28/01/14

Suicídio: o direito a renunciar e o dever de persistir

Lembro-me de um amigo me falar, há muitos anos, de um comunicado de uma célula de um partido ou de um grupo político, já não me lembro qual, em que se criticava o suicídio de um militante como abandono da luta dos seus companheiros – ou qualquer coisa nesse sentido. Durante muito tempo, considerei esse episódio um exemplo extremo de como a obsessão ideológica pode desumanizar: como era possível ser assim insensível a um desespero tão extremo que levava uma pessoa a desistir da vida?

Na altura, achava que o suicídio não podia ser condenado. A única condenação do suicídio que  conhecia era a condenação religiosa (só Deus pode dispor da vida) e considerava agora que, recusando esse pre(con)ceito, o suicídio era uma questão pessoal – que cada qual tinha, precisamente, o direito a dispor da sua vida como quisesse. Foi esta a minha posição relativamente ao suicídio durante muito tempo.

Um dia, um amigo, certamente tão progressista e tão livre-pensador como eu acreditava ser, mostrou-me um lado óbvio da questão que eu, não sei porquê, nunca tinha querido ou nunca tinha podido ver: nenhuma morte diz respeito apenas a quem morre. Quem se suicida age sobre os outros que cá ficam. Ao meu amigo, interessava sobretudo a forma como o suicida age sobre os que lhe são próximos. Que direito tem alguém de tirar um familiar aos seus familiares, um amigo aos seus amigos? “Claro, se uma pessoa não tiver ninguém que a ame ou que precise dela, é diferente”, dizia-me o meu amigo. E eu comecei a rever a minha posição sobre o suicídio.

A ideia, descobri depois, é um dos argumentos clássicos contra o suicídio – ou, de forma mais geral, contra o sacrifício da vida. É em nome do dever para os que ficam, por exemplo, que, n’Os Miseráveis de Victor Hugo, Combeferre incita os homens a abandonar a barricada, em vez de ficarem para serem massacrados:
Vá lá, é preciso ter um bocadinho de piedade. Sabem do que se trata qui? Trata-se das mulheres. Vejamos. Há mulheres, sim ou não? Há crianças, sim ou não? Há ou não há mães, que empurram os berços com o pé, rodeadas de uma catrefada de miúdos? Levante a mão quem nunca viu um seio que amamenta. Ah! Vocês querem deixar-se matar, eu também, eu que vos estou aqui a falar, mas não quero sentir à minha volta fantasmas de mulheres que sofrem. Morram, muito bem, mas não façam morrer os outros. Suicídios como este que aqui se vai cometer são sublimes, mas o suicídio é estreito e não se deve alargar; e, se atinge o próximo, o suicídio chama-se assassínio.
Há outras perspetivas da questão do suicídio e outras maneiras de o considerar assassínio. Pode-se considerá-lo uma questão de saúde pública, por exemplo. Tenho a impressão de que muita gente não tem uma noção realista da amplitude do fenómeno suicídio. Segundo a Organização Mundial de Saúde, “morrem anualmente de suicídio quase um milhão de pessoas”, o que “corresponde aproximadamente a uma morte de 40 em 40 segundos”. “O suicídio é, nalguns países, uma das três principais causas de morte de pessoas entre os 15 e os 44 anos e a segunda causa de morte no grupo dos 10 aos 24 anos; estes números não incluem tentativas de suicídio, que podem ser muito mais frequentes que o suicídio (10 ou 20 vezes mais frequentes, ou mais, segundo alguns estudos). No mundo inteiro, calcula-se que o suicídio representasse 1,3% da morbilidade global total em 2004.” Morre mais gente de suicídio que de homicídio ou na guerra.

Em Stay: A History of Suicide and the Philosophies Against It[1], Jennifer Michael Hecht afirma que “a influência suicida é suficientemente grande para o suicídio poder ser também considerado homicídio. Quer lhe chamem contágio, focos de suicídio ou criação de um modelo sociocultural, as nossas ciências sociais demonstram que suicídio causa mais suicídio, tanto entre os que conheciam a pessoa como entre os estranhos que se identificavam com a vítima.” Fala-se há muito tempo do efeito Werther. A novela de Goethe, cujo protagonista se suicida, terá desencadeado, ao difundir-se na Europa, uma vaga de suicídios[2]. É sempre assim, dizem alguns: suicídios de pessoas célebres (não forçosamente de carne e osso, a julgar pelo caso de Werther) causam suicídio. Após o suicídio de Marilyn Monroe, por exemplo, houve 200 suicídios mais que a média para essa época do ano. Mas não só os suicídios de pessoas célebres são contagiosos, diz Hecht: há numerosos estudos que indicam que, se uma pessoa conhece o suicídio, se esteve em contacto com um suicida ou com a ideia de suicídio, tem mais possibilidades de vir a cometer suicídio.

Há vários argumentos contra o suicídio, além do que referi atrás. Quero discutir um deles, o argumento utilizado por Hecht que assenta fundamentalmente na ideia de compromisso com a humanidade.
Somos humanidade, diz Kant. A humanidade precisa de nós porque nós somos humanidade. Kant acredita no dever e considera manter-se vivo um dever humano essencial. (…) Os seres humanos têm de se compreender como uma força do bem, uma força da moral. Como seres humanos, cabe-nos preservar esses ideais. (…)
É um erro moral intelectual e moral considerar a ideia de suicídio uma escolha aberta que cada um de nós é livre de fazer. Os argumentos contra o suicídio pedem-nos que nos empenhemos no projeto humano. Pedem à humanidade que largue os punhais e as taças de cicuta e se afaste deles para sempre. (…)
Rejeitar o suicídio é um ato enorme numa comunidade. Também penso que muda o universo. Ou o universo é um lugar frio e morto com uma colónia de seres sencientes mas divididos, tentado criar sentido cada qual por si, ou estamos num universo vivo, com uma colónia de seres sencientes, cujos membros fizeram uns com os outros um pacto de perseverar.
No fundo, Hecht parece concordar com os autores do comunicado que referi no início deste texto: suicidar-se é criticável porque é abandonar (a luta d)o resto do grupo, o seu compromisso com ele – só que o grupo que se abandona é mais abrangente. É-me difícil perceber se se deve ler, nas entrelinhas destas proposições, uma acusação concreta de falta de solidariedade, ou apenas de fraqueza, talvez até cobardia[3]. Seja como for, e apesar de aceitar vários argumentos contra o suicídio, continuo a ter dificuldade em aceitar esta ideia do compromisso com a humanidade.

