugal, é necessário insistir nesta ideia. E a quem torcer o nariz às expressões “sofisticação intelectual” ou “sofisticação cognitiva”, proponho um outro olhar sobre a questão: comparadas com a produção científica, filosófica, matemática e afins, a literatura e as artes não têm importância nenhuma para a vida das pessoas (já aqui falei uma vez de uma parte desta questão).
Como o que vou dizer a seguir se baseia apenas numa impressão que não foi testada, espero, sinceramente, que apareça alguém a mostrar-me que se trata de uma impressão enganadora, mas, quando passeio ao acaso pela blogosfera made in Portugal, encontro centenas, milhares de páginas a falar de artes e literatura, mas muito poucas a falar de ciências, filosofia, matemática, história e economia... E eu, quando vejo tantas pessoas tão preocupadas com o analfabetismo literário dos portugueses sem se se preocuparem com o analfabetismo científico, tenho mesmo de pasmar. Em que é que contam mais para a vida das pessoas conhecimentos sobre epopeias, romances e poemas do que sobre lógica, estatística e biologia, por exemplo? É difícil compreender.
Não tenho nada contra novelas e poemas, notem. Até os escrevo. Mas, talvez por isso mesmo, tenho consciência de que (agora é que me vão cair todos em cima*) é muito mais fácil escrever e ler literatura do que escrever e ler ciência ou filosofia. Mais fácil e sem efeito na vida da gente.
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* Primeiro, tinha escrito “agora é que me vão cair tordos em cima”, que até era engraçado, mas decidi não deixar a gralha, perdão, o tordo. Conseguem identificar um tordo e uma gralha? Ah bom, também mal feito fora…
19/03/10
Um infinitivo cheio de personalidade
[Depois de uns quantos posts ligeiros, volto a coisas sérias, mas coisas sérias sem importância absolutamente nenhuma: coisas de língua...]
Na sua obra O infinito flexionado português[1], o linguista brasileiro Theodoro Henrique Maurer Jr. recusa liminarmente a proposta de Richard Otto, que defendera[2] que o infinitivo flexionado galego-português podia ter surgido por se ter começado a confundir os pronomes pessoais pospostos aos verbos com desinências verbais: fazer-nos, por exemplo, acabaria por dar fazermos. Maurer não pode aceitar que o infinitivo pessoal, «um tesouro lingüístico de incalculável valor», tenha como origem um «feio solecismo».
Maurer tem toda a razão em recusar a proposta de Otto, que é a pior proposta de explicação que conheço para o surgimento do infinitivo pessoal; mas não deixa de ser curioso que argumente que a forma não poderia nunca ter surgido de um «feio solecismo», porque a própria proposta de explicação de Maurer (que é boa!) se baseia no que, a certos olhos, também pode (deve...) ter parecido um feio solecismo...
O infinitivo pessoal, como decerto saberão, é muitas vezes descrito como sendo uma grande originalidade galego-portuguesa. Por exemplo, a página “Infinitive” da Wikipédia em inglês apresenta o infinitivo português de uma maneira relativamente comum em enciclopédias: “(…) O “infinitivo flexionado” (ou “infinitivo pessoal”) que se encontra em português, em galego e em (algumas variantes de) dialectos sardos tem flexão em pessoa e número. São estas as únicas línguas indo-europeias em que os infinitivos podem ter desinências de pessoa e número”.
Existem duas teorias principais sobre o aparecimento do infinitivo pessoal em português: uma, proposta por Gamillscheg e Rodrigues, entre outros estudiosos da questão, diz que o infinitivo pessoal português deriva de uma forma verbal finita do latim, o imperfeito do conjuntivo, que tem formas semelhantes (do verbo venire, por exemplo: venirem, venires, veniret, veniremus , veniretis, venirent); outra, a tese de Leite de Vasconcelos e de muitos outros linguistas depois dele, diz que apenas se juntaram desinências ao infinitivo impessoal, que podia já, em latim tardio e nos diversos falares romances que dele derivaram, ter um sujeito próprio e pleno, com caso nominativo, exactamente como o sujeito de um verbo num tempo finito. Se a discussão continua é porque, perante uma frase como “et intrarunt in placito testimoniale pro in tertio die darent testes” (“e começaram a audiência para, no terceiro dia, providenciarem testemunhas”, o primeiro infinitivo pessoal atestado!), não se pode afirmar a superioridade de nenhuma das duas hipóteses.
Conheço a discussão sobre as origens do infinitivo pessoal há algum tempo e, se bem que reconheça que a discussão está longe de se poder dar por terminada, tendo mais para a tese de Leite de Vasconcelos desenvolvida por Maurer. Parece-me extremamente plausível essa lógica evolutiva (infinitivo aparece em orações introduzidas por preposição > o sujeito destas orações ganha caso nominativo > a forma verbal começa a ser entendida como finita e ganha flexão em número e pessoa > expande-se a outras construções o uso da forma, já estabilizada) e parecem-me válidos os argumentos para invalidar a teoria rival (não se vê razão para o imperfeito do conjuntivo latino, que se observa ter sido substituído pelo mais-que-perfeito, ter apenas sobrevivido, sob a nova forma de infinitivo pessoal, num conjunto de usos muito restrito e que dificilmente pode resultar apenas do apagamento de uma conjunção (ut), como propõem os defensores dessa tese).
Parece-me também argumento de muito peso a constatação da existência de variantes dialectais com outras formas não finitas flexionadas, como o gerúndio (“em chegandos lá, telefona”, é o exemplo de Ana Maria Martins[3]) e o particípio (em napolitano antigo). É verdade que, pelo menos nos exemplos que conheço, é uma flexão muito limitada, mas isso pode bem dever-se ao facto de o gerúndio não ter um modelo óbvio de onde “importar” desinências, como o infinitivo tinha no futuro do conjuntivo. Aliás, segundo o filólogo galego Francisco Gondar[4], a razão da não existência de infinitivo flexionado em castelhano é nunca ter havido coincidência entre as formas de futuro do conjuntivo e do infinitivo, porque o futuro do conjuntivo castelhano conservou sempre o -e final, o que não permitiu a “confusão” com o infinitivo e o subsequente desenvolvimento de desinências neste tempo. Aliás, já Leite de Vasconcelos afirmara que o futuro do conjuntivo teria propiciado a difusão do infinitivo pessoal.
O que é certo é que o castelhano, como muitos outros falares neolatinos, tinha herdado do latim a possibilidade de ter infinitivos com sujeito próprio em nominativo – e mantém-na até hoje. Este texto (ou melhor, o ímpeto para o escrever) nasceu esta manhã, de uma canção chilena. Estava a ouvir um disco (Salones y Chinganas del 900, de 1965) da cantora e folclorista Margot Loyola e chamou-me a atenção um refrão de uma canção chamada “Refalosa me has pedido”: «Dime si me quieres, / dime la verdad, / para yo quererte / con seguridad». Não conhecia a estrutura, nem do castelhano de Espanha nem do castelhano da Bolívia e da Argentina, que são os que conheço bem. Para mim, em espanhol, a frase só poderia ser «Dime si me quieres, / dime la verdad, / para que yo te quiera / con seguridad». Ou, se a tinha ouvido, nunca tinha reparado nela. Mas uma busca simples em Google (“para yo”, páginas em espanhol) revelou-me que a construção está longe de ser rara. Surgem milhares de frases como “Quisiera saber si hay algún curso para yo mismo instalar celdas solares en mi casa.”
A continuação da busca revelou-me que se trata de uma construção criticada. No resumo de um estudo de George De Mello[5] vejo que «o uso de preposição e sujeito com o infinitivo» é uma construção que não se costuma mencionar nas gramáticas de espanhol», mas que «é tão comum nalgumas regiões como é inaceitável noutras, uma situação que dá origem a controvérsias». E fico também a saber que «alguns linguistas crêem que esta construção ocorre mais entre pessoas com menos educação». Reflectindo melhor e chegando à conclusão que a estrutura se manteve, de facto, desde o latim tardio, diria que é uma forma tão criticada como renitente… Há muitas assim, tão fundas na língua, que não há críticas que dêem cabo delas. E que se podiam, facilmente, ver antes como um tesouro linguístico e não como um feio solecismo, se se quisesse…(Eu, provavelmente, por ser falante do português, acho mais leve a frase final criticada do que a sua correspondente com conjuntivo, que é a considerada correcta e é incomparavelmente mais comum…)
Não sei se havia quem criticasse as orações infinitivas com sujeito nominativo quando elas apareceram, mas é provável que assim fosse, porque isso ia claramente contra a construção clássica. O que é muito provável, porém (se formos, como eu, adeptos da tese de Leite de Vasconcelos e seus seguidores) é que é esse erro que vai resultar no nosso infinitivo pessoal. Ou, para o dizer mais uma vez com palavras de Mathias Schaf Filho: «(…) O infinitivo latino, embora fosse avesso à flexão número-pessoal, admitia sujeito próprio e diferente da oração regente. Essa característica permitiu, presumivelmente, criar variações no latim vulgar falado nas diferentes províncias romanas quanto ao emprego de infinitivo impessoal e pessoal. Essa “pessoalidade virtual” do infinitivo pode ter sido um dos fatores que abriu as portas para o licenciamento de sujeito nominativo, e a subseqüente oscilação entre o emprego [de concordância número-pessoal ou não] do infinitivo no latim vulgar medieval e em fases posteriores». Mas, mesmo que defendamos a derivação directa do infinitivo pessoal do imperfeito do conjuntivo latino, e que não consideremos um grande “erro” o apagamento da conjunção ut, temos de admitir que a expansão da nova forma para estruturas que lhe eram completamente estranhas pode bem (e deve) ter sido considerada um feio solecismo… Há sempre alguém, aliás, a achar que é um feio solecismo qualquer inovação introduzida numa língua, porque há, em todos os tempos, quem considere que a língua chegou à forma definitiva e não queira que ela mude mais. Deve ser tão humano como errar, porque é sempre assim…
Para terminar, um facto que eu creio que muita gente desconhece: O infinitivo pessoal não é uma originalidade apenas galego-portuguesa. Já vimos, na citação que fiz da Wikipédia, que se refere muitas vezes a existência de um infinitivo flexionado em certos dialectos sardos, mas há outros falares românicos em que se deu ou se dá o mesmo fenómeno. O mirandês, por exemplo, também o tem; Maurer refere que há documentos que provam a sua existência no napolitano do séc. XV e em romeno antigo; e Maria Cristina Egido Fernández demonstra a sua existência em leonês antigo. No seu artigo “Infinitivos conjugados en documentos leoneses del s. XIII”[6], depois de analisar 1300 documentos leoneses, sobretudo do séc. XIII, conclui que «pelo menos no antigo romance leonês se conhecia e utilizava esta forma verbal», e que «é possível admitir que o infinitivo conjugado se desenvolvesse, em épocas passadas, em todo o território do Noroeste da península, se bem que com desigual intensidade».
