13/06/24

Formar a juventude: Montaigne, os enciclopedistas e a Karen

 

Um jovem marinheiro volta a casa da família, de onde fugira. Gravura de Lumb Stocks,
 baseada numa obra de Joseph Clark. Séc. XIX, data desconhecida. Wikimedia Commons, daqui.
Os franceses dizem que «as viagens formam a juventude». É um provérbio, que é como se chama a um aforismo de autor desconhecido. Bom, neste caso, muitas vezes atribui-se a frase a Montaigne, mas parece que é uma atribuição exagerada — Montaigne nunca escreveu essa frase, embora tenha de facto enaltecido o valor da «visita a países estrangeiros» desde a primeira infância, começando pelos países onde as línguas são mais distantes, e que, se não forem aprendidas cedo, não se conseguem aprender. E isto para «de lá trazer sobretudo os humores dessas nações e os seus costumes, e para confrontar e polir o nosso cérebro com o cérebro dos outros».*

Uma formulação mais próxima da do provérbio atual é a do Dicionário Universal de Furetière em 1690: «As viagens são necessárias à juventude para aprender a viver no mundo».

Em 1751, lê-se na Enciclopédia de D’Alembert e Diderot:

«Hoje em dia, as viagens nos estados civilizados da Europa (pois que não se trata aqui das viagens de longo curso) constituem, no entender das pessoas esclarecidas, uma das partes mais importantes da educação da juventude e uma parte da experiência dos idosos.

Não havendo outras diferenças, toda a nação que desfrute de um bom governo e em que a nobreza e as pessoas com mais posses viajem tem grandes vantagens sobre outra em que não exista este ramo da educação.

As viagens desenvolvem o espírito, elevam-no, enriquecem-no com conhecimentos e curam-nos dos preconceitos nacionais. É um tipo de estudo para o qual não contribuem os livros nem os relatos alheios: é preciso uma pessoa avaliar por si própria os homens, os lugares e os objetos.»

Em 1835, o provérbio aparece já registado, na forma atual, no Dicionário da Academia.

Parece-me certo que as viagens na juventude são bons instrumentos de formação de uma pessoa. É bom aprender o mais cedo possível que há outros hábitos, outras comidas, outras línguas, outras organizações sociais, outras maneiras de viver, enfim; por tudo o que atrás foi apontado por Montaigne ou pelos enciclopedistas, mas também, acrescentaria eu, porque esse conhecimento nos ajuda a determinar a especificidade do nosso lugar e das suas maneiras de ser. Como se pode definir a identidade senão por contraste com a alteridade? Um exemplo culinário, que funciona bem como metáfora: como se pode saber se o pimentão é ou não um tempero muito específico da cozinha portuguesa, sem se conhecer a cozinha espanhola, húngara, croata, sérvia e por aí fora?
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Outras atividades para formar a juventude? A Karen, a minha mulher, costuma propor antes, como elemento fundamental de uma boa formação dos jovens, — vejam lá! — o apoio domiciliário. Ainda ontem o repetiu: toda a gente deveria, em jovem, trabalhar em apoio domiciliário a idosos. Ela fê-lo quando tinha os seus 20 anos, e diz que foi uma das mais enriquecedoras experiências da sua juventude: falar com pessoas que tinham já vivido uma vida quase toda, ouvir pela boca delas as suas histórias e histórias de outros tempos, e descobrir como viviam pessoas muito diferentes daquelas com quem normalmente se relacionava. Também me parece certo. Também é um bom instrumento de formação de uma pessoa — e o trabalho no apoio domiciliário mais que num lar, porque (pelo menos aqui, não conheço a situação noutros países) vamos encontrar no seu próprio meio pessoas com as quais é mais fácil estabelecer relações que as pessoas que vivem em lares, normalmente em piores condições físicas e mentais. Acho também que, além das razões que a minha mulher aponta, há outras que me parecem muito importantes. Trata-se também de contactar diretamente o mais cedo possível com coisas que estão cada vez mais escondidas do quotidiano dos mais jovens: velhice e doença, sofrimento, a morte ou a sua iminência. Para se perceber o mais cedo possível de que é (também) feita a vida.


[Um breve aparte | É curioso, somos agora três na família, a trabalhar em apoio domiciliário: eu, que, há pouco mais de dois anos e já com 63 anos feitos, conclui um curso de 38 meses e me tornei profissional de saúde (quem imaginaria uma coisa assim?); e o meu filho e uma das minha filhas, que não têm formação na área, mas a quem o trabalho não deixará de formar, se me permitem o trocadilho — ele vai assim ganhando a vida enquanto espera pelos 25 anos para começar um curso profissionalizante noutra área com salário de adulto; e ela está a juntar dinheiro para viajar, nos dois anos sabáticos que decidiu tirar antes de começar a universidade.]

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* As traduções das citações são minhas. Todas as informações sobre a história da frase vêm deste dicionário de provérbios.



1 comentário:

Ana Garrido disse...

Muito interessante.