Aceito que existe, de facto, numa maioria esmagadora das ações humanas, um compromisso com a espécie no seu todo, uma solidariedade da espécie que faz realmente parte da natureza humana – e, provavelmente, da natureza de muitos outros animais; mas vejo mal como se faz deste compromisso um dever. Que se combata o suicídio como se combate qualquer causa de morte parece-me natural. Se se acreditar que, de cada vez que alguém se suicida, isso aumentará as possibilidades de outro alguém se suicidar, deve condenar-se o suicídio como ação contra pessoas concretas – embora indeterminadas ou virtuais. Até aqui, o argumento funciona. Mas pode-se ir mais longe? Pode falar-se de um compromisso, um dever? Cabe-nos perseverar, preservar a força moral que somos. Se o meu dever para com a humanidade é apenas manter-me vivo, não posso ser criticado se me mantiver vivo comendo e dormindo apenas – o que, para a humanidade tem o mesmo resultado que eu não existir[4]. Por isso, a proposta de compromisso com a espécie, a proposta de manter-se vivo para preservar uma força moral, só parece fazer sentido se se definir que há o dever de contribuir ativamente para a humanidade. É possível, mas, como em todas as propostas de uma moral positiva, de um dever de agir bem, é muito difícil, se não impossível, definir que contribuição ativa deve ser essa. Se tiver, à partida, a capacidade de inventar a cura para uma doença e não o fizer, porque decidi não estudar medicina, e não salvar, por isso, muitas vidas humanas, estou a faltar ao meu dever para a humanidade? O compromisso com a humanidade, o dever de me preservar como força moral é, para mim, um dever demasiado vago, demasiado grande…
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[1]
Jennifer Michael Hecht, Stay: A History of Suicide and the Philosophies Against It. New Haven: Yale University Press, 2013. Não li o livro, mas apenas o artigo de Maria Popova sobre ele, no site Brain Pickings. O artigo (3455 palavras) é muito completo e aconselho vivamente a sua leitura. Foi esse artigo que me motivou a escrever este texto.

[2]
Nicholas Christakis e James Fowler têm feito muitos trabalhos sobre redes sociais e defendem a ideia de que o que se difunde não são hábitos (isso faria com que os contágios fossem mais lentos do que são), mas normas – ideias do que é aceitável, por exemplo. Ver, por exemplo, a apresentação de Christakis no site Edge do seu trabalho sobre a difusão da obesidade. É de notar que os trabalhos de Christakis e Fowler têm sido criticados, nomeadamente pela metodologia que usam – para um resumo das dúvidas relativamente à metodologia e conclusões de Christakis e Fowler ver, por exemplo, um texto de David John no Slate.

[3]
É o que pode indiciar, por exemplo, o título do artigo de Hecht em The American Scholar, “Viver é um ato de coragem”. Mas talvez esteja a ver fantasmas – é certo que esta estratégia retórica não implica forçosamente que “não viver é cobardia”. Este artigo, em que Hecht defende as mesmas ideias que encontramos resumidas no artigo de Maria Popova atrás referido, centra-se nos soldados americanos, entre os quais há “uma tremenda crise: há mais soldados a suicidar-se que a morrer em combate, e 52% dos suicidas nunca foram colocados em zonas de combate. Em 2012, suicidou-se em média um soldado por dia. Entre os veteranos, a taxa de suicídio atingiu, nesse ano, a média de 22 por dia (!!!). Esta tendência não tinha declinado em meados de 2013, na altura em que o artigo foi escrito.

[4]
Exceto, sublinho, no facto de não levar outros a suicidarem-se, que é até onde acho que o argumento chega.

2 comentários:

jj.amarante disse...

Mais outro texto muito interessante, serão as longas noites aí do Norte que fazem as pessoas pensar tanto? Não fazia ideia da importância estatística do suicídio. Além dos horrores da guerra no presente, tenho cada vez mais a noção dos horrores que sofrem depois os veteranos quando a acção já acabou. Afinal mesmo os que sobrevivem podem depois sucumbir. Numa nota mais irónica lembrei-me do filme sobre o general americano (Patton) que dizia aos seus soldados que não estavam ali para morrer pela sua pátria mas para fazer com que os soldados inimigos morressem pela pátria deles.

Vítor Lindegaard disse...

Obrigado pelo comentário, jj. amarante, e desculpe o atraso na resposta, tenho andado muito afastado do blogue. Como as ideias são como as cerejas, o aforismo de Patton fez-me lembrar outra ideia (que também vem de um filme, não me lembro de qual, mas que é completamente diferente) de que um soldado tem de ter mais medo do seu comandante que do exército inimigo, para lhe obedecer em tudo e cegamente, porque senão, de cada vez que dispara sobre um inimigo está a cometer um homicídio. Um abraço da escura Dinamarca que, felizmente, está a ficar cada dia mais clara.