_________________
[1] São Paulo: Cia. Editora Nacional-USP, 1968
[2] “Der portugiesische Infinitiv bei Camões”, in Romanische Forschungen 6, 1889
[3] “On the origin of the Portuguese inflected infinitive”, in Historical Linguistics 1999, Amsterdam: John Benjamins, 2001
[4] O infinitivo conxugado en galego, Univ. de Santiago de Compostela, 1977
[5] “Preposición + sujeto + infinitivo: "Para yo hacerlo", disponível online.
[6] In Revista Contextos, Vol. X, Universidad de León, 1992
Na sua obra O infinito flexionado português[1], o linguista brasileiro Theodoro Henrique Maurer Jr. recusa liminarmente a proposta de Richard Otto, que defendera[2] que o infinitivo flexionado galego-português podia ter surgido por se ter começado a confundir os pronomes pessoais pospostos aos verbos com desinências verbais: fazer-nos, por exemplo, acabaria por dar fazermos. Maurer não pode aceitar que o infinitivo pessoal, «um tesouro lingüístico de incalculável valor», tenha como origem um «feio solecismo».
Maurer tem toda a razão em recusar a proposta de Otto, que é a pior proposta de explicação que conheço para o surgimento do infinitivo pessoal; mas não deixa de ser curioso que argumente que a forma não poderia nunca ter surgido de um «feio solecismo», porque a própria proposta de explicação de Maurer (que é boa!) se baseia no que, a certos olhos, também pode (deve...) ter parecido um feio solecismo...
O infinitivo pessoal, como decerto saberão, é muitas vezes descrito como sendo uma grande originalidade galego-portuguesa. Por exemplo, a página “Infinitive” da Wikipédia em inglês apresenta o infinitivo português de uma maneira relativamente comum em enciclopédias: “(…) O “infinitivo flexionado” (ou “infinitivo pessoal”) que se encontra em português, em galego e em (algumas variantes de) dialectos sardos tem flexão em pessoa e número. São estas as únicas línguas indo-europeias em que os infinitivos podem ter desinências de pessoa e número”.
Existem duas teorias principais sobre o aparecimento do infinitivo pessoal em português: uma, proposta por Gamillscheg e Rodrigues, entre outros estudiosos da questão, diz que o infinitivo pessoal português deriva de uma forma verbal finita do latim, o imperfeito do conjuntivo, que tem formas semelhantes (do verbo venire, por exemplo: venirem, venires, veniret, veniremus , veniretis, venirent); outra, a tese de Leite de Vasconcelos e de muitos outros linguistas depois dele, diz que apenas se juntaram desinências ao infinitivo impessoal, que podia já, em latim tardio e nos diversos falares romances que dele derivaram, ter um sujeito próprio e pleno, com caso nominativo, exactamente como o sujeito de um verbo num tempo finito. Se a discussão continua é porque, perante uma frase como “et intrarunt in placito testimoniale pro in tertio die darent testes” (“e começaram a audiência para, no terceiro dia, providenciarem testemunhas”, o primeiro infinitivo pessoal atestado!), não se pode afirmar a superioridade de nenhuma das duas hipóteses.
Na leitura da “Teoria Vasconcelos”, o verbo darent está no infinitivo pessoal, pois sofreu um processo de “finitivização”, passando, com isso, a admitir sujeito no caso nominativo como as formas finitas. (...). Na interpretação da “Teoria Gamillscheg-Rodrigues”, a oração subordinada infinitiva [darent testes in tertio die] é, na realidade, uma oração subordinada finita, resultante da supressão da conjunção ut [ut darent testes in tertio die]: o verbo darent está no imperfeito do subjuntivo, terceira pessoa do plural (…).Esta explicação é de Mathias Schaf Filho, na sua tese de doutoramento, Do acusativo com infinitivo latino ao nominativo com infinitivo português (Univ. de Santa Catarina, 2003), que se encontra online. Quero esclarecer aqui que fui buscar a esta obra muita informação sobre esta questão (nomeadamente a do primeiro parágrafo deste texto) e que, na secção 1.4 (“Hipóteses sobre a origem do infinitivo pessoal português”), de onde é tirada a citação do parágrafo anterior, Mathias Schaf Filho faz um excelente resumo da discussão sobre a origem do infinitivo pessoal. E quero, precisamente, aconselhar a leitura dessa secção da obra a quem queira aprofundar mais o tema, que aqui é forçosamente tratado de forma demasiado resumida (o resto da tese é de leitura mais difícil, sobretudo para quem não esteja familiarizado com a teoria generativista – ou, como dizem os brasileiros, com mais lógica do que os portugueses, gerativista).
Conheço a discussão sobre as origens do infinitivo pessoal há algum tempo e, se bem que reconheça que a discussão está longe de se poder dar por terminada, tendo mais para a tese de Leite de Vasconcelos desenvolvida por Maurer. Parece-me extremamente plausível essa lógica evolutiva (infinitivo aparece em orações introduzidas por preposição > o sujeito destas orações ganha caso nominativo > a forma verbal começa a ser entendida como finita e ganha flexão em número e pessoa > expande-se a outras construções o uso da forma, já estabilizada) e parecem-me válidos os argumentos para invalidar a teoria rival (não se vê razão para o imperfeito do conjuntivo latino, que se observa ter sido substituído pelo mais-que-perfeito, ter apenas sobrevivido, sob a nova forma de infinitivo pessoal, num conjunto de usos muito restrito e que dificilmente pode resultar apenas do apagamento de uma conjunção (ut), como propõem os defensores dessa tese).
Parece-me também argumento de muito peso a constatação da existência de variantes dialectais com outras formas não finitas flexionadas, como o gerúndio (“em chegandos lá, telefona”, é o exemplo de Ana Maria Martins[3]) e o particípio (em napolitano antigo). É verdade que, pelo menos nos exemplos que conheço, é uma flexão muito limitada, mas isso pode bem dever-se ao facto de o gerúndio não ter um modelo óbvio de onde “importar” desinências, como o infinitivo tinha no futuro do conjuntivo. Aliás, segundo o filólogo galego Francisco Gondar[4], a razão da não existência de infinitivo flexionado em castelhano é nunca ter havido coincidência entre as formas de futuro do conjuntivo e do infinitivo, porque o futuro do conjuntivo castelhano conservou sempre o -e final, o que não permitiu a “confusão” com o infinitivo e o subsequente desenvolvimento de desinências neste tempo. Aliás, já Leite de Vasconcelos afirmara que o futuro do conjuntivo teria propiciado a difusão do infinitivo pessoal.
O que é certo é que o castelhano, como muitos outros falares neolatinos, tinha herdado do latim a possibilidade de ter infinitivos com sujeito próprio em nominativo – e mantém-na até hoje. Este texto (ou melhor, o ímpeto para o escrever) nasceu esta manhã, de uma canção chilena. Estava a ouvir um disco (Salones y Chinganas del 900, de 1965) da cantora e folclorista Margot Loyola e chamou-me a atenção um refrão de uma canção chamada “Refalosa me has pedido”: «Dime si me quieres, / dime la verdad, / para yo quererte / con seguridad». Não conhecia a estrutura, nem do castelhano de Espanha nem do castelhano da Bolívia e da Argentina, que são os que conheço bem. Para mim, em espanhol, a frase só poderia ser «Dime si me quieres, / dime la verdad, / para que yo te quiera / con seguridad». Ou, se a tinha ouvido, nunca tinha reparado nela. Mas uma busca simples em Google (“para yo”, páginas em espanhol) revelou-me que a construção está longe de ser rara. Surgem milhares de frases como “Quisiera saber si hay algún curso para yo mismo instalar celdas solares en mi casa.”
