O epilóbio-eriçado (Epilobium hirsutum ) dispersando semente. Foto de Colin, 2012, Wikimedia Communs, daqui. |
Hans Magnus Enzensberger assume-se como agnóstico. Não sente inclinação para a fé, mas não pode deixar de assumir a sua bagagem cultural cristã (traduzo eu todas as citações):
Que se saiba, ninguém, nem sequer um suíço ou um sueco, consegue livrar-se da bagagem histórica que traz consigo. Uma parte desse legado e dessa carga, arrastamo-la connosco através da religião. Uma fada bondosa privou-me do talento para a fé no monoteísmo. Os deuses são tantos que a escolha é dolorosa. Os gregos e os romanos acompanham-nos no céu e nos dias da semana, e as tradições egípcias e asiáticas, de Tutancámon a Buda, também não desapareceram por completo. (...)
Por isso, para mim o ateísmo não é uma opção, mas sim uma ideia fixa. Não quero pertencer a esse club. Em geral, custa-me decidir-me por una filiação. Faltam-me dotes para ser um colega de fiar. Naturalmente, haverá quem considere isto una carência. (…)
O agnosticismo tem numerosos prós e contras. Permite-nos mover-nos com maior liberdade e não temos de submeter-nos a toda o tipo de preceitos concebidos por qualquer instituição. Libertar-se da disciplina do partido ou da Igreja em questão pode ser um alívio, e mais ainda se se trata dos entraves de uma ideologia política. O inconveniente é que o agnóstico não chega a de pertencer a nada.Estou completamente de acordo com o primeiro parágrafo citado acima*. Ninguém com um mínimo de autoconhecimento e honestidade negaria o peso que a religião tem na sua cultura. Mas como é que a consciência desse legado histórico pode levar quem não abraça uma religião a preterir o ateísmo a favor do agnosticismo? O «por isso» que sublinhei é, no mínimo, muito estranho. Como é que uma coisa causa – ou implica, se quiserem – a outra? A consciência da parte fundamental que ocupa o cristianismo na sua cultura não é modo algum razão para se ser agnóstico e não ateísta. Enzensberger não explica o «por isso». Pede ao leitor aquilo que muitas vezes se designa como «um salto de fé» ou um «salto de confiança». O leitor ateísta** e atento recusa-lhe esse salto. Aquele «por isso» cabe mal numa argumentação razoada.
É que o ateísmo é uma posição de razoabilidade e, ao contrário do que Enzensberger diz, não é um clube nem uma ideia fixa, nem se assemelha mais a uma igreja ou a um partido que o agnosticismo. Em rigor, um agnóstico não pertence menos a uma instituição que um teísta ou um ateísta – cada um pertence à sua e devia defendê-la com o mesmo empenho e a mesma lógica com que os teólogos medievais debatiam as espinhosas perguntas filosóficas que a si mesmo faziam. Não considero que «A minha fé diz-me que é assim» ou «Não quero pertencer a um clube» sejam fundamentos razoáveis para uma posição relativamente à existência de deuses – impossibilitam a discussão.
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Talvez haja mesmo quem, como Enzensberger diz, defina a opção do agnóstico como carência. Não sei. Creio que alguns ateístas acusarão os agnósticos de terem escolhido uma posição mais cómoda, menos frontal e, por isso, menos conflituosa, que os ateístas. Pessoalmente, não acredito – até porque conheço agnósticos de grande coragem e frontalidade – que, no geral, haja seja lá o que for de falta de frontalidade no agnosticismo. É de uma divergência filosófica que se trata. O que me parece é antes que o agnosticismo trata a questão da existência de deuses de uma forma parcial, já que, a ter a mesma atitude relativamente a tudo o resto que não é imediatamente observável, há que declarar-se agnóstico em relação a muitas outras coisas não provadas mas altamente prováveis. Os ateístas aplicam a o mesmo princípio a todos os seres e fenómenos: ao que sabemos atualmente, X é provável ou improvável. É só isto. Aquilo que os ateístas defendem é um método de conhecimento feito de observáveis, para poder ser comunicável, isto é, tornado comum – e aquilo em que é mais sensato acreditar, à luz das constatações feitas usando esse método.Os ateístas, pelo menos os que conheço, não põem em causa a impossibilidade de «saber se existem ou não [deuses], nem que forma têm»***. Os ateístas insistem até amiúde num princípio epistemológico de base, segundo o qual não se pode provar uma não existência a partir de observáveis, pelo que também é impossível afirmar que não existem o Pai Natal, unicórnios azuis e um número infinito de seres e fenómenos. O que os ateístas dizem é tão-só que é altamente improvável, à luz dos conhecimentos atuais, que exista algum ser com as características atribuídas aos seus deuses pelos crentes das diversas religiões; e que a ideia de um criador absoluto de todas as coisas dificulta muito mais a compreensão do universo do que a facilita.
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* Ou quase: a referência aos suíços e aos suecos parece-me incompreensível a não ser, talvez, num quadro de ideias feitas sobre estes povos que eu partilho com Enzensberger.
** Prefiro a palavra ateísta ao termo mais clássico ateu, por várias razões: a) é um termo comum de dois, ou seja, o masculino e o feminino têm a mesma forma, o que é sempre bom – além de que ateia se presta a jogos de palavras de mau gosto; b) o elemento -ista marca a inscrição num -ismo (ateísmo), um sistema de ideias ou crenças, o que não acontece de forma tão clara e direta com o termo ateu; e c) tem um antónimo imediato com a mesma formação, teísta, o que não acontece com ateu, que é uma daquelas palavras construídas com um prefixo de negação de uma palavra inexistente na mesma língua (um dia, hei de falar aqui disto, que é um tema engraçado).
*** Protágoras citado por Enzensberger: «Quanto aos deuses, não tenho meios de saber se existem o não, nem que forma têm. Impedem-mo a obscuridade da questão e a brevidade da vida humana».
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