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A morte de cada um dos outros é uma das formas que toma a nossa morte, essa que nunca nos larga e que, como dizia António Joaquim Lança, que nela não cria, só morre quando um dia a vida morre. E quanto mais os outros fazem parte de nós, mais nossa é a morte deles, como todos sabem. Morreu anteontem o meu amigo Tozé. Vocês não o conhecem e este texto é mais para mim que para vocês, nisso terão de me desculpar. Não poder ir ao funeral dos que lhes são queridos é um peso para quem tem as pessoas de quem gosta espalhadas por sítios distantes. É um peso não poder afrontar de perto a materialidade da morte, deixar os nossos mortos por enterrar, saber só de longe – sem o ter sentido, na mais primordial aceção da palavra – que o coração lhes parou. Deixá-los assim, vagos, a pairar em nós.
Já aqui falei do Tozé, quando falei da Floresta de Oma…
(… Foi viver lá para casa um amigo meu com quem eu acabava de retomar um contacto perdido durante muitos anos, e passávamos muitos serões à conversa. Era um prazer ouvi-lo: contava histórias interessantes das muitas viagens que tinha feito e tinha muitas vezes propostas de novas viagens, umas mais exequíveis do que as outras… Foi ele quem me propôs fazermos uma viagem ao País Basco, perto de Guernica, para irmos ver uma floresta mágica. A viagem mais simples e mais barata das muitas que propôs:
“É um floresta pintada. Quer dizer, a floresta é a própria pintura. Há quem pinte em papel, há quem pinte em tela, há quem pinte murais e este tipo, olha…, pinta florestas! Não é pintar uma árvore aqui e outra ali, não é isso – a pintura é a floresta toda!”
Não sei se me disse o nome do pintor, mas, se mo disse, nunca o fixei. A ideia era boa e combinámos mais de uma vez datas concretas para a viagem, mas, já não sei por quê, acabámos por nunca ir.)
…e falei dele no post anterior.
(Um dia, um amigo, certamente tão progressista e tão livre-pensador como eu acreditava ser, mostrou-me um lado óbvio da questão que eu, não sei porquê, nunca tinha querido ou nunca tinha podido ver: nenhuma morte diz respeito apenas a quem morre. Quem se suicida age sobre os outros que cá ficam. Ao meu amigo, interessava sobretudo a forma como o suicida age sobre os que lhe são próximos. Que direito tem alguém de tirar um familiar aos seus familiares, um amigo aos seus amigos? “Claro, se uma pessoa não tiver ninguém que a ame ou que precise dela, é diferente”, dizia-me o meu amigo. E eu comecei a rever a minha posição sobre o suicídio.)
E gostava agora de saber fazer um obituário regular, mas mais bonito que os obituários regulares, a contar o Tozé, vida e alma, mas sinto-me tão incapaz nessa tarefa…
Entre muitas outras coisas, o Tozé deixou-me Gary Snyder, João da Cruz e Van Morrison e homenageio com eles o meu amigo que vocês não conhecem:
ele sabia o que tem de se saber para ser poeta
(… os seis sentidos que temos, com a mente atenta e elegante … sonhos. os ilusórios demónios e os ilusórios deuses resplandecentes … e depois amar o humano: mulheres maridos e amigos … exaustão, fome, repouso. fome, repouso. … a iluminação solitária e silenciosa … o verdadeiro perigo. apostas. e o limiar da morte);
sabia mais que saber apenas
(Estaba tão embebido, / tão absorto e alheado, / que ficou o meu sentido / de todo sentir privado / e o espírito dotado / de entender não entendendo, / toda a ciência transcendendo);
e sabia bem que no amor se renasce. E foi espalhando à sua volta isso que sabia. Ensinou-me que a vida é essencialmente sofrimento e que é dessa constatação que devemos partir para a tentar melhorar. E dói-me muito que tenha morrido.
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