A continuação da busca revelou-me que se trata de uma construção criticada. No resumo de um estudo de George De Mello[5] vejo que «o uso de preposição e sujeito com o infinitivo» é uma construção que não se costuma mencionar nas gramáticas de espanhol», mas que «é tão comum nalgumas regiões como é inaceitável noutras, uma situação que dá origem a controvérsias». E fico também a saber que «alguns linguistas crêem que esta construção ocorre mais entre pessoas com menos educação». Reflectindo melhor e chegando à conclusão que a estrutura se manteve, de facto, desde o latim tardio, diria que é uma forma tão criticada como renitente… Há muitas assim, tão fundas na língua, que não há críticas que dêem cabo delas. E que se podiam, facilmente, ver antes como um tesouro linguístico e não como um feio solecismo, se se quisesse…(Eu, provavelmente, por ser falante do português, acho mais leve a frase final criticada do que a sua correspondente com conjuntivo, que é a considerada correcta e é incomparavelmente mais comum…)
Não sei se havia quem criticasse as orações infinitivas com sujeito nominativo quando elas apareceram, mas é provável que assim fosse, porque isso ia claramente contra a construção clássica. O que é muito provável, porém (se formos, como eu, adeptos da tese de Leite de Vasconcelos e seus seguidores) é que é esse erro que vai resultar no nosso infinitivo pessoal. Ou, para o dizer mais uma vez com palavras de Mathias Schaf Filho: «(…) O infinitivo latino, embora fosse avesso à flexão número-pessoal, admitia sujeito próprio e diferente da oração regente. Essa característica permitiu, presumivelmente, criar variações no latim vulgar falado nas diferentes províncias romanas quanto ao emprego de infinitivo impessoal e pessoal. Essa “pessoalidade virtual” do infinitivo pode ter sido um dos fatores que abriu as portas para o licenciamento de sujeito nominativo, e a subseqüente oscilação entre o emprego [de concordância número-pessoal ou não] do infinitivo no latim vulgar medieval e em fases posteriores». Mas, mesmo que defendamos a derivação directa do infinitivo pessoal do imperfeito do conjuntivo latino, e que não consideremos um grande “erro” o apagamento da conjunção ut, temos de admitir que a expansão da nova forma para estruturas que lhe eram completamente estranhas pode bem (e deve) ter sido considerada um feio solecismo… Há sempre alguém, aliás, a achar que é um feio solecismo qualquer inovação introduzida numa língua, porque há, em todos os tempos, quem considere que a língua chegou à forma definitiva e não queira que ela mude mais. Deve ser tão humano como errar, porque é sempre assim…
Para terminar, um facto que eu creio que muita gente desconhece: O infinitivo pessoal não é uma originalidade apenas galego-portuguesa. Já vimos, na citação que fiz da Wikipédia, que se refere muitas vezes a existência de um infinitivo flexionado em certos dialectos sardos, mas há outros falares românicos em que se deu ou se dá o mesmo fenómeno. O mirandês, por exemplo, também o tem; Maurer refere que há documentos que provam a sua existência no napolitano do séc. XV e em romeno antigo; e Maria Cristina Egido Fernández demonstra a sua existência em leonês antigo. No seu artigo “Infinitivos conjugados en documentos leoneses del s. XIII”[6], depois de analisar 1300 documentos leoneses, sobretudo do séc. XIII, conclui que «pelo menos no antigo romance leonês se conhecia e utilizava esta forma verbal», e que «é possível admitir que o infinitivo conjugado se desenvolvesse, em épocas passadas, em todo o território do Noroeste da península, se bem que com desigual intensidade».
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[1] São Paulo: Cia. Editora Nacional-USP, 1968
[2] “Der portugiesische Infinitiv bei Camões”, in Romanische Forschungen 6, 1889
[3] “On the origin of the Portuguese inflected infinitive”, in Historical Linguistics 1999, Amsterdam: John Benjamins, 2001
[4] O infinitivo conxugado en galego, Univ. de Santiago de Compostela, 1977
[5] “Preposición + sujeto + infinitivo: "Para yo hacerlo", disponível online.
[6] In Revista Contextos, Vol. X, Universidad de León, 1992
16/03/10
Uma vida sem buracos
E se algumas pessoas (todas é um número grande demais para caber numa conjectura deste tipo…) trouxessem já consigo à nascença um utópico ideal de organização geométrica, de superfícies lisas e regulares? A Siri, a minha filha mais nova, para quem o mundo pouco mais é do que Chimoio, e para quem, portanto, as ruas normais deveriam ser as ruas que aqui há, quer sempre obrigar-me a dar voltas grandes, no caminho da escola para casa, para poder seguir as ruas mais arranjadinhas, ou, como ela diz, sem buracos. Já me explicou várias vezes que detesta buracos e hoje, num tom arreliado, perguntou-me literalmente assim:
“Mas pai, porque é que tem de haver buracos na vida?”
“Mas pai, porque é que tem de haver buracos na vida?”
15/03/10
Interlúdio
Porque será que, se uma palavra em -culo (honnis soient les espagnols qui mal y pensent…) ou -cula diz sempre uma coisa mais pequena do que a mesma palavra sem essa partícula, um versículo é mais comprido que um verso?
(Bom, dir-me-ão vocês, também não há muitos cubos maiores do que cubículos, e não é difícil arranjar tubérculos bem maiores que túberas, sobretudo se forem inhames, mas isso já são vocês a brincarem com as palavras… Já mais sérios seriam se me dissessem que canículas poucas vezes são canas pequenas, mas antes costumam ser caloraças daquelas em que, diria a minha avó, até assa canas (mesmo que grandes) ao sol… – o mesmo sol, cujas claves, se lhe ficam expostas fracturadas clavículas, passam, claro, a ser de dó…)
(Bom, dir-me-ão vocês, também não há muitos cubos maiores do que cubículos, e não é difícil arranjar tubérculos bem maiores que túberas, sobretudo se forem inhames, mas isso já são vocês a brincarem com as palavras… Já mais sérios seriam se me dissessem que canículas poucas vezes são canas pequenas, mas antes costumam ser caloraças daquelas em que, diria a minha avó, até assa canas (mesmo que grandes) ao sol… – o mesmo sol, cujas claves, se lhe ficam expostas fracturadas clavículas, passam, claro, a ser de dó…)
13/03/10
Conselho sem muita convicção
O meu conselho é não buscar com que se ocupar, em que pensar, sobre que escrever (não buscar!…); manter pesada a consciência, do peso que se calcula que pode ter o mal virtual, por fazer; não deixar que o futuro seja mais do que desejo, nem que o desejo preencha o futuro todo.
O meu conselho é ter calma, pelo menos que chegue para resolver a vida, à medida que ela nos vai atacando; prestar muita atenção aos sofrimentos que há, que só por acaso não são nossos; adormecer com o coração cheio de música e cantar de manhã, ainda antes do café, que se quer sobretudo alegre.
[Um comboio, um écran, qualquer olhar,
tudo tem nome!, as árvores, a charneca, o estrume primaveril,
a corrida extravagante do cavalo islandês,
mesmo os mais obscuros – e até raros – sentimentos,
os degraus (é mesmo assim) de parentesco,
a famigerada e, démodée ou não, incontornável
fragilidade desta nossa condição.]
O meu conselho é, como dizia, não buscar, que chegam bem as tantas coisas que há em que vamos tropeçando – são passatempo de sobra para muitas tardes e noites, material inesgotável para os livros todos que se quiser.
Agora, se me perguntarem se é com muita convicção o conselho, digo que não. E digo mais (o meu último conselho):
O meu conselho é ensinar, propor, contrariar, aconselhar, mas sem nunca exagerar em convicção...
O meu conselho é ter calma, pelo menos que chegue para resolver a vida, à medida que ela nos vai atacando; prestar muita atenção aos sofrimentos que há, que só por acaso não são nossos; adormecer com o coração cheio de música e cantar de manhã, ainda antes do café, que se quer sobretudo alegre.
[Um comboio, um écran, qualquer olhar,
tudo tem nome!, as árvores, a charneca, o estrume primaveril,
a corrida extravagante do cavalo islandês,
mesmo os mais obscuros – e até raros – sentimentos,
os degraus (é mesmo assim) de parentesco,
a famigerada e, démodée ou não, incontornável
fragilidade desta nossa condição.]
O meu conselho é, como dizia, não buscar, que chegam bem as tantas coisas que há em que vamos tropeçando – são passatempo de sobra para muitas tardes e noites, material inesgotável para os livros todos que se quiser.
Agora, se me perguntarem se é com muita convicção o conselho, digo que não. E digo mais (o meu último conselho):
O meu conselho é ensinar, propor, contrariar, aconselhar, mas sem nunca exagerar em convicção...
*
...e então pus-me a especular a que roma iriam dar os caminhos desta vida...
*
...e então pus-me a especulara que roma iriam dar
os caminhos desta vida,
que foz seria o seu fim...
charnecas verdes de mar?
a rubra ira lunar?
a paz mais que merecida?
o cerne em lava de mim?
um abismo inesperado?
a crueza do passado?
a terra só, prometida?
um cruel assim-assim?
nada! os caminhos da vida
é ao ponto de partida,
que eles voltam, no fim:
à nossa mais que fatal
tão sozinha condição:
tu a ti mesmo, eu a mim.
não sei se está bem ou mal,
sei apenas que é assim:
todos os caminhos vão
dar à nossa solidão.
