Fala-se muitas vezes de “livros que mudaram a nossa vida” e inclui-se nesse conjunto de livros novelas, contos e romances, recolhas de poemas e peças de teatro, mas, eu, vejam lá, tenho a ideia que as obras literárias não mudam a vida de ninguém. Ou, se mudam, é tão pouco que a mudança por elas causada é, quase sempre, irrelevante.
Que me digam que livros religiosos, filosóficos ou científicos mudam a vida das pessoas, eu aceito. O Corão ou o Manifesto do Partido Comunista ou A origem das espécies mudaram a vida de muitos seres humanos, os primeiros porque propõem códigos de conduta que foram – e são – adoptados por muita gente, e o último porque está na base de alterações na compreensão do mundo que, directa ou indirectamente, afectaram a tecnologia, o que, por sua vez, teve e continua a ter uma quantidade enorme de implicações práticas na vida de muitas pessoas (estou a pensar sobretudo na medicina). Agora O egípcio, as Obras completas de Alexandre O’Neill, a História universal da infâmia ou as Recordações da casa dos mortos, o que é que mudaram na vida de quem?
Pode argumentar-se, é certo, que vários romances tiveram um papel importante na formação de mentalidades. Mas é uma afirmação difícil de provar e, mesmo que admitamos que assim foi, é impossível concluir daí que algum deles tenha mudado alguma coisa na vida dos seus leitores individualmente. Também é verdade que há obras de que se diz que criaram modas. A ser verdade, a adesão do leitor a uma moda seria, sem dúvida, uma mudança na sua vida criada pelo livro. Mas qual é a extensão e a relevância deste fenómeno? O caso mais famoso é o de Die Leiden des jungen Werthers, mais conhecido como Werther apenas, de Johann Wolfgang von Goethe, de que se afirma que levou muitos jovens a vestirem-se “à Werther” por toda a Europa e que é responsável por uma onda de 2 000 suicídios imitando o do protagonista da obra. Se a mudança de indumentária é sem grande importância na vida de uma pessoa, já a morte é, com toda a certeza, a alteração mais radical que a existência de alguém pode sofrer. Evidentemente, é difícil saber até que ponto é que a leitura do livro é a causa directa da vaga de suicídios e até que ponto é que é a consciência desse “movimento” que está na sua origem. Mas muito bem – Werther mudou a vida de bastantes pessoas. Muito poucas, ainda assim, se compararmos com o número de vidas profundamente alteradas por obras não literárias como as que eu referi atrás, mas isso não importa – o livro mudou de facto a vida de alguns dos seus leitores. E, como ele, deve ter havido mais meia dúzia deles, mas são certamente muito poucos. Pela estrada fora, de Jack Kerouac é bem capaz de ter levado alguma malta à vagabundagem beatnick (se bem que, mais uma vez, não se possa saber com certeza se foi o livro em si ou o facto de ele ser o símbolo de um movimento…), mas Moby Dick nunca levou muita gente à pesca de baleias. A esmagadora maioria, a quase totalidade, das obras literárias não mudou em nada a vida de quem as leu – excepto, claro está, em ter feito essas pessoas empregarem na sua leitura tempo de vida que, doutra maneira, poderiam ter passado a fazer outra coisa qualquer…
P.S.: Acabo de me dar conta que há uma ressalva que tenho de fazer. De facto, a leitura de obras literárias muda a vida de um tipo de pessoas, aquelas de cujo ofício elas fazem parte: os escritores, que não escreveriam o que escrevem se não tivessem lido o que leram, ou seja, cuja actividade profissional é directamente determinada pelos livros que lêem (não completamente, mas numa medida não desprezível); e os professores e investigadores de literatura.
recado para os Dominique Pelicot que andam por aí à solta
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Na semana em que Dominique Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por
ter repetidamente drogado a sua mulher para a violar e a pôr à disposição
de outro...
Há 2 dias
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