29/03/09

O que é e o que deve ser

Não são só as palavras que são como as cerejas. Os pensamentos também vêm todos agarrados uns aos outros, mesmo que não venham em forma de palavras. Quando, no outro dia, comecei um texto sobre os altos e baixos da vida com uma metáfora de atletismo, lembrei-me de que há quem ache mais do que apenas metafórica a relação entre as leis que regem o mundo físico e as leis que regem indivíduos e sociedades. Veio-me à cabeça um texto sobre dialéctica e transformações sociais – mais concretamente, sobre a necessidade de revoluções versus possibilidade de mudanças evolutivas – que traduzi há uns anos e em que se chamavam à conversa argumentos como a evaporação da água e os estados paradoxais dos fluidos supercríticos...

Não é minha intenção discutir aqui a utopia da universalidade das leis científicas e do querer aplicar-se à evolução das sociedades regras da física ou da química – ou, pelo menos, de se juntarem numa só discussão as duas coisas. A cereja que vinha agarrada a esse pensamento – e que é, essa sim, tema deste texto –, é que, para mim, o que importa discutir não é qual é a forma das mudanças sociais, se elas podem ou não ser assim ou assado. Não é sem interesse tentar saber se, ao longo da História, as revoluções têm trazido mudanças mais estáveis do que as transformações sociais menos bruscas, como não é sem interesse tentar saber, por exemplo, se temos ou não mecanismos inatos de reconhecimento de afinidade genética. Mas a moral (e a política, pelo menos para quem a encara, como eu, como uma parte da moral) não tem de se pronunciar sobre como o mundo é, mas sim como ele deve ser.

Pessoalmente, não tenho boas razões para acreditar que as transformações revolucionárias da sociedade trazem maiores e melhores mudanças do que as transformações menos bruscas. Pelo contrário, o que tenho visto do mundo leva-me a crer que as mudanças sociais mais sólidas foram sempre as que resultaram de evoluções mais graduais. Também não tenho razão nenhuma para crer que os mecanismos de reconhecimento de proximidade de parentesco e tipo físico, que é provável que existam, tenham uma força maior do que outros mecanismos igualmente naturais de criação de laços entre as pessoas. Mas, mesmo que uma pessoa, através de análises das mudanças de fase de uma substância ou de análises da História diferentes da minha, considere que tem boas razões para acreditar que as verdadeiras mudanças sociais acontecem sempre (leia-se, aconteceram sempre…) de forma brusca, ou mesmo que haja investigações que a convençam de que a discriminação dos que não são parecidos connosco é natural nos humanos, não decorre daí nenhuma necessidade de aprovar, por inelutáveis, as revoluções ou a discriminação racial. Essa pessoa pode sempre propor – e não seria a primeira a fazê-lo… – que se vá contra o que ela acredite ser a natureza das coisas; pode propor transformar a “natureza” das sociedades ou das pessoas, se achar que essa “natureza” não é como devia ser.

“Em vão”, dirão muitos, “porque, como explica a velha fábula, não se pode fazer com que um escorpião deixe de morder… O interesse de saber como é a estrutura da História, ou como é a natureza humana é que se escusa assim de propor o irrealizável…” Ao que eu respondo, antes de mais, que a estrutura da História está dentro da cabeça das pessoas, pelo que não há leis sociais exteriores aos seres humanos; e que a vantagem da natureza humana, seja lá ela qual for, em relação à natureza do escorpião é que ela é muitíssimo mais flexível. Se calhar, é mesmo por isso que nós temos moral e os escorpiões não, e é certamente por isso que não há nada “inevitável”, quando se fala do comportamento dos homens, e podemos sempre discutir o que devemos evitar – e também o que devemos cultivar.

Evidentemente, quando mais fundo for em nós o hábito ou a disposição inata que queremos alterar, mais difícil é essa mudança e mais há que ponderar a estratégia para lá chegar. Mas há quem recuse o sexo por decisão própria e quem aprenda a suicidar-se deixando de respirar – pelos vistos, o que é definitivamente natural no ser humano é não haver nele nada de tão definitivamente natural que não possa ser alterado. A famosa frase de Maio de 68 “Sejamos realistas, exijamos o impossível” não é tão desprovida de lógica como à partida parece, porque, como tem sido insistentemente defendido por aqueles que acham que o mundo pode ser melhorado, o que nos parece hoje impossível talvez não o pareça mesmo nada aos nossos netos. Quantas pessoas, mesmo as mais progressistas, não achariam há 100 anos que as relações entre os sexos ou as raças como elas existem hoje em certos grupos humanos seriam sempre impossíveis por violarem fundamentalmente a “natureza humana”?

É esta a beleza da política e do resto da moral: Podemos sempre propor, sem medo de estarmos a cair nalgum excesso de idealismo, aquilo que corresponde, nos comportamentos humanos, à ebulição da água a 50 ou a 150 graus. As mudanças sociais podem ser bruscas ou não, as relações entre raças, sexos e nações podem ser de todos os tipos, e as leis que regem o comércio também. Podem ser conforme nós as quisermos. Discutamos então não como são, mas sim como devem ser.

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