*
Amor e contas à vida
Dizia não sei quem* que há coisas muito mais importantes do que o dinheiro, mas que o dinheiro serve, precisamente, para comprar essas coisas. É uma grande verdade e, a quem me disser que o dinheiro pode, talvez, ajudar à saúde mas não compra o amor**, eu digo que até o amor (amor a sério, precisamente esse sentimento em que vocês estão a pensar!), o dinheiro ajuda muito a conseguir. Ou melhor, em vez de o dizer eu próprio, cito um artigo de Jennifer Randles, que, com a ajuda de Eva Illouz, o diz melhor do que eu:
A matemática também é um bocado como o dinheiro: há muito conhecimento mais interessante e mais importante para a nossa vida que o da matemática em si, mas é quase sempre preciso matemática para obter esse conhecimento (por muito que tanto a matemática como afirmações como esta que acabo de fazer façam barafustar muita gente, e por várias razões…). E juntar o dinheiro e a matemática também é muito interessante, mas eu, que nunca estudei nenhum tipo de ciência económica e, no geral, não sei muito nem de dinheiro nem de matemática, só consigo fazer contas simples. Mesmo assim, sei que não se pode abusar de contas de tipo nenhum, mesmo simples, senão uma pessoas fica confusa. Por exemplo: Ao preço a que estão as verduras e a carne, quem é que lhes chega? Ali no Mercado 25 de Junho, a cenoura, a cebola e o tomate estão mais caros do que na Dinamarca, onde o salário mínimo é 40 vezes mais alto que o salário mínimo moçambicano. Um dia de salário não chega agora para comprar dois quilos de tomate, nem um frango de aviário, e o milho está a 5 meticais o quilo. Apetece dizer, para não fugir ao tema inicial, que não há, actualmente, muitas condições para o idílio amoroso…
_________________
* Por mais voltas que dê a Google, não consigo mesmo descobrir o autor do aforismo... Às vezes é referido Bernard Shaw, às vezes Groucho Marx, mas nunca de forma convincente…
** Estou a pensar, como já devem ter adivinhado, naquela canção tão famosa como foleirita da autoria do grande tanguista argentino (aqui a palavra num dos seus sentido originais, o de compositor de tangos) Rodolfo Sciammarella que diz que na vida há três coisas pelas quais tem de se dar graças a Deus: saúde, dinheiro e amor. A versão original da canção é de outro grande tanguista argentino (aqui a palavra noutro dos seus sentidos originais, o de cantor de tangos), o grande Charlo, mas como não quero deixar-vos um tangueiro a cantar uma valsa, deixo-vos outra de se l’e tirar o sombrero, a do mexicano Juan Arvizu, que era mais bolerista que tanguista. Aproveitem, enquanto o link não se autodestrói, como as instruções da Missão impossível. E, quando quiserem soirées animadas, convençam a vossa companhia a discutir se é mais importante a saúde, o dinheiro ou o amor. A sério, já experimentei muitas vezes, e é de cada vez mais divertido que das outras vezes todas.
Como Illouz defende na sua convincente teoria da relação entre amor e desigualdade no capitalismo avançado, a ideologia dominante de casamento e idílio amoroso é que “não só o amor é cego ao estatuto social e à riqueza, como também transforma, em última instância, a pobreza em abundância, a fome em saciedade, a escassez em excedente”. Faz parte desta ideologia dominante o tropo o dinheiro não compra o amor. Embora isso, até certo ponto, seja verdade, é com certeza preciso dinheiro para comprar as coisas que criam condições para a prática do amor romântico (…).O facto é que Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa e os outros casais de protagonistas das histórias maiores de romântica paixão são sempre gente economicamente folgada, digamos assim…
A matemática também é um bocado como o dinheiro: há muito conhecimento mais interessante e mais importante para a nossa vida que o da matemática em si, mas é quase sempre preciso matemática para obter esse conhecimento (por muito que tanto a matemática como afirmações como esta que acabo de fazer façam barafustar muita gente, e por várias razões…). E juntar o dinheiro e a matemática também é muito interessante, mas eu, que nunca estudei nenhum tipo de ciência económica e, no geral, não sei muito nem de dinheiro nem de matemática, só consigo fazer contas simples. Mesmo assim, sei que não se pode abusar de contas de tipo nenhum, mesmo simples, senão uma pessoas fica confusa. Por exemplo: Ao preço a que estão as verduras e a carne, quem é que lhes chega? Ali no Mercado 25 de Junho, a cenoura, a cebola e o tomate estão mais caros do que na Dinamarca, onde o salário mínimo é 40 vezes mais alto que o salário mínimo moçambicano. Um dia de salário não chega agora para comprar dois quilos de tomate, nem um frango de aviário, e o milho está a 5 meticais o quilo. Apetece dizer, para não fugir ao tema inicial, que não há, actualmente, muitas condições para o idílio amoroso…
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* Por mais voltas que dê a Google, não consigo mesmo descobrir o autor do aforismo... Às vezes é referido Bernard Shaw, às vezes Groucho Marx, mas nunca de forma convincente…
** Estou a pensar, como já devem ter adivinhado, naquela canção tão famosa como foleirita da autoria do grande tanguista argentino (aqui a palavra num dos seus sentido originais, o de compositor de tangos) Rodolfo Sciammarella que diz que na vida há três coisas pelas quais tem de se dar graças a Deus: saúde, dinheiro e amor. A versão original da canção é de outro grande tanguista argentino (aqui a palavra noutro dos seus sentidos originais, o de cantor de tangos), o grande Charlo, mas como não quero deixar-vos um tangueiro a cantar uma valsa, deixo-vos outra de se l’e tirar o sombrero, a do mexicano Juan Arvizu, que era mais bolerista que tanguista. Aproveitem, enquanto o link não se autodestrói, como as instruções da Missão impossível. E, quando quiserem soirées animadas, convençam a vossa companhia a discutir se é mais importante a saúde, o dinheiro ou o amor. A sério, já experimentei muitas vezes, e é de cada vez mais divertido que das outras vezes todas.
11/03/10
Teoria literária
[Se o poema só se diz a ele próprio ou se dá conta do mundo fora dele? Desculpem, mas não posso dedicar mais que um título e quatro segmentos de linha a tão estéril discussão:]
rimésis
a poesia
menina rimada que ela é
às vezes mima
às vezes não
*
As polleras das cholitas e outros trajes tradicionais
O traje típico mais comum das terras altas da Bolívia é, para as mulheres, a pollera, uma saia plissada, e o chapéu, que varia de região para região (desde o chapéu de coco da zona de La Paz ao chapéu alto de Potosí, passando pelo chapéu de aba larga da zona do Chaco) e que pode, às vezes ser substituído por um gorro tricotado. Muitas vezes, a pollera é acompanhada por uma blusa branca, mas nem sempre. As tranças são também penteado praticamente obrigatório. Os homens, esses, vestem normalmente calças e camisas sem muito que se lhes diga, e cobrem a cabeça ou com um chapéu de feltro, mas um chapéu vulgar que não é específico da cada região, ou com um boné de beisebol, de maneira que, a haver alguma coisa de típico no traje dos homens são as sandálias, quando as usam (quem nunca tiver visto polleras encontra com facilidade fotografias em linha, mas aqui ficam links para um, dois, três exemplos).
Evidentemente, nem todas as mulheres vestem pollera e usam chapéu. Há uma minoria urbana com uma maneira de vestir moderna “ocidentalizada”, como se costuma dizer, e há uma minoria “originária”, como se costuma também dizer, muito rural, que usa trajes muito mais tradicionais ainda, de tecidos feitos à mão, os trajes considerados verdadeiramente indígenas. Nessas zonas, os homens também usam, na vida de todos os dias, trajes muito tradicionais.
A grande maioria da população do planalto boliviano, porém, veste-se como eu descrevi no primeiro parágrafo. Uma coisa interessante é que o facto de usar pollera é o traço necessário e suficiente para definir uma cholita, uma designação meio étnica meio de classe, mas muito concreta e não graduável: não se pode ser mais ou menos cholita, ou se o é (usando pollera) ou se o não é (não usando pollera). Para o homem, não há uma designação correspondente, nem uma classificação tão estrita, e não importa se usa chapéu de feltro ou boné de beisebol.
A pollera tem origem nas saias das damas da elite criolla do século XIX, sobretudo de origem espanhola, e é uma saia que, com muitas variações de comprimento, tecido, cores, etc., existe como traje típico numa grande parte da América Latina, desde a Bolívia ao Panamá. Os chapéus que as cholitas bolivianas usam também têm, como as suas saias e blusas, origem em chapéus europeus que já passaram de moda há muito tempo.
E tudo isto nos diz várias coisas interessantes, parece-me a mim: diz-nos que é o traje da classe alta (e criolla) de um determinado período que passa a traje tradicional popular (e “indígena”) de um período seguinte, exactamente como alguma da música dita hoje tradicional veio dos salões nobres para o povo; e diz-nos que, na Bolívia, o traje das mulheres é, no geral, mais tradicional do que o dos homens. Mas não é só na Bolívia, pois não? Quantas vezes não se vê, em gente de várias culturas, a mulher de traje tradicional e o homem de traje moderno. Por que será?
Obviamente a tradição (a “cultura”…) é amiúde mais para as mulheres do que para os homens. Quer isto dizer que os homens aceitam para eles próprios a “modernidade” mas querem das mulheres a “tradição”? Sob formas mais ou menos directas, parece-me que é muitas vezes esse o caso. Agora, há outra maneira de dizer a mesma coisa sem levantar tantas ondas e dando até dessa estranha atitude uma imagem positiva: é dizer que são as mulheres “as depositárias da tradição”…
Evidentemente, nem todas as mulheres vestem pollera e usam chapéu. Há uma minoria urbana com uma maneira de vestir moderna “ocidentalizada”, como se costuma dizer, e há uma minoria “originária”, como se costuma também dizer, muito rural, que usa trajes muito mais tradicionais ainda, de tecidos feitos à mão, os trajes considerados verdadeiramente indígenas. Nessas zonas, os homens também usam, na vida de todos os dias, trajes muito tradicionais.
A grande maioria da população do planalto boliviano, porém, veste-se como eu descrevi no primeiro parágrafo. Uma coisa interessante é que o facto de usar pollera é o traço necessário e suficiente para definir uma cholita, uma designação meio étnica meio de classe, mas muito concreta e não graduável: não se pode ser mais ou menos cholita, ou se o é (usando pollera) ou se o não é (não usando pollera). Para o homem, não há uma designação correspondente, nem uma classificação tão estrita, e não importa se usa chapéu de feltro ou boné de beisebol.
A pollera tem origem nas saias das damas da elite criolla do século XIX, sobretudo de origem espanhola, e é uma saia que, com muitas variações de comprimento, tecido, cores, etc., existe como traje típico numa grande parte da América Latina, desde a Bolívia ao Panamá. Os chapéus que as cholitas bolivianas usam também têm, como as suas saias e blusas, origem em chapéus europeus que já passaram de moda há muito tempo.
E tudo isto nos diz várias coisas interessantes, parece-me a mim: diz-nos que é o traje da classe alta (e criolla) de um determinado período que passa a traje tradicional popular (e “indígena”) de um período seguinte, exactamente como alguma da música dita hoje tradicional veio dos salões nobres para o povo; e diz-nos que, na Bolívia, o traje das mulheres é, no geral, mais tradicional do que o dos homens. Mas não é só na Bolívia, pois não? Quantas vezes não se vê, em gente de várias culturas, a mulher de traje tradicional e o homem de traje moderno. Por que será?
Obviamente a tradição (a “cultura”…) é amiúde mais para as mulheres do que para os homens. Quer isto dizer que os homens aceitam para eles próprios a “modernidade” mas querem das mulheres a “tradição”? Sob formas mais ou menos directas, parece-me que é muitas vezes esse o caso. Agora, há outra maneira de dizer a mesma coisa sem levantar tantas ondas e dando até dessa estranha atitude uma imagem positiva: é dizer que são as mulheres “as depositárias da tradição”…
09/03/10
O sublinhado é nosso
os gestos parecem só
citar outros gestos
as ruas outras ruas
as pequenas iras outras pequenas iras
as alegriazinhas outras alegriazinhas
pois…
e nestes dias que parecem só
ser de outros dias, enfim
uma longa e entediante
citação
ainda assim
o sublinhado é nosso
citar outros gestos
as ruas outras ruas
as pequenas iras outras pequenas iras
as alegriazinhas outras alegriazinhas
pois…
e nestes dias que parecem só
ser de outros dias, enfim
uma longa e entediante
citação
ainda assim
o sublinhado é nosso
*
07/03/10
O funeral de Yogi Berra e a natureza humana
É importante ter consciência de que não há nada de intrínseco ao ser humano na democracia, na justiça social, na solidariedade, na tolerância, etc. – são apenas ideias morais que vão contra uma grande parte (a maior parte?) de tudo o que conhecemos em qualquer lugar e período da História, o que não poderia, por definição, acontecer se fossem naturais no Homo sapiens.
Isto já o devo ter dito aqui, de outras maneiras, mas, se o fiz, não faz mal, porque é algo que acho que vale a pena repetir. Agora, não há tão-pouco razões para ter uma ideia demasiado pessimista da natureza humana – o que implicaria, em última análise, a impossibilidade de democracia e justiça social. Nas últimas décadas, a velhíssima discussão entre visões essencialmente negativas e visões essencialmente positivas da natureza humana tem sido muito enriquecida com resultados experimentais (da teoria dos jogos, mas não só) que mostram que alguns constituintes das ideias de igualdade e justiça social (altruísmo e reciprocidade, sob várias formas) estão profundamente ancorados em todos nós. Dito de outra maneira: Muito provavelmente, na velha discussão entre o pessimismo hobbesiano e o optimismo naturalista-primitivista de que se costuma (não sei se um pouco apressadamente) dar Rousseau como exemplo primeiro, não há forçosamente que tomar uma ou outra posição, porque as instituições sociais tanto servem, conforme os casos, para “perverter” como para “moralizar” a pessoa humana e a pessoa humana, que é quem cria essas instituições sociais, é tão naturalmente “bruta” e “egoísta” como “sensível” e “generosa”. Aliás, talvez se deva transformar, diria eu, a mais comum relação adversativa entre egoísmo e generosidade numa relação causal: em vez de “As pessoas são generosas, apesar de serem também egoístas”, talvez se deva antes dizer “As pessoas são generosas, porque são egoístas”.
Tor Nørretranders, em Det generøse menneske (“A pessoa generosa”), um livro que se apresenta como sendo sobre “cerveja, gajas* e música de cornetas”, defende fundamentalmente que é a selecção sexual, um conceito frequentemente esquecido da teoria darwiniana, que justifica muito do que há de louvável na acção humana: ser bom (tanto no sentido moral como no sentido de ser competente) dá parceiros sexuais! A ideia não é só dele, claro está, mas ele di-lo de uma forma atraente. O livro acaba com uma listagem de aparentes paradoxos que, segundo Nørretranders, não o são. Eis quatro deles:
Defende os teus próprios interesses: sê generoso
Sê egoísta: divide tudo
Mostra a tua individualidade: cria comunidade
Sê voluptuoso: dá o melhor de ti
A maneira mais eficaz, porém, de explicar sinteticamente como é que a satisfação dos seus próprios interesses se transforma em solidariedade ainda é capaz de ser a do jogador de beisebol Yogi Berra, que diz que devemos ir ao funeral das outras pessoas se quisermos que elas também venham ao nosso funeral**.
_______________
* A tradução de fisse por “gajas” não é muito literal, mas é porque a palavra portuguesa que corresponde de facto à dinamarquesa, a minha mãe proibiu-me de a utilizar, como diria Brassens.
** O seu a seu dono: não é minha a ideia de relacionar a famosa frase de Yogi Berra com a chamada “reciprocidade indirecta”, mas sim de Karl Sigmund, no seu artigo “Indirect Reciprocity, Assessment Hardwiring and Reputation”.
Isto já o devo ter dito aqui, de outras maneiras, mas, se o fiz, não faz mal, porque é algo que acho que vale a pena repetir. Agora, não há tão-pouco razões para ter uma ideia demasiado pessimista da natureza humana – o que implicaria, em última análise, a impossibilidade de democracia e justiça social. Nas últimas décadas, a velhíssima discussão entre visões essencialmente negativas e visões essencialmente positivas da natureza humana tem sido muito enriquecida com resultados experimentais (da teoria dos jogos, mas não só) que mostram que alguns constituintes das ideias de igualdade e justiça social (altruísmo e reciprocidade, sob várias formas) estão profundamente ancorados em todos nós. Dito de outra maneira: Muito provavelmente, na velha discussão entre o pessimismo hobbesiano e o optimismo naturalista-primitivista de que se costuma (não sei se um pouco apressadamente) dar Rousseau como exemplo primeiro, não há forçosamente que tomar uma ou outra posição, porque as instituições sociais tanto servem, conforme os casos, para “perverter” como para “moralizar” a pessoa humana e a pessoa humana, que é quem cria essas instituições sociais, é tão naturalmente “bruta” e “egoísta” como “sensível” e “generosa”. Aliás, talvez se deva transformar, diria eu, a mais comum relação adversativa entre egoísmo e generosidade numa relação causal: em vez de “As pessoas são generosas, apesar de serem também egoístas”, talvez se deva antes dizer “As pessoas são generosas, porque são egoístas”.
Tor Nørretranders, em Det generøse menneske (“A pessoa generosa”), um livro que se apresenta como sendo sobre “cerveja, gajas* e música de cornetas”, defende fundamentalmente que é a selecção sexual, um conceito frequentemente esquecido da teoria darwiniana, que justifica muito do que há de louvável na acção humana: ser bom (tanto no sentido moral como no sentido de ser competente) dá parceiros sexuais! A ideia não é só dele, claro está, mas ele di-lo de uma forma atraente. O livro acaba com uma listagem de aparentes paradoxos que, segundo Nørretranders, não o são. Eis quatro deles:
Defende os teus próprios interesses: sê generoso
Sê egoísta: divide tudo
Mostra a tua individualidade: cria comunidade
Sê voluptuoso: dá o melhor de ti
A maneira mais eficaz, porém, de explicar sinteticamente como é que a satisfação dos seus próprios interesses se transforma em solidariedade ainda é capaz de ser a do jogador de beisebol Yogi Berra, que diz que devemos ir ao funeral das outras pessoas se quisermos que elas também venham ao nosso funeral**.
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* A tradução de fisse por “gajas” não é muito literal, mas é porque a palavra portuguesa que corresponde de facto à dinamarquesa, a minha mãe proibiu-me de a utilizar, como diria Brassens.
** O seu a seu dono: não é minha a ideia de relacionar a famosa frase de Yogi Berra com a chamada “reciprocidade indirecta”, mas sim de Karl Sigmund, no seu artigo “Indirect Reciprocity, Assessment Hardwiring and Reputation”.
05/03/10
Revisão de texto
A
Falha, falha, falha,
nunca mais se calha
Ilustração: Johann Friedrich Naumann (1780-1857), Naturgeschichte der Vögel Mitteleuropas, 2ª edição (1896-1905), daqui.
Há que ser original: texto um bocadinho budista
Há que ser original!
Arquitectar com cuidado o que se quer ou não quer ser, arredondar as pontas hirsutas que desfigurem ainda (credo!) o carácter que para si próprio se decidiu, ora, isso é o que toda a gente faz!…
Original é antes não querer ser nada de especial, diluir-se no banal que é a soma de todos os outros e deitar fora a tal per-so-na-li-da-de, ufano, pois!, de estar a fazer o que não faz mais ninguém.
Arquitectar com cuidado o que se quer ou não quer ser, arredondar as pontas hirsutas que desfigurem ainda (credo!) o carácter que para si próprio se decidiu, ora, isso é o que toda a gente faz!…
Original é antes não querer ser nada de especial, diluir-se no banal que é a soma de todos os outros e deitar fora a tal per-so-na-li-da-de, ufano, pois!, de estar a fazer o que não faz mais ninguém.
Os ismos da vida 2: Conformismo
Gosto de ser só assim,
fraco, instável, ansioso,
o oposto exacto, enfim,
de um deus todo poderoso.
Gosto de ser só assim,
humano, como se diz,
obcecado c’o meu fim,
volta não volta infeliz.
Gosto de ser feito assim,
menos galhofa que tédio.
Sério: gosto assim de mim!
Bem, quer dizer... Que remédio!...
fraco, instável, ansioso,
o oposto exacto, enfim,
de um deus todo poderoso.
Gosto de ser só assim,
humano, como se diz,
obcecado c’o meu fim,
volta não volta infeliz.
Gosto de ser feito assim,
menos galhofa que tédio.
Sério: gosto assim de mim!
Bem, quer dizer... Que remédio!...
Elogio da abertura de espírito... e da desconfiança!
Para que a ciência funcione (e para que funcione qualquer forma séria de procura da verdade, seja normalmente considerada ciência ou não), é obviamente necessário, entre outras coisas, que haja efectiva vontade de reconsiderar posições sempre que seja apresentada evidência, observável ou de qualquer outra forma demonstrável, que invalide uma determinada teoria (ela própria, em princípio, assente em observáveis ou outros demonstráveis). E é aqui, penso eu, que muita gente torce o nariz e duvida de que os cientistas sejam de facto tão racionais como defendem que se deve ser… Pensa muita gente: «Quando chega à altura de ter de mandar fora convicções, às vezes arquitectadas durante anos, para aceitar simplesmente que se estava errado, como é que os cientistas e os académicos em geral podem ser menos dogmáticos do que os outros todos? O que eles fazem é entrincheirar-se no interior da sua teoria e recusar, por incompleto, imperfeito, inconcludente e etc., o que vier pôr em causa as suas “religiosas” certezas.» Não é minha intenção entrar aqui numa discussão detalhada da questão, mas posso propor uma maneira bastante rápida de os cépticos perceberem que os cientistas mudam mesmo de opinião perante evidência nova, que é lerem as 165 respostas à pergunta anual do Reality Club de 2008, que era a seguinte: «Quando o pensamento nos faz mudar de opinião, é filosofia. Quando Deus nos faz mudar de opinião, é fé. Quando os factos nos fazem mudar de opinião, é ciência. Em que mudou de opinião e porquê?» Aconselha-se, como se aconselha, aliás, a grande maioria do que vem do EDGE.
Agora, que haja reacção, defesa daquilo em que se crê, não tem nada de mal. Se for feito sem dogmatismo, o fincar pá nas suas ideias é apenas saudável. Triste seria, e muito pouco conducente ao progresso do conhecimento, que não houvesse resistência às tentativas de provar falsa uma teoria. Costumo dizer que, para se ser um bom pensador, tem de se ter uma dose igual de teimosia e de capacidade de se pôr a si próprio em causa. Os renitentes deviam ser ainda mais, as batalhas mais acesas e o crivo de triagem das boas provas de malha mais fina. A haver algum défice na ciência (e na Academia em geral), digo eu, não é o de abertura de espírito, mas o de advogados do diabo.
Outra coisa que é normal é que haja, entre quem faz ciência, gente negligente, incompetente ou até suficientemente desonesta para sacrificar conscientemente ao seu proveito a verdade para que deveria contribuir. Isto é normal, digo eu, porque não se vê por que razão a pesquisa científica deveria ser diferente de outras actividades humanas – e há, infelizmente, em todas as profissões e áreas de actividades quem não faça como deve o seu trabalho. O que já me parece menos normal (de facto, parece-me até bastante anormal, dê-se que sentido se der à palavra anormal…) é que, de cada vez que se descobre que há a possibilidade, mesmo que não provada, de terem sido falseados os resultados de alguma pesquisa, haja sempre alguém a aproveitar esse facto para gritar ó da guarda: «Estão a ver como é a ciência, estão a ver?». É amalgamar tudo e é uma vergonha, sinceramente. É como, sei lá, dizer que, porque há quem tome doping, é sem valor a prática do desporto, uma coisa assim…
Agora, que haja reacção, defesa daquilo em que se crê, não tem nada de mal. Se for feito sem dogmatismo, o fincar pá nas suas ideias é apenas saudável. Triste seria, e muito pouco conducente ao progresso do conhecimento, que não houvesse resistência às tentativas de provar falsa uma teoria. Costumo dizer que, para se ser um bom pensador, tem de se ter uma dose igual de teimosia e de capacidade de se pôr a si próprio em causa. Os renitentes deviam ser ainda mais, as batalhas mais acesas e o crivo de triagem das boas provas de malha mais fina. A haver algum défice na ciência (e na Academia em geral), digo eu, não é o de abertura de espírito, mas o de advogados do diabo.
Outra coisa que é normal é que haja, entre quem faz ciência, gente negligente, incompetente ou até suficientemente desonesta para sacrificar conscientemente ao seu proveito a verdade para que deveria contribuir. Isto é normal, digo eu, porque não se vê por que razão a pesquisa científica deveria ser diferente de outras actividades humanas – e há, infelizmente, em todas as profissões e áreas de actividades quem não faça como deve o seu trabalho. O que já me parece menos normal (de facto, parece-me até bastante anormal, dê-se que sentido se der à palavra anormal…) é que, de cada vez que se descobre que há a possibilidade, mesmo que não provada, de terem sido falseados os resultados de alguma pesquisa, haja sempre alguém a aproveitar esse facto para gritar ó da guarda: «Estão a ver como é a ciência, estão a ver?». É amalgamar tudo e é uma vergonha, sinceramente. É como, sei lá, dizer que, porque há quem tome doping, é sem valor a prática do desporto, uma coisa assim…
Os ismos da vida 1: Optimismo
Se até às dez em ponto
a vida não correr mal,
há-de manter-se assim, pronto,
até lá p'ràs dez e tal.
a vida não correr mal,
há-de manter-se assim, pronto,
até lá p'ràs dez e tal.
04/03/10
Do kitsch a sério e do kitsch de imitação
Um apontamento de uma viagem à Suécia, de há 17 anos, que eu encontrei ontem e a que achei graça (sobretudo porque agora, acho eu, não me passaria pela cabeça escrever uma coisa assim...):
É um coração numa barraca de tiro, numa feira. De facto, é quase um espelho, mas, em vez de um espelho único, são rectangulozinhos pequenos de espelho, como aqueles que cobrem colunas ou paredes de boîtes farsolas, de modo que não se distingue nada do que reflecte. A moldura cordiforme é cor-de-rosa, não se percebe se de madeira se de plástico, e está cravejada de pequenas lâmpadas multicolores.
O coração na barraca de tiro é um símbolo de uma parte da Escandinávia, aquela que a gente conhece do festival da Eurovisão. Não há nada a fazer, nenhum sistema de educação, nenhum Estado-providência, nenhum bem-estar social, nenhuma tradição democrática, o kitsch é uma instituição tão inabalável como a fama dos Abba.
Nós em Portugal também temos kitsch, e muito, mas não é sério. O quê, a gaiola de plástico do periquito ou a Rute e o Nelson do Poço da Morte? Ora... Falta o brilho, faltam as lâmpadas às cores. Está tão baço e gasto, o nosso kitsch, que já nem kitsch é, é mais miséria. Vou dizer de outra maneira – kitsch a sério é o deles, o nosso kitsch é de pechisbeque.
É um coração numa barraca de tiro, numa feira. De facto, é quase um espelho, mas, em vez de um espelho único, são rectangulozinhos pequenos de espelho, como aqueles que cobrem colunas ou paredes de boîtes farsolas, de modo que não se distingue nada do que reflecte. A moldura cordiforme é cor-de-rosa, não se percebe se de madeira se de plástico, e está cravejada de pequenas lâmpadas multicolores.
O coração na barraca de tiro é um símbolo de uma parte da Escandinávia, aquela que a gente conhece do festival da Eurovisão. Não há nada a fazer, nenhum sistema de educação, nenhum Estado-providência, nenhum bem-estar social, nenhuma tradição democrática, o kitsch é uma instituição tão inabalável como a fama dos Abba.
Nós em Portugal também temos kitsch, e muito, mas não é sério. O quê, a gaiola de plástico do periquito ou a Rute e o Nelson do Poço da Morte? Ora... Falta o brilho, faltam as lâmpadas às cores. Está tão baço e gasto, o nosso kitsch, que já nem kitsch é, é mais miséria. Vou dizer de outra maneira – kitsch a sério é o deles, o nosso kitsch é de pechisbeque.
O educador de hoje
A literatura é, às vezes, expressão de ideais que só muito mais tarde são levados à prática. Foi em poemas e novelas, por exemplo, que as qualidades morais começaram a valer mais do que os dotes físicos, o poder militar ou a condição social herdada; os afectos mais do que as convenções sociais; etc. Vejam este texto que eu encontrei no outro dia:
«No meu tempo, estas questões resolviam-se com uma grande particular simplicidade», reflectiu ele. «Se um jovem era apanhado a fumar, levava uma sova. De facto, isto fazia que um rapaz de espírito pobre e cobarde desistisse de fumar, mas um rapaz esperto e valente passasse a trazer o tabaco escondido na bota depois da tareia e fosse fumar numa dependência.Parece uma coisa escrita anteontem, não parece?, e a maior parte de nós considerará que se aplica bem à realidade que conheceu e conhece. Mas não é. Esta é a reflexão de Eugene Bikovski, umas das três personagens do conto “Em casa”, de Anton Tchekhov, quando descobre que o seu filho Serioja foi apanhado a fumar. Não consigo saber com certeza quando foi escrito o conto, mas ou é de 1887 ou de 1897. Duvido que houvesse, nessa altura, muita a gente a educar os filhos como o propunha o senhor Bikovski…
Quando fosse apanhado no anexo e fosse de novo açoitado ia fumar para o rio, e assim sucessivamente até se tornar adulto. A minha mãe dava-me dinheiro e doces para eu não fumar.
Estes expedientes parecem-nos agora fracos e imorais. Assumindo uma posição lógica, o educador actual tenta instilar numa criança os primeiros princípios de justiça ajudando-a a compreendê-los e não provocando o medo ou o desejo de se distinguir e obter uma recompensa.»
03/03/10
Pão e feijão, hoje hão – mas amanhã, haverão?
Perguntou-me noutro dia Luís Santos, leitor desta Travessa, a minha opinião sobre «a flexão do verbo haver no sentido existencial», dando os exemplos de “Houve casas que ficaram totalmente inundadas durante as cheias” versus “Houveram casas que ficaram totalmente inundadas durante as cheias”. «Actualmente, a não-observação desta regra», escrevia Luís Santos, «é tida como uma gafe de todo o tamanho, mas, que eu saiba, ela não era seguida pelos grandes escritores e poetas dos sécs. XVI-XVIII». Eis o que sei dizer sobre a questão:
No princípio era o verbo habere (desculpem, mas eu desrespeito propositadamente a regra de referir os verbos latinos pela primeira pessoa do presente do indicativo) e habere era um verbo tão transitivo como o verbo ter, que é, basicamente, o que ele queria dizer. Bom, talvez tivesse outros usos não transitivos que eu desconheça, porque eu de latim sei muito pouco, mas, em princípio, habere tinha uma estrutura do tipo alguém habere alguma coisa. E depois, começou a usar-se, não sei se já em latim, mas seguramente, pelo menos, nas várias línguas neolatinas emergentes, com o sentido de “existir” (umas vezes acompanhado de uma partícula locativa, como o y francês, outras não). Quer dizer, é do uso transitivo que deriva o uso impessoal. Habere perdeu o sujeito, o “depositário” da coisa tida, e passou a ter só o objecto – com caso acusativo, que ainda se mantém no nosso haver mesmo com sentido existencial: “Não creio em bruxas, mas lá que as há, há-as”. Ou talvez não se possa dizer, com propriedade, que perdeu completamente o sujeito, e se deva antes dizer que, nos falares padrão, começou a ser utilizado quase sempre sem sujeito expresso, se bem que, como acontece outros verbos impessoais, a construção com um sujeito ele impessoal não seja nem muito rara nem considerada incorrecta – é antes muitas vezes sentida como marca de um registo informal ou popular. Ele há para aí vários sujeitos, porém, que usam, assim, haver com sujeito… No fundo, passou-se com o verbo haver o mesmo que se passou precisamente com o verbo ter no português do Brasil, onde só em registos muito especiais se usa haver para dizer a existência: na linguagem normal, não tem verbo haver, só tem verbo ter… E pronto, é precisamente por o único argumento do verbo (a entidade que se afirma existir) ser um acusativo que se postula que o verbo não deve fazer concordância com ele. Tem lógica.
Os verbos sem sujeito são, porém, raros e, neste como noutros casos, há quem tenda a colocar na posição de sujeito o acusativo do verbo, flexionando o verbo para fazer a concordância da pessoa verbal com esse pretenso “sujeito”. É assim que aparece “Houveram casas que ficaram totalmente inundadas durante as cheias”. Parece, no entanto, haver limites a esta tendência: ouve-se e lê-se houveram, houvessem, houverem e haviam em vez de houve, houvesse, houveram e havia, por exemplo, mas não se ouve nem lê hão em vez de há (só no título deste post...). Porque será? Outra coisa que é interessante constatar é que, mesmo quem faz do objecto de haver um sujeito não o põe antes do verbo: mesmo quem diz “Haviam lá muitas pessoas” nunca diz “*Muitas pessoas haviam lá”, não é verdade*?
Agora, estou em crer que não há aqui nada de novo, e, embora haja quem afirme que isso acontece cada vez mais, pode-se constatar que essa tendência, se não existiu sempre, existe pelo menos há já muito tempo. O que é interessante notar também é que a atitude em relação à norma de não-flexão do haver “existencial” não é sempre a mesma em todos os tempos. Houve épocas em que flexionar haver em pessoa era menos uma «gafe de todo o tamanho». Luís Santos diz que a regra de não-flexão pessoal de haver «não era seguida pelos grandes escritores e poetas dos sécs. XVI-XVIII» e é verdade que, pelo menos, não o era sempre.
Há um texto de Camilo Castelo Branco em que ele responde a um crítico (o brasileiro Carlos Laet) que o acusa de ter usado no plural um haver “existencial” – e note-se que o facto de ele responder ou é sinal de que não considerava que fosse apenas um erro que lhe tivesse escapado ou então de que era tão orgulhoso que, em vez de admitir a falha, preferiu convencer-se e tentar convencer os outros de que tinha razão. E fá-lo, como Camilo sempre faz tudo (eu sou fã de Camilo, aproveito para confessar de passagem), com graça e estilo. Não posso citar aqui a passagem, porque tinha-a num livro (Ecos humorísticos do Minho) que perdi quando, uma vez, me ardeu a casa toda, mas lembro-me de que Camilo usa o artifício retórico de começar por, aparentemente, pedir desculpa, que foi com certeza um erro do tipógrafo, para depois afirmar que o tipógrafo, se quisesse justificar uma enormidade dessas, até podia defender-se, porque a forma foi usada por pessoas que deviam saber mais da língua portuguesa do que a pessoa que lhe critica o erro. E dá uma lista de “autoridades” que usaram essa forma nos seus escritos.
Alberto Pimentel, em Notas Sobre O Amor De Perdição (Lisboa: Guimarães Editores, 1915) refere essa reacção de Camilo:
É assim, mudam as modas... que não a regra, neste caso. E a conclusão? Eu escrevo o haver impessoal e aconselho esse uso, porque é o que me parece lógico. E há ainda outra boa razão, de ordem estratégica, para se ficar pelo há, houve e havia, sem plural, e para seguir, aliás, todas as normas linguísticas que sejam, como esta, muitos consensuais: É que é provável encontrar muitas reacções negativas ao desvio, de maneira que se corre o risco de os outros não lerem ou não ouvirem o que temos dizer, só de chocados que ficam pela tal «gafe de todo o tamanho». É como ir de calções para uma reunião de negócios, digamos assim: mesmo que não se veja mal nisso, se queremos que nos levem a sério, bom, não convém…
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* É de notar que a mesma coisa se passa com verbos com óbvio sujeito pessoal (se bem que não agentivo), como estar, chegar, vir, etc., pelo menos quando é “indefinido”: diz-se “Estavam lá muitas pessoas”, mas nunca “*Muitas pessoas estavam lá”, e diz-se “Veio uma carta da SPA”, mas não “*Uma carta da SPA veio.” O mesmo se passa com passivas com sujeito indefinido (o mesmo tipo de sujeito, portanto), sobretudo quando o agente não é expresso: “Foram reabilitadas três escolas” e não “*Três escolas foram reabilitadas”. A aceitabilidade das frases muda bastante com a introdução de novos elementos e a questão é bastante complexa. Nunca vi nenhuma descrição completa do fenómeno nem nenhuma proposta de explicação, pelo que fico grato a quem me possa indicar estudos sobre a questão.
No princípio era o verbo habere (desculpem, mas eu desrespeito propositadamente a regra de referir os verbos latinos pela primeira pessoa do presente do indicativo) e habere era um verbo tão transitivo como o verbo ter, que é, basicamente, o que ele queria dizer. Bom, talvez tivesse outros usos não transitivos que eu desconheça, porque eu de latim sei muito pouco, mas, em princípio, habere tinha uma estrutura do tipo alguém habere alguma coisa. E depois, começou a usar-se, não sei se já em latim, mas seguramente, pelo menos, nas várias línguas neolatinas emergentes, com o sentido de “existir” (umas vezes acompanhado de uma partícula locativa, como o y francês, outras não). Quer dizer, é do uso transitivo que deriva o uso impessoal. Habere perdeu o sujeito, o “depositário” da coisa tida, e passou a ter só o objecto – com caso acusativo, que ainda se mantém no nosso haver mesmo com sentido existencial: “Não creio em bruxas, mas lá que as há, há-as”. Ou talvez não se possa dizer, com propriedade, que perdeu completamente o sujeito, e se deva antes dizer que, nos falares padrão, começou a ser utilizado quase sempre sem sujeito expresso, se bem que, como acontece outros verbos impessoais, a construção com um sujeito ele impessoal não seja nem muito rara nem considerada incorrecta – é antes muitas vezes sentida como marca de um registo informal ou popular. Ele há para aí vários sujeitos, porém, que usam, assim, haver com sujeito… No fundo, passou-se com o verbo haver o mesmo que se passou precisamente com o verbo ter no português do Brasil, onde só em registos muito especiais se usa haver para dizer a existência: na linguagem normal, não tem verbo haver, só tem verbo ter… E pronto, é precisamente por o único argumento do verbo (a entidade que se afirma existir) ser um acusativo que se postula que o verbo não deve fazer concordância com ele. Tem lógica.
Os verbos sem sujeito são, porém, raros e, neste como noutros casos, há quem tenda a colocar na posição de sujeito o acusativo do verbo, flexionando o verbo para fazer a concordância da pessoa verbal com esse pretenso “sujeito”. É assim que aparece “Houveram casas que ficaram totalmente inundadas durante as cheias”. Parece, no entanto, haver limites a esta tendência: ouve-se e lê-se houveram, houvessem, houverem e haviam em vez de houve, houvesse, houveram e havia, por exemplo, mas não se ouve nem lê hão em vez de há (só no título deste post...). Porque será? Outra coisa que é interessante constatar é que, mesmo quem faz do objecto de haver um sujeito não o põe antes do verbo: mesmo quem diz “Haviam lá muitas pessoas” nunca diz “*Muitas pessoas haviam lá”, não é verdade*?
Agora, estou em crer que não há aqui nada de novo, e, embora haja quem afirme que isso acontece cada vez mais, pode-se constatar que essa tendência, se não existiu sempre, existe pelo menos há já muito tempo. O que é interessante notar também é que a atitude em relação à norma de não-flexão do haver “existencial” não é sempre a mesma em todos os tempos. Houve épocas em que flexionar haver em pessoa era menos uma «gafe de todo o tamanho». Luís Santos diz que a regra de não-flexão pessoal de haver «não era seguida pelos grandes escritores e poetas dos sécs. XVI-XVIII» e é verdade que, pelo menos, não o era sempre.
Há um texto de Camilo Castelo Branco em que ele responde a um crítico (o brasileiro Carlos Laet) que o acusa de ter usado no plural um haver “existencial” – e note-se que o facto de ele responder ou é sinal de que não considerava que fosse apenas um erro que lhe tivesse escapado ou então de que era tão orgulhoso que, em vez de admitir a falha, preferiu convencer-se e tentar convencer os outros de que tinha razão. E fá-lo, como Camilo sempre faz tudo (eu sou fã de Camilo, aproveito para confessar de passagem), com graça e estilo. Não posso citar aqui a passagem, porque tinha-a num livro (Ecos humorísticos do Minho) que perdi quando, uma vez, me ardeu a casa toda, mas lembro-me de que Camilo usa o artifício retórico de começar por, aparentemente, pedir desculpa, que foi com certeza um erro do tipógrafo, para depois afirmar que o tipógrafo, se quisesse justificar uma enormidade dessas, até podia defender-se, porque a forma foi usada por pessoas que deviam saber mais da língua portuguesa do que a pessoa que lhe critica o erro. E dá uma lista de “autoridades” que usaram essa forma nos seus escritos.
Alberto Pimentel, em Notas Sobre O Amor De Perdição (Lisboa: Guimarães Editores, 1915) refere essa reacção de Camilo:
Não afirmo que fosse incorrecção tipográfica a frase “houvessem estradas”, na pág. 98 da 1ª edição (cap. Vlll), porque assim escreveram, até depois da primeira metade do século XIX, reputados autores, e a escrever assim foi educado o do Amor de perdição.Alberto Pimentel diz depois que «os Srs. Cortesão e Castanheira, professores em Coimbra, organizaram [em 1907 uma Selecta Literária] para o ensino elementar da história da língua portuguesa» onde incluíram «três composições de Camilo Castelo Branco» (uma das quais era “Amor de família”, um texto “de juventude” publicado no semanário A Cruz em 1853), de quem «os dois compiladores corrigiram tudo quanto entenderam ser defeito de linguagem». E prossegue Pimentel em defesa de Camilo Castelo Branco:
O próprio Camilo, quando uma vez lhe notaram acrimoniosamente o solecismo “houveram” como “feio e bestial”, entreteve-se a mostrar que bons escritores portugueses, Filinto Elísio, Dias Gomes e outros, tinham empregado o mesmo solecismo sem desdouro para a sua reputação de puritanos.
(…) Quanto à locução “houveram homens”, [Camilo] poderia também alegar que esta locução, que hoje consideramos incorrecta, ainda em 1853 e 1857 tinha curso usual nos livros e jornais da época. Se os dois compiladores consultarem os escritos de outros colaboradores da [revista] Cruz, neles a encontrarão repetida, bem como no Génio do mal, de Arnaldo Gama. Todavia estou plenamente convencido de que as oito palmatoadas, infligidas a um morto glorioso, em nada prejudicarão a sua imortalidade.E eu fui verificar e encontrei online um excerto de Os Andradas, de Alberto Sousa (São Paulo: Typographia Piratininga, 1922), que, além de confirmar o “houveram risos” de Eça, explica que Eça repete o solecismo em Cartas familiares e bilhetes de Paris (publicação póstuma): «Assim ele evitará o afrontoso escândalo de haverem substantivos». Aliás, segundo Alberto Sousa, «o emprego da malsinada locução foi usual nos melhores periódicos e livros da Lusitânia até depois da primeira metade do século dezenove (…) e até 1860, aproximadamente, continuaram no velho reino escritores e jornalistas de nota a usar no plural ou pessoalmente o verbo haver (…)». Machado de Assis, por exemplo, também escreve no conto “A mulher de preto”, de 1870: «Ali haviam vários deputados que conversavam de política, e os quais se reuniram a Meneses».
Agora o mais interessante do caso vem a ser que os Srs. Cortesão e Castanheira, se procurassem bem, poderiam ter encontrado em Eça de Queiroz, no Crime do padre Amaro, escrito anos depois do Amor de perdição, nada mais e nada menos que… “Houveram risos”. Queiram verificar.
É assim, mudam as modas... que não a regra, neste caso. E a conclusão? Eu escrevo o haver impessoal e aconselho esse uso, porque é o que me parece lógico. E há ainda outra boa razão, de ordem estratégica, para se ficar pelo há, houve e havia, sem plural, e para seguir, aliás, todas as normas linguísticas que sejam, como esta, muitos consensuais: É que é provável encontrar muitas reacções negativas ao desvio, de maneira que se corre o risco de os outros não lerem ou não ouvirem o que temos dizer, só de chocados que ficam pela tal «gafe de todo o tamanho». É como ir de calções para uma reunião de negócios, digamos assim: mesmo que não se veja mal nisso, se queremos que nos levem a sério, bom, não convém…
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* É de notar que a mesma coisa se passa com verbos com óbvio sujeito pessoal (se bem que não agentivo), como estar, chegar, vir, etc., pelo menos quando é “indefinido”: diz-se “Estavam lá muitas pessoas”, mas nunca “*Muitas pessoas estavam lá”, e diz-se “Veio uma carta da SPA”, mas não “*Uma carta da SPA veio.” O mesmo se passa com passivas com sujeito indefinido (o mesmo tipo de sujeito, portanto), sobretudo quando o agente não é expresso: “Foram reabilitadas três escolas” e não “*Três escolas foram reabilitadas”. A aceitabilidade das frases muda bastante com a introdução de novos elementos e a questão é bastante complexa. Nunca vi nenhuma descrição completa do fenómeno nem nenhuma proposta de explicação, pelo que fico grato a quem me possa indicar estudos sobre